O mundo ao contrário: quando o filho ensina o pai
4 de julho de 2025, 9h20
Cena: uma tarde em casa

Em 25 de julho de 2019, quando completei 46 anos e ainda não tinha o diagnóstico de autista, mas já tinha hiperfoco, tentava instalar e rodar Python em meu computador, que comprei sob a justificativa de ser meu presente de aniversário. No entanto, depois de idas e vindas, olhava frustrado e um tanto decepcionado para a tela do computador, porque não conseguia entender os bugs e a recorrente mensagem de “erro”. A máquina parecia querer zombar de mim, diante da minha ignorância digital.
Artur, meu filho, um nativo digital (natodigital), então com 10 anos, entrou na sala, notou minha expressão e, com um sorriso curioso, perguntou: “Deu ruim, papai?” (ele é carioca).
Simplificação de um natodigital
Respondi: instalei o software, mas não roda de jeito nenhum. Artur, sem hesitar, sentou-se ao meu lado, puxou o notebook e seus dedos voaram sobre o teclado. Em poucos minutos identificou o problema: uma atualização no drive pendente do sistema operacional, algo que eu tinha ignorado. Com alguns cliques, o software estava funcionando perfeitamente.
Fiquei impressionado, mas também um pouco envergonhado. “Como você sabia disso?”, perguntei, tentando esconder minha ignorância. Artur apenas deu de ombros: “É só saber procurar, papai. Além disso, é básico de computador! Aprendi quando fiz o curso de programação que te pedi, lembra?”
Respondi: sim, é verdade! Quase perguntei se havia adultos no curso, mas resisti, tentando disfarçar a minha ignorância, ou melhor, meu analfabetismo digital. A geração +50, em geral, é composta por analfabetos digitais que sequer entendem o mundo atual, mas sustentam, com pompas e circunstâncias, talvez arrogância, a mais absoluta ignorância digital. Além do analfabetismo, também há o letramento digital.
É difícil reconhecer que a nossa geração ‘flopou’
“Flopar” é um termo coloquial, originário da junção das palavras “flop” (fracasso, em inglês) e “travar” ou “parar”, mas que pode ser mais adequadamente descrito como uma mistura de “flop” com “parar” ou “travar”, sugerindo um fracasso súbito ou uma paralisação inesperada.
A definição mais comum e aceita é: flopar = fracassar repentinamente ou parar de funcionar inesperadamente. O termo “flopar” geralmente carrega uma conotação negativa, denotando uma interrupção inesperada ou um fracasso repentino, que pode causar inconvenientes, perdas, angústias e frustrações.
Mundo analógico, mundo digital e mundo onlife
Novas coordenadas da realidade: em 9 de janeiro de 2007, ao apresentar ao mundo o primeiro iPhone, Steve Jobs disse que era um iPod, um telefone e um comunicador internet em um único dispositivo. Em menos de 20 anos, além do iPhone, diversos artefatos reconfiguraram os padrões da vida cotidiana: inteligência artificial generativa (IAG), blockchain, internet das coisas (IoT), wearables de monitoramento biométrico, nuvem, sensores inteligentes e carros autônomos, dentre outros.
O impacto no Direito ainda é controverso, com desafios e risco de violação aos direitos fundamentais pensados para um mundo analógico, sem que o tempo do Direito consiga acompanhar a velocidade das inovações tecnológicas.
Impacto Tecnológico: Se o mundo é outro e as coordenadas de realidade deixaram de ser exclusivamente analógicas, a atividade profissional exige a aquisição de novas competências digitais (conhecimentos; habilidades; experiências) que permitam sobreviver nesse cenário de bytes, metadados, pegadas, crimes e provas digitais. Do contrário, perde-se competitividade mínima, porque agentes processuais nostálgicos tornaram-se incapazes de sequer compreender o que se passa, desorientados e/ou congelados em um mundo analógico que ficou no tempo [deixou de existir].
Como disse Richard Susskind (Advogados do Amanhã. Florianópolis: EMais, 2022, p. 34-35):
“… é simplesmente inconcebível que a tecnologia alterará radicalmente todos os ângulos da economia e da sociedade e, ainda de alguma forma, os serviços jurídicos serão uma exceção a toda a mudança. […] Tecnologia digital não é uma mania passageira. […]. E, ainda assim, muitos advogados […] ainda afirmam que essa questão da tecnologia é exagerada. Poucos ainda apontam para uma bolha do ponto com e alegam — baseado não se sabe em quem — que o impacto da tecnologia está diminuindo e que a recente conversa sobre IA no direito não passará de teoria. Isto é uma leitura grotescamente equivocada das tendências.”
Os impactos da Era da Informação, dos avanços tecnológicos (internet, web, computadores, processo digital, prova eletrônica-digital, inteligência artificial generativa, big data, dentre outros temas) e das contribuições de domínios adjacentes simplesmente não existiam à época da elaboração das teorias que sustentam a sabedoria convencional do processual (civil, penal etc.). Seguirei pelo processo penal
Em consequência, ao mesmo tempo que é inválido criticar os teóricos do saber convencional do Processo Penal pelos recursos então inexistentes e/ou indisponíveis, também é inválido continuar aplicando um modelo desatualizado, obsoleto e inadequado à compreensão do contexto atual, situado em três contextos providos de fronteiras difusas (conteúdo variado e dinâmico):
-
Contexto analógico
-
Contexto digital
-
Contexto onlife (híbrido: nem analógico, nem digital: intermédio da situação atual)
Reconhecer lacunas ou insuficiências é um sinal de força
Naquele momento, já se vão quase 7 anos, percebi algo importante. Minha geração cresceu aprendendo a tecnologia ao longo do caminho, trocando o pneu furado com o carro em movimento, muitas vezes por tentativa e erro. Já Artur e seus amigos natodigitais nascem nesse mundo, absorvendo conhecimento tecnológico como se fosse ar.
Mas o que realmente me chamou a atenção foi a facilidade com que Artur resolveu o problema, contrastando com a minha luta ingênua, amadora e, em certa medida, arrogante (de quem acha que sabe, mas não sabe). Isso me fez refletir sobre como, muitas vezes, fingimos saber o que está acontecendo para evitar parecer ignorantes.
Perigo de fingir saber
Fingir saber pode parecer uma solução rápida para salvar a face, mas é um caminho perigoso. Com o tempo, a pressão de manter a fachada pode levar a quadros de angústia, medo de ser descoberto e, o pior, perda de oportunidades de aprender e crescer. Além disso, pode ocasionar graves deficiências no exercício profissional e, no caso do processo penal, erros evitáveis, às vezes trágico (para você ou terceiros), especialmente reputacionais.
Reconhecer fraquezas é um sinal de força
Artur me ensinou uma lição valiosa naquele dia: o reconhecimento das nossas lacunas e insuficiências não é sinal de fraqueza, mas de força. É o primeiro passo para superar desafios e crescer, tanto individual quanto coletivamente. Aliás, é uma exigência de atualização que independente da opinião pessoal quanto ao impacto tecnológico.
Cena final: uma nova abordagem
Daquele dia em diante, adotei uma nova abordagem. Sempre que me deparava com um problema tecnológico, não hesitava em perguntar. E não apenas a Artur, mas também a colegas, amigos e até mesmo em fóruns online, ao mesmo tempo que busquei aprender o mundo que desconhecia.
A resposta de Artur para a minha pergunta sobre como ele sabia resolver o problema mudou ligeiramente na minha atitude: “É só saber procurar… e não ter medo de perguntar.” Mas para perguntar é preciso saber perguntar, ou melhor, saber construir “prompts”. Aqui você encontra uma aplicação básica e gratuita para geração prompts de Direito e Processo Penal (aqui). Depois de gerado, use em um LLM de sua preferência (GPT, Deepseek, Lhama, Perplexity etc.)
Novos horizontes digitais
Vivemos em um mundo onde a tecnologia avança a uma velocidade vertiginosa, sem que consigamos sequer acompanhar as novidades diárias. Não saber algo não é apenas normal, mas inevitável e possível de ser suprido. O verdadeiro poder está em reconhecer nossas limitações e buscar conhecimento, seja através de um filho natodigital, de uma pesquisa orientada por quem já está adiante e pode evitar armadilhas, especialmente de cursos que prometem milagres incompatíveis com a aprendizagem de adultos.
Atenta à transformação digital, a Abracrim está coordenando, por sua diretoria, Sheyner Asfóra e Adriana Spengler, um curso gratuito de Letramento Digital aos associados para fins de fornecer os conceitos básicos desse novo universo. São dez encontros semanais, com aulas disponibilizadas online. Você está convidado.
No que me toca, a cada novo desafio, renova-se a aprendizagem incremental, não para ter todas as respostas, mas para fazer as perguntas certas. E é exatamente essa atitude que permite situar-me ao lado a lado de uma geração que nasceu num ambiente digital, em constante modificação. Quando mais demorarmos para dar o passo digital, mais defasados ficamos.
Convite
A proposta é um convite à reinvenção — porque, diante de um presente que se atualiza em tempo real, o futuro pertence àqueles que arriscam desbravar as fronteiras digitais, com a coragem de reaprender.
Efeito recomeço
Quando se comemora aniversário ou na virada do ano, p.ex., em geral, temos a atitude ativa de tentar algo novo, mudar o status quo. Considere o impacto tecnológico (alterações; novidades; surpresas; paradoxos) como um desafio e uma oportunidade (gatilho) para iniciar ou ampliar a aprendizagem sobre esse novo contexto.
Se o mundo mudou, pode-se simplesmente negar a realidade ou adotar postura inteligente: assumir as lacunas e recomeçar a aprender. Reconhecer limitações é um sinal de força e profissionalismo. Artur, inspirado em Harry Potter, diz que os desatualizados são “trouxas digitais”. A escolha e a responsabilidade pela posição ocupada são inteiramente suas. Sempre.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!