Legitimidade para execução individual de sentença coletiva: Tema 1.302 do STJ
4 de julho de 2025, 13h17
A 1ª Seção do STJ (Superior Tribunal de Justiça) afetou os Recursos Especiais nº 2.146.834/AP e nº 2.146.839/AP, de relatoria do ministro Teodoro Silva Santos, para julgamento sob a sistemática dos recursos repetitivos, catalogando a controvérsia como Tema Repetitivo nº 1.302.

A questão submetida à apreciação da Corte Superior visa a definir se, na hipótese de inexistência de limitação expressa no dispositivo sentencial, todos os servidores integrantes da categoria profissional são legitimados para propor o cumprimento individual de sentença decorrente de ação coletiva proposta por entidade sindical, independentemente de vínculo associativo ou de inclusão em rol nominativo. Embora o julgamento do Tema nº 1.302 ainda esteja pendente de conclusão, antecipa-se um debate jurídico de fundamental importância acerca dos efeitos objetivos e subjetivos da coisa julgada em ações coletivas propostas por sindicatos.
Em face do ordenamento jurídico vigente, depreende-se que a entidade sindical detém a prerrogativa e o encargo de substituir processualmente os integrantes da categoria profissional sob sua representação, em consonância direta com o disposto no artigo 240, alínea “a”, da Lei nº 8.112/90 [1].
A Constituição de 1988 consolidou significativamente o exercício da tutela jurisdicional coletiva, mediante a previsão de instrumentos constitucionais específicos para tal fim (mandado de segurança, ação popular e ação civil pública), e, notadamente, ao consagrar expressamente, no rol dos direitos e garantias fundamentais, a legitimidade das associações e organizações sindicais para atuarem na defesa dos interesses de seus filiados e das categorias que representam (artigo 5º, inciso XXI [2], e artigo 8º, inciso III [3], da Constituição).
A substituição processual sindical, à luz da hermenêutica constitucional contemporânea, deve ser compreendida como atribuição cogente, ou seja, como verdadeiro munus público, e não como mera faculdade da entidade representativa, considerando que o próprio texto constitucional conferiu essa prerrogativa funcional — o poder-dever de substituir processualmente a categoria por ele representada —, seja na esfera administrativa, seja na instância judicial.
Direito individual em ação coletiva
Sob essa perspectiva, infere-se que o exercício do direito de postular individualmente os provimentos jurisdicionais obtidos por meio de uma ação coletiva independe da existência de pleito expresso de extensão dos efeitos subjetivos da coisa julgada pela parte autora.
No plano infraconstitucional, o ápice da tutela coletiva materializa-se com a promulgação da Lei nº 8.078/90. Desta forma, aplicando-o conjuntamente a Lei nº 7.347/85 (Lei da ACP), e, subsidiariamente, com as normas do CPC, consolida-se a estruturação do microssistema processual coletivo brasileiro.
O CDC regula as ações coletivas em consonância com a doutrina e a jurisprudência predominantes, estabelecendo as bases do microssistema das ações coletivas, especialmente em seus artigos 81 e 103. Especificamente no que concerne aos efeitos da coisa julgada coletiva, o artigo 103 estabelece que será erga omnes o efeito decorrente dos provimentos judiciais que julgarem procedentes os pedidos deduzidos em favor de interesses ou direitos individuais homogêneos.
O artigo 81, parágrafo único do CDC preconiza que a defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
- interesses ou direitos difusos, assim entendidos como os transindividuais, de natureza indivisível, que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fatos;
- interesses ou direitos coletivos, assim entendidos como os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;
- interesses ou direitos individuais homogêneos, entendidos como os decorrentes de origem comum.
Essas espécies compõem o gênero dos interesses metaindividuais e, quanto à sua natureza, o STF já se pronunciou, dispondo que:
Direitos ou interesses homogêneos são os que têm a mesma origem comum (art. 81, III, da Lei n. 8.078/90), constituindo-se em subespécie de direitos coletivos. Quer se afirmem interesses coletivos ou particularmente interesses homogêneos, strictu sensu, ambos estão cingidos a uma mesma base jurídica, sendo coletivos, explicitamente dizendo, porque são relativos a grupos, categorias ou classes de pessoas, que conquanto digam respeito às pessoas isoladamente, não se classificam como direitos individuais para o fim de ser vedada a sua defesa em ação civil pública, porque sua concepção finalística destina-se à proteção desses grupos, categorias ou classe de pessoas. [4]
Quanto à possibilidade de restrição dos efeitos da sentença coletiva, adota-se, por pertinência temática, o raciocínio jurídico desenvolvido pela ministra Regina Helena Costa, o qual prevaleceu quando do julgamento do RE nº 2.030.944/RJ. Naquela oportunidade, a 1ª Turma do STJ firmou entendimento no sentido de que:
apenas será lícita a restrição dos efeitos da sentença coletiva a um subgrupo da categoria nos casos em que o direito tutelado, diante de particularidades objetivas, alcance somente parcela dos substituídos. Qualquer limitação promovida abstratamente pelo título, sem observância de parâmetros coerentes de discrímen, acaba por contrariar a própria razão de existir da tutela processual coletiva. [5]
Portanto, é o próprio ordenamento jurídico pátrio, e não a delimitação do pedido, que estabelece o efeito erga omnes da coisa julgada coletiva, estendendo sua eficácia a todos os integrantes da categoria que satisfaçam os requisitos fixados no decisum, ainda que não tenham sido expressamente nominados na demanda coletiva proposta pela entidade sindical, quando se trata de ações que versem sobre direitos individuais homogêneos.
Atuação de organizações sindicais
Por conseguinte, infere-se que as organizações sindicais atuam na defesa dos interesses das categorias que representam, independentemente da peça inicial ter sido instruída ou não com rol exemplificativo de servidores, em observância à própria natureza jurídica da substituição processual no âmbito coletivo.

Segundo Rogério Viola Coelho, o princípio da igualdade perante a lei, previsto no artigo 5º, inciso II, da Constituição, fundamenta a extensão erga omnes dos efeitos das sentenças proferidas em ações coletivas. Tal princípio não apenas veda discriminações na elaboração da norma, mas também impõe a obrigação de igualdade na sua aplicação. Como pontua Coelho (2025), “a extensão dos efeitos da sentença a todo universo de pessoas que são titulares dos mesmos direitos individuais homogêneos, não abrangidos formalmente na ação coletiva, vem assegurar justamente a igualdade de todos na aplicação da lei”.
Em perfeita consonância estão as correntes mais avançadas do constitucionalismo (ou neoconstitucionalismo [6]), eis que a essência desse fenômeno reside na consagração da supremacia constitucional, a qual transcende a mera dimensão formal, impondo-se como parâmetro hermenêutico vinculante a todas as relações jurídicas, notadamente no que tange às matérias abrangidas pelas cláusulas pétreas.
Nesse contexto, promove-se uma ressignificação substancial do conteúdo e da extensão normativa dos diplomas infraconstitucionais, bem como se delineiam novos horizontes interpretativos e possibilidades hermenêuticas para sua interpretação e aplicação no ordenamento jurídico pátrio. Nesse sentido, o professor Pietro de Jesús Lora Alarcón afirma que a Constituição não está condenada a ser um documento retórico de cunho estritamente político, mas um documento jurídico, de disposições obrigatórias e vinculantes.
Nessa perspectiva, a hierarquia da Constituição se deduz na realidade de que a Constituição reproduz um conjunto de escolhas valorativas e finalísticas, que a tornam marco de referência e obrigatória obediência para a validade dos atos normativos do sistema que a ela se sujeitam.
Justiça social
Diante desse cenário, impõe-se que os três Poderes da República orientem sua atuação com base nos princípios e normas fundamentais, de modo a assegurar a efetiva realização da justiça social — valor axiológico central e arduamente perseguido pelo texto constitucional brasileiro. Esse compromisso institucional constitui expressão inequívoca da supremacia material da Constituição, que exige não apenas a concretização dos direitos fundamentais, mas também a superação de desigualdades históricas estruturais que permeiam a sociedade brasileira.
Tal imperativo decorre da própria natureza dirigente da Constituição de 1988, que estabelece um projeto transformador da realidade social, impondo aos entes estatais o dever de implementar políticas públicas voltadas à redução das disparidades socioeconômicas e à promoção da dignidade da pessoa humana.
Sobre a matéria, constata-se que o ordenamento jurídico pátrio ampara o dever de proteção e fortalecimento das medidas coletivas — notadamente pela atuação ampla e legitimada das entidades sindicais —, consolidado a partir do CDC. Esse microssistema processual coletivo brasileiro assegura instrumentos eficazes para a tutela de direitos transindividuais, reafirmando a centralidade da proteção coletiva como elemento indispensável à promoção da justiça social e à realização concreta dos mandamentos constitucionais.
Trata-se de reconhecer que a atividade jurisdicional não se esgota na vontade das partes ou na literalidade da norma invocada, mas envolve um compromisso institucional com a concretização da justiça, inclusive mediante a aplicação de entendimentos consolidados na jurisprudência, cuja função primordial é garantir a isonomia e a segurança jurídica.
Princípio da igualdade
A limitação da eficácia das sentenças proferidas em ações coletivas exclusivamente ao rol de substituídos nominados na petição inicial não apenas afronta o princípio da igualdade, como também expressa discriminação arbitrária, manifestamente incompatível com a própria essência do processo coletivo e com o dever constitucional de promoção da justiça social.
No âmbito específico da atuação jurisdicional, esse exame deve estar orientado pelos métodos hermenêuticos tradicionais — sistemático, histórico, teleológico e lógico —, sempre guiado pelos princípios constitucionais que servem de alicerce à decisão: igualdade material, legalidade, dignidade da pessoa humana, entre outros; bem como pelos postulados da dogmática constitucional, como a unidade e supremacia hierárquica da Constituição, o princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais e a vedação ao retrocesso social, tudo em estrita observância ao projeto político-jurídico traçado pelo constituinte originário em consonância com as exigências do Estado democrático de Direito (ALARCÓN, 2017).
O reconhecimento desse efeito ampliativo reforça a função primordial das entidades representativas na defesa dos direitos coletivos, promovendo maior segurança jurídica e evitando a fragmentação de decisões sobre idêntica matéria de fundo. Em contrapartida, a restrição dos efeitos da coisa julgada exclusivamente aos substituídos que figuraram no processo acarreta, indubitavelmente, o enfraquecimento da atuação sindical, contrariando a finalidade intrínseca das ações coletivas.
Impende ressaltar que as ações coletivas foram concebidas precisamente com a pretensão de ampliar o acesso à Justiça, suprindo a omissão de diversos titulares de direitos subjetivos, em prol dos hipossuficientes que não dispõem de condições de exercer seu direito de forma individual, seja por carência de conhecimento técnico específico, seja por insuficiência de recursos financeiros.
Princípio da economia processual
Ademais, as ações coletivas desempenham função determinante na concretização do princípio da economia processual. O próprio instituto atributivo de eficácia erga omnes às decisões proferidas nas ações coletivas já visava a suprimir eventual opção reducionista das entidades legitimadas, em incluir ou deixar de incluir parcela de trabalhadores substituídos.
Impõe-se reconhecer que todos aqueles que se encontrem na condição jurídica de substituídos processuais pela entidade sindical fazem jus à tutela jurisdicional coletiva, independentemente de constarem ou não em rol nominativo anexado à peça exordial ou mesmo de ostentarem vínculo associativo quando do ajuizamento da demanda, desde que compartilhem da situação funcional que constitui o fundamento fático-jurídico da ação coletiva, assistindo-lhes o direito subjetivo de postular individualmente a execução do título judicial.
Decorre, como desdobramento lógico, a conclusão de que todos os servidores públicos integrantes da categoria profissional representada pela entidade sindical estão revestidos de legitimidade para promover o cumprimento individual da sentença prolatada em sede de ação coletiva proposta pelo ente sindical, sendo prescindível a comprovação de filiação prévia ou de inclusão em listagem específica, em absoluta consonância com a interpretação do sistema de tutela coletiva de direitos, conforme interpretação harmônica dos dispositivos contidos no artigo 8º, inciso III, da Constituição, artigo 240, alínea “a”, da Lei nº 8.112/90 e artigo 103, inciso III, do CDC.
A expectativa em torno do julgamento do Tema nº 1.302 reveste-se de especial relevância, porquanto a decisão a ser proferida pelo Superior Tribunal de Justiça repercutirá significativamente na conformação da tutela coletiva de direitos no ordenamento jurídico brasileiro. A prevalência da tese da eficácia erga omnes, sem dúvidas, corroborará a representatividade das entidades sindicais e beneficiará diretamente todos os trabalhadores abrangidos pela categoria profissional.
É necessário reconhecer que as ações coletivas propostas por entidades sindicais constituem instrumentos essenciais para a correção de injustiças que afetam de forma uniforme e sistemática os membros da categoria profissional por elas representadas. Negar a aplicação dos efeitos das sentenças coletivas com base em exigências meramente formais — como a filiação prévia ao sindicato ou restringir o direito a servidores incluídos nominalmente na petição inicial — é admitir que o rito processual se sobrepõe à realização do direito material, contrariando os princípios da igualdade, da legalidade e da efetividade da tutela jurisdicional.
Quando há violação de direitos coletivos ou individuais homogêneos e essa violação é reconhecida judicialmente por meio de substituição processual legítima, todos os substituídos que se enquadram na situação fático-jurídica debatida devem ter garantido o direito à execução do julgado. Sendo assim, o reconhecimento do efeito erga omnes revela-se mais harmônico com os princípios estruturantes do constituinte, representando a interpretação hermenêutica mais adequada ao microssistema da tutela coletiva e aos fundamentos da Constituição.
[1] Art. 240. Ao servidor público civil é assegurado, nos termos da Constituição Federal, o direito à livre associação sindical e os seguintes direitos, entre outros, dela decorrentes:
- a) de ser representado pelo sindicato, inclusive como substituto processual;
[2] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] XXI – as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente;
[3] Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte: […] III – ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas;
[4] (RE 163231/SP – São Paulo, Relator Min. Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, DJ 29-06-2001).
[5] (STJ – REsp: 2030944 RJ 2022/0316160-5, Relator.: Ministro PAULO SÉRGIO DOMINGUES, Data de Julgamento: 26/11/2024, T1 – PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 11/12/2024).
[6] No Brasil, o jurista, hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luis Roberto Barroso tem especial importância da difusão do discurso neoconstitucionalista. Segundo ele “o neoconstitucionalismo ou novo direito constitucional, na acepção aqui desenvolvida, identifica um conjunto amplo de transformações ocorridas no Estado e no direito constitucional, em meio às quais podem ser assinalados, (i) como marco histórico, a formação do Estado constitucional de direito, cuja consolidação se deu ao longo das décadas finais do século XX; (ii) como marco filosófico, o pós-positivismo, com a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito e ética; e (iii) como marco teórico, o conjunto de mudanças que incluem a força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional” (BARROSO, L. R. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito: o triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Revista da EMERJ, v. 9, nº 33, 2006 , p. 57).
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