Opinião

O Enam e a lacuna previdenciária: contrassenso diante da realidade judicial

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  • é procurador federal em Brasília máster em prevenção de acidentes laborais pela Universidade de Alcalá (Espanha) especialista em Direito de Estado pela UFRGS e professor de pós-graduação em Direito do Trabalho e Previdenciário. Autor do livro Ações Regressivas Acidentárias (editora LTR).

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4 de julho de 2025, 12h20

O Exame Nacional da Magistratura (Enam) surge como um novo paradigma para o ingresso na carreira da magistratura, prometendo uniformidade e aprimoramento na seleção dos futuros juízes.

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No entanto, uma análise atenta de seu conteúdo programático revela uma lacuna preocupante, qual seja, a ausência do direito previdenciário como uma das disciplinas obrigatórias nesse processo de habilitação para os futuros concursos da magistratura promovidos pelos tribunais regionais federais, do trabalho, militares e dos estados e do Distrito Federal.

Este artigo tem como objetivo criticar essa omissão, destacando a dissonância entre o conteúdo exigido no Enam e a realidade estatística do Poder Judiciário brasileiro, onde as ações de natureza previdenciária representam uma parcela expressiva do contencioso judicial, demandando um conhecimento especializado dos(as) magistrados(as) federais e estaduais que irão analisar e julgar essas demandas.

Relevância do direito previdenciário no contexto social e jurídico

O direito previdenciário, longe de ser um ramo secundário do direito, é um pilar fundamental do sistema de seguridade social brasileiro (artigo 194, CF/88), pois, por meio de suas prestações sociais (aposentadorias, pensão por morte, auxílio por incapacidade temporária, salário-maternidade, etc.), garante o sustento de milhares de pessoas em situações de contingências sociais, como nos casos de morte, idade avançada, incapacidade, maternidade, etc.

Integrante do rol de direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição, a Previdência materializa direitos fundamentais que nem sequer são atingidos pela decadência, podendo ser exercidos a qualquer tempo. Isso porque, conforme restou decidido pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar o Tema de Repercussão Geral de nº 313: “Inexiste prazo decadencial para a concessão inicial do benefício previdenciário.”

A complexidade da legislação previdenciária, com suas constantes alterações normativas, as nuances das provas e a sensibilidade dos casos concretos, exige dos operadores do direito um conhecimento jurídico aprofundado e atualizado.

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No âmbito judicial, os litígios previdenciários são notórios pela sua natureza alimentar e pelo volume expressivo. Conforme dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), as ações previdenciárias frequentemente figuram entre as classes processuais mais demandadas, representando um gargalo significativo para a prestação jurisdicional.

Seja no âmbito dos Juizados Especiais Federais, nas varas federais cíveis, ou até mesmo comarcas da Justiça Estadual que exercem a competência absoluta para as ações acidentárias (artigo 109, I, CF/88), bem como a competência delegada (artigo 109, § 3º, CF/88), o direito previdenciário consome uma parte considerável do tempo e dos recursos do Judiciário.

Enam e a dissonância com a prática judicial

O Enam, ao não incluir o direito previdenciário em seu currículo obrigatório, falha em preparar adequadamente os candidatos para uma das realidades mais desafiadoras e volumosas da atividade jurisdicional.

A formação de um(a) magistrado(a) que irá atuar em varas com competência previdenciária, ou mesmo em turmas recursais e tribunais regionais federais, exige um domínio sólido da matéria. A ausência dessa disciplina no exame de nivelamento inicial sugere uma desconsideração da urgência e da dimensão social dos processos previdenciários.

É inconcebível que um(a) futuro(a) juiz(íza), que potencialmente passará grande parte de sua carreira julgando casos previdenciários, não seja testado em seu conhecimento sobre temas como qualidade de segurado, carência, tempo de contribuição, tipos de benefício, revisões previdenciárias, entre outros.

Essa lacuna pode resultar em magistrados menos preparados para lidar com as complexidades desses casos, gerando maior tempo de tramitação processual, insegurança jurídica e, em última instância, prejuízos aos segurados e dependentes que buscam a efetivação de seus direitos.

Argumentos contrários e refutações

Certamente, poder-se-ia argumentar que o Enam busca uma formação mais generalista, focada em princípios e grandes ramos do direito. No entanto, esse argumento não se sustenta diante da proporção avassaladora de processos previdenciários no cenário nacional. A especialização em direito previdenciário não é um luxo, mas uma necessidade imposta pela demanda.

Outro ponto que pode ser levantado é a possibilidade de o(a) magistrado(a) aprender a matéria durante o curso de formação da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam). Embora a Enfam desempenhe um papel crucial, é fundamental que o candidato já possua uma base sólida ao ingressar na magistratura.

Dessa forma, entendemos que o Enam deveria funcionar como um filtro inicial que assegure um mínimo de preparo para os desafios que serão enfrentados, e não como uma porta de entrada para quem ainda não tem contato com uma área tão vital.

Conclusão

A exclusão do direito previdenciário do rol de disciplinas obrigatórias do Enam representa um contrassenso e uma omissão grave. Diante das estatísticas que revelam a predominância de ações previdenciárias no Judiciário brasileiro, é imperativo que o exame de ingresso na magistratura reflita essa realidade.

Para que o Enam cumpra verdadeiramente seu propósito de selecionar os melhores quadros para a magistratura, garantindo uma prestação jurisdicional eficiente e qualificada, é fundamental que haja uma revisão de seu conteúdo programático, com a inclusão da disciplina de direito previdenciário.

Somente assim será possível assegurar que os(as) futuros(as) magistrados(as) estejam devidamente preparados para enfrentar os desafios impostos pela complexidade e pelo volume das demandas previdenciárias, garantindo a efetividade dos direitos sociais e a justiça para os cidadãos.

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