Opinião

Regime próprio de seguradoras e operadoras de saúde na reforma tributária

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  • é advogado tributarista conselheiro de contribuintes do Município do Rio de Janeiro membro da Comissão de Assuntos Normativos e Legislativos Tributários da OAB-RJ LLM em direito tributário e financeiro pela FGV-RJ pós-graduado em processo civil pela PUC-RJ e graduado em direito pela UFRJ.

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4 de julho de 2025, 6h02

Os anos de 2023 a 2025 consolidaram o período da maior transformação do sistema tributário brasileiro desde a promulgação da Constituição de 1988. A Emenda Constitucional nº 132/2023 refundou o modelo constitucional de tributação sobre o consumo, inspirada pelo trabalho do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF) em conjunto com entidades da sociedade civil e o Parlamento.

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As principais inovações incluem os parágrafos 3º e 4º do artigo 145 da Constituição, que cristalizaram como princípios constitucionais a simplicidade, a transparência, a justiça tributária, a cooperação, a defesa do meio ambiente e atenuação da regressividade tributária. Emerge também o princípio da não-cumulatividade plena aplicada à tributação da circulação de bens ou prestação de serviços (artigos 149-B, inciso IV, 156-A e 195, inciso V da CRFB/88), que constitui o cerne do IVA (Imposto sobre o Valor Agregado), instrumento notável por sua transparência, simplicidade e progressividade naturais.

Em complemento à EC nº 132/23, foi sancionada, em janeiro de 2025, a LCP 214/25, que regulamentou, no plano infraconstitucional, o IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) e a CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços). Estes tributos representam a nova face do IVA-Dual Brasileiro, substituindo o ICMS, o ISS, o PIS, a Cofins e o IPI (parcialmente).

Tributação dos serviços de operadoras e seguros de saúde sob a LCP 214/25

A LCP 214/25 instituiu um regime geral de tributação do consumo amplamente não-cumulativo, neutro, progressivo e com o foco na tributação do valor agregado pelos elos da cadeia produtiva, evitando tributação em cascata e afastando a regressividade tributária. Nesse contexto, importâncias não vinculadas ao conceito de “valor-agregado” ordinariamente não integrarão a base da tributação, tais como receitas financeiras e o próprio IVA recolhido nas etapas anteriores da cadeia produtiva.

A LCP 214/25 estabeleceu um regime tributário específico para as operadoras e seguradoras de planos de assistência à saúde, levando em conta a relevância do setor de saúde suplementar e sua complementariedade com a saúde pública, respeitando sua relevância à universalização do acesso à saúde, conforme artigos 196 a 200 da Constituição, bem como a existência de mais de 51 milhões de beneficiários de planos de saúde (em 2024) em nosso país. Apesar de muitos avanços e modernização na legislação tributária que trata do Setor, ainda há pontos de melhorias e, até mesmo, alguns retrocessos passíveis de aprimoramento no texto, como posto.

Sujeitos Passivos do IBS e da CBS

O artigo 234 da LCP 214/25 sujeita ao regime específico os serviços prestados por:

  1. seguradoras de saúde;
  2. administradoras de benefícios;
  3. cooperativas operadoras de planos de saúde;
  4. cooperativas de seguro saúde; e
  5. demais operadoras de planos de assistência à saúde. Este escopo amplo garante uniformidade tributária setorial, evitando distorções competitivas entre diferentes modalidades de prestação de serviços de saúde suplementar.

Base de cálculo e metodologia de tributação

A base de cálculo das seguradoras e operadoras de planos de saúde está estabelecida no artigo 235 da LCP 214/25 e representa uma boa escolha do legislador para desenhar o modelo de tributação do IVA-Dual, pois estabelece a regra de basis on basis, elegendo a margem líquida como aspecto quantitativo material do fato gerador, compreendendo:

  1. a) Ingressos (Elementos positivos): receitas dos serviços, prêmios, corresponsabilidades, contraprestações e receitas financeiras dos ativos garantidores das reservas técnicas efetivamente liquidadas;
  2. b) Deduções (Elementos negativos): sinistros, indenizações pagas, cancelamentos, restituições, custos com intermediação e taxas de administração.

Simultaneamente, a legislação admite que os agentes do setor se valham do regime de não-cumulatividade plena para suas aquisições desvinculadas da atividade assistencial (os sinistros e custos de administração que já são integralmente deduzidos da base de cálculo). Esta metodologia moderna revela clara inspiração no direito tributário internacional moderno, particularmente nas experiências da Austrália, Nova Zelândia e de Singapura, que adotaram sistemas de tributação sobre a margem dos serviços de intermediação securitária e possibilidade de creditamento ao longo da cadeia, aproximando-se do “Valor efetivamente Agregado” pelos agentes setoriais.

Regime de alíquotas e creditamento

Outro avanço do texto consiste no artigo 237 da LCP 214/25, que estabelece alíquotas nacionalmente uniformes, correspondentes às alíquotas de referência reduzidas em 60%, evidenciando a relevância e o caráter social da tributação sobre serviços de saúde e preservando a neutralidade tributária do setor, evitando debates sobre guerra fiscal ou intervenção da tributação na organização dos fatores de produção dos contribuintes do setor.

Spacca

Ainda há um significativo avanço, em prol da progressividade e redução de resíduos na cadeia, considerando que as operadoras e seguradoras de planos de saúde asseguraram o direito ao crédito amplo e integral de todas as suas aquisições e contratações no regime geral (com exceção dos sinistros pagos, despesas assistenciais e demais importâncias deduzidas da sua base de cálculo conforme artigo 235 da LCP 214/25).

Entretanto, o artigo 238 da mesma lei apenas autoriza o crédito de IBS e CBS para os adquirentes (contratantes/estipulantes) pessoas jurídicas que contratem essas coberturas para seus empregados em decorrência de Acordo ou Convenção Coletiva, restringindo as hipóteses de não cumulatividade, em leitura conjunta com o artigo 57, §3º, inciso IV, alínea “f”, da LCP 214/25. O crédito do IVA fica limitado ao resultado de uma fórmula que considera o valor efetivamente custeado pela pessoa jurídica na contratação dos planos de saúde (excluindo os valores de coparticipação repassados aos funcionários) e o valor do IVA efetivamente pago pela própria operadora ou seguradora de planos de saúde.

Essas restrições podem acabar por desestimular a cobertura de vidas pelos empregadores a seus empregados, sendo certo que os planos corporativos representam cerca de 80% (oitenta por cento) do mercado de planos de saúde coletivos.

Ponto crítico: tributação das receitas financeiras dos ativos garantidores das reservas técnicas

A previsão legislativa e suas condições

O artigo 235 da LCP 214/25 inclui as receitas financeiras dos ativos garantidores das reservas técnicas na base de cálculo do IBS e CBS, constituindo exceção à regra geral do novo sistema de tributação sobre o consumo, que, ordinariamente não tributa receitas financeiras (exceto instituições financeiras bancárias típicas).

Ainda assim, no caso das seguradoras e operadoras de planos de saúde, o § 4º do artigo 235 estabeleceu critérios rigorosos para o reconhecimento das receitas financeiras como efetivamente liquidadas, exigindo cumulativa e concomitantemente: a liquidação ou resgate do ativo garantidor; e a redução do total das provisões técnicas lastreadas por ativo garantidor. Assim, na hipótese de ocorrência cumulativa e concomitante das duas condições acima admitir-se-ia, em nossa leitura fria da legislação posta, a inclusão da receita financeira relativa àquele período de apuração específico (não a sua totalidade) na base de cálculo do IBS e da CBS.

O § 6º exclui da base de cálculo receitas financeiras desvinculadas da alocação de recursos oriundos do recebimento de prêmios e contraprestações formadores dos ativos garantidores das reservas técnicas.

Conflito com o posicionamento do STF

  • Precedente do RE 400.479-RJ e Tema 1.309

O julgamento do RE nº 400.479-RJ pelo STF representa marco jurisprudencial sobre tributação das receitas financeiras das reservas técnicas. O voto condutor do ministro Cezar Peluso, complementado pelo ministro Dias Toffoli, estabeleceu distinção fundamental entre receitas da atividade empresarial típica e receitas financeiras de aplicações compulsórias.

Importante destacar que, em agosto de 2024, o STF reconheceu por unanimidade a repercussão geral do Tema 1.309, que trata especificamente da “Exigibilidade do PIS e da Cofins sobre as receitas financeiras oriundas de aplicações financeiras das reservas técnicas de empresas seguradoras”. O relator, ministro Luiz Fux, em sua manifestação, afirmou que o tema se distingue do Tema 372 (instituições financeiras puras), reconhecendo a atividade típica das seguradoras é absolutamente diferente.

Enquanto para as instituições financeiras as receitas financeiras constituem atividade empresarial típica (spread bancário), para as seguradoras representam atividade-meio legalmente imposta para garantir a solvência e proteção dos segurados e absolutamente desvinculada do serviço (obrigação de fazer).

Como enfatizado no parecer do ministro Cezar Peluso: “as instituições financeiras recebem valores que entram no seu faturamento a título de contraprestação dos serviços típicos que prestam aos clientes, ao passo que as seguradoras recebem renda financeira do que são, por lei, obrigadas a investir para garantia dos compromissos contratuais, não porque sejam contraprestação de prestação típica a terceiros, senão a título de condição das suas futuras prestações“.

  • Conceito de Faturamento e Atividade Empresarial Típica

O RE 400.479-RJ esclareceu que “a legislação histórica conectada ao PIS/COFINS demonstra que o conceito de faturamento sempre significou receita bruta operacional decorrente das atividades empresariais típicas“. Para seguradoras, a atividade típica consiste em “oferecer o contrato de seguro e cobrir os riscos assumidos“, sendo o prêmio ou as mensalidades, a única contraprestação recebida em função dos interesses garantidos e dos riscos predeterminados (os serviços propriamente ditos).

O que se determinou, categoricamente, foi que “é certo que não decorrem da atividade empresarial típica das seguradoras as receitas financeiras oriundas das aplicações financeiras das reservas técnicas”, reiterando a compreensão do ministro Cezar Peluso em seu voto originário e seu parecer sobre o caso firmando que “é o prêmio que decorre da atividade empresarial típica das seguradoras, e não outras receitas alheias ao desempenho de seu mister típico, como são as receitas financeiras em questão”.

A rigor, a natureza jurídica das receitas dos ativos garantidores que lastreiam as reservas técnicas revela incompatibilidade absoluta com o conceito de “prestação de serviço” ou “receita operacional decorrente da prestação de serviço”. Conforme estabelecido no artigo 84 do Decreto-Lei nº 73/1966, a constituição de reservas técnicas e a manutenção de ativos garantidores dessas reservas representa obrigação legal imposta “para garantia de todas as suas obrigações” (por isso também denominadas “aplicações compulsórias“), não derivando de escolha empresarial ou estratégia comercial. Há, ainda, o artigo 96, alínea ‘b’, do Decreto-Lei nº 73/1966, que prevê a “cessação compulsória das operações” para sociedades seguradoras que não formarem as reservas técnicas ou deixarem de aplicá-las conforme prescrito.

Também o artigo 85 do Decreto-Lei nº 73/1966 estabelece que os ativos garantidores das reservas “devem ser registrados na Susep e são inalienáveis, não podendo as sociedades seguradoras distribuírem lucros” correspondentes a essas reservas.

As receitas financeiras relativas às aplicações compulsórias das reservas técnicas, portanto, não decorrem de atos de organização empresarial voluntária, mas de obrigação legal, indisponíveis, inacessíveis e inviáveis de compor contraprestação pelo serviço securitário.

Riscos à segurança jurídica

  • Violação ao princípio da segurança jurídica

A inclusão das receitas financeiras dos ativos garantidores das reservas técnicas na base de cálculo do IBS e CBS, conforme previsto no artigo 235 e seguintes da LCP 214/25, representa ameaça à segurança jurídica tributária brasileira, configurando retrocesso em relação aos avanços jurisprudenciais consolidados pelo Supremo Tribunal Federal e pelos TRFs pátrios.

A segurança jurídica, na conceituação de Humberto Ávila[1], manifesta-se através de três dimensões fundamentais: cognoscibilidade, confiabilidade e calculabilidade do direito. No contexto tributário, essas dimensões exigem que o contribuinte possa conhecer previamente suas obrigações, confiar na estabilidade das normas e decisões e calcular adequadamente os efeitos tributários de suas condutas em suas palavras: “só existe segurança quando o direito for compreensível, estável e previsível“.

Em nosso entender, o modelo da LCP 214/25, ao incluir receitas financeiras dos ativos garantidores das reservas técnicas na base tributária, contraria esses três requisitos, criando incerteza jurídica em área já pacificada pela jurisprudência constitucional.

  • Insuficiência dos critérios restritivos da nova lei

Embora a LCP 214/25 tenha estabelecido condições cumulativas rigorosas para a tributação das receitas financeiras dos ativos garantidores das reservas técnicas (§ 4º do artigo 235), essa estratégia normativa não resolve o problema fundamental de insegurança jurídica. Se os juros não se destinam a remunerar a seguradora, mas a aumentar reserva destinada à cobertura dos interesses do segurado e garantir eventual dispêndio que venha a ocorrer, é certo que não há disponibilidade sobre tais montantes.

A ausência de disponibilidade compromete a própria definição de tais valores enquanto receita da seguradora e o fato mais relevante: em nenhum cenário essas receitas financeiras representariam contrapartida à “prestação de serviços” ou resultado da prestação de serviços das seguradoras e operadoras de planos de saúde, ademais, os critérios restritivos, embora tentem endereçar questão complexa, não evidenciam qual seriam os aspectos temporais/materiais para a eventual inclusão dessas receitas financeiras na base de cálculo do IBS e da CBS. Se os juros destinam-se a aumentar reserva para cobertura dos interesses do segurado, não há disponibilidade sobre tais montantes, comprometendo a própria definição enquanto receita da seguradora.

  • Violação ao conceito constitucional de prestação de serviços

As disposições do artigo 235 incorrem em vício de constitucionalidade ao desconsiderarem que a Constituição define a regra-matriz do IBS e CBS como espécies tributárias incidentes “sobre bens e serviços”. Não é constitucionalmente adequada a exigência desses tributos sobre “receitas financeiras dos ativos garantidores”, uma vez que estas não decorrem da prestação de serviço realizada pelas seguradoras.

Existe distinção fundamental entre “resultados/receitas operacionais decorrentes da atividade-fim” e “receitas atípicas ou não operacionais”. A receita pela prestação de serviços é a “expressão da receita advinda da realização da finalidade da empresa ou de seu objeto social“, excluindo “receitas puramente financeiras”, conforme decidiu o Plenário do STF no RE 400.479-RJ.

A tentativa de incluir no campo de incidência do IBS e da CBS as receitas financeiras dos ativos garantidores, mesmo com condições restritivas, contradiz frontalmente a prescrição constitucional, pois a “receita ou contrapartida financeira pela prestação de serviço” deve ser entendida como aquela decorrente da atividade econômica típica/principal, em razão da qual a sociedade se organizou para desempenhar (Decreto-Lei nº 1.598/1977). A rigor, a nosso ver, a previsão do inciso I, b e §4º do artigo 235 da LCP 214/25 repristina discussão já ultrapassada pela jurisprudência firme sobre o tema.

Conclusões

Pelo exposto, podemos concluir que o novo sistema tributário brasileiro de tributação sobre o consumo, implementado pela EC 132/23 e pela LCP 214/25, com a criação do IVA-Dual (IBS e CBS), representa importante avanço para a sociedade brasileira, especialmente por privilegiar a neutralidade, a simplicidade, a não-cumulatividade e buscar afastar a regressividade do sistema atual, no que respeita à Saúde Suplementar.

Entretanto, mesmo reconhecendo o avanço sistêmico do modelo proposto, há evidentes pontos de melhoria (e até mesmo retrocesso) que devem ser observados e saneados pelo Legislativo e, em última análise, pelo Judiciário, especificamente no que se refere:

  1. À melhor definição na apropriação de créditos dos tributos pelos contratantes dos planos de saúde coletivos, buscando a flexibilização da restrição atual que limita o creditamento apenas aos casos decorrentes de acordo ou convenção coletiva, o que pode desestimular a oferta desse benefício essencial aos trabalhadores; e
  2. À exclusão das receitas financeiras dos ativos garantidores das reservas técnicas da base de cálculo do IBS e CBS, em consonância com o entendimento mais recente do STF e com as melhores práticas internacionais [2], evitando a tributação de receitas que não representam contrapartida pelos serviços prestados.

Clique aqui para ler o artigo na íntegra

 


[1] ÁVILA, Humberto. Teoria da Segurança Jurídica. 6. ed. São Paulo: Malheiros/JusPodivm, 2021.

[2] Em estudo comparativo internacional realizado pelo Insper, de lavra dos professores Breno Vasconcelos e Thais Shingai, dentre mais de 117 países analisados (com modelo de IVA), identificou-se que 78% isentavam, tratavam como não-tributável ou concediam alíquota zero aos serviços de saúde (incluindo os serviços de seguro-saúde), e mais 4% dos países analisados traziam regimes com alíquotas beneficiadas, totalizando 82% dos países analisados com nenhuma tributação ou baixa tributação sobre serviços de saúde (incluindo seguros-saúde).

Autores

  • é advogado tributarista, conselheiro de contribuintes do Município do Rio de Janeiro, membro da Comissão de Assuntos Normativos e Legislativos Tributários da OAB-RJ, LLM em direito tributário e financeiro pela FGV-RJ, pós-graduado em processo civil pela PUC-RJ e graduado em direito pela UFRJ.

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