Opinião

IOF: Executivo deve se submeter à lei

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4 de julho de 2025, 16h19

Recentemente, o governo alterou diversos aspectos do IOF por meio dos Decretos 12.465/25, 12.466/25 e 12.499/25, o que foi sustado pelo Congresso no Decreto Legislativo 176/25. A questão foi recentemente judicializada no STF (ADC 96, relator ministro Alexandre de Moraes) e coloca em discussão temas centrais do Estado democrático de Direito.

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No regime constitucional brasileiro, a competência tributária primária é do Congresso, que a exerce em nome do povo, seu verdadeiro titular. O Executivo somente pode alterar tributos nos estritos limites da delegação legal, em caráter excepcional. Caso o Executivo não observe os limites ou as condições estabelecidas em lei, o ato será ilegal.

No caso do IOF, o artigo 153, §1º, da Constituição possibilita ao Executivo alterar exclusivamente alíquotas, “atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei”. Os artigos 65 do CTN e 1º, § 2º da Lei nº 8.894/94 reiteram tal permissão, “tendo em vista os objetivos de política monetária ou fiscal. O Congresso, no exercício de sua competência (artigo 49, V, da Constituição), concluiu que os decretos do Executivo extrapolaram os limites da delegação legislativa, inclusive em função da criação de nova hipótese de incidência do imposto sobre operações de “risco sacado”.  Sendo o Congresso o órgão que define, por lei, as condições da delegação, parece inadmissível não possa ele, o delegante, fiscalizar os atos do delegado. É o que será a seguir examinado.

Legalidade tributária enquanto manifestação democrática do povo por meio do Parlamento

A controvérsia em torno da majoração do IOF pelo Poder Executivo deve ser examinada à luz de um princípio basilar do Estado democrático de direito: a legalidade tributária. Desde as revoluções liberais dos séculos 17 e 18, que deram origem às noções modernas de soberania popular, Constituição escrita e separação de poderes, a faculdade de instituir tributos passou a ser compreendida como prerrogativa exclusiva do povo, por meio de seus representantes eleitos no Parlamento, uma decorrência direta do pacto democrático, conforme ensina Jorge Miranda [1].

Essa concepção se expressa na clássica máxima no taxation without representation, nascida das lutas inglesas contra a monarquia e consagrada na Magna Carta de 1215, na Petition of Rights de 1628, na Bill of Rights de 1689 e, posteriormente, nos marcos fundantes do constitucionalismo moderno, como a Revolução Americana, a Revolução Francesa e os movimentos que levaram à independência do Brasil. Conforme lembra Aliomar Baleeiro [2], o princípio da legalidade tributária é “o mais universal” dos princípios constitucionais sobre tributos, estando diretamente vinculado à “razão de ser dos Parlamentos” e ao direito do povo de consentir na imposição de encargos financeiros por meio do voto de seus representantes.

Essa tradição foi incorporada na Constituição brasileira, que, em seu artigo 150, I, proíbe expressamente a exigência ou majoração de tributos “sem lei que o estabeleça”. A norma reconhece ao Congresso Nacional o papel de fonte primária e originária da tributação, reservando ao Executivo competências delegadas por lei ou regulamentares.

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A gênese jurídica é a lei, não o decreto, que atua nos limites e nas condições legais. Tratando-se de delegação balizada, o Executivo há de agir apenas nos limites e nas condições prescritas em lei.

Como advertia Aliomar Baleeiro, “não vale o ato do Poder Executivo, se a lei não o autoriza. Não tem eficácia a lei, para esse fim, se não estabelece condições e limites dentro dos quais deve agir o Poder Executivo. A lei, em tal caso, não pode ser uma carta branca que equivaleria então à delegação de atribuições dum Poder a outro Poder, prática constitucionalmente defesa (artigo 6º, § único)” [3].

Portanto, para que a delegação legislativa seja válida, três requisitos devem ser observados:

  1. a lei deve definir integralmente todos os elementos da hipótese de incidência tributária, inclusive a base de cálculo e a alíquota original — pois só se pode alterar aquilo que já está previamente fixado;
  2. a lei deve explicitar os limites e as condições dentro dos quais o Executivo poderá atuar; e
  3. o exercício da competência delegada deve observar estritamente esses limites e condições [4].

Se o Executivo ultrapassar os parâmetros legais, seu ato será inválido e poderá ser anulado judicialmente ou sustado pelo Congresso Nacional, com fundamento no artigo 49, V, da Constituição e no princípio democrático da legalidade tributária.

Ilegalidade dos decretos do executivo e a validade do Decreto Legislativo 176/2025

A Constituição, em seu artigo 153, §1º, admite que o Poder Executivo possa alterar as alíquotas de determinados tributos federais, entre eles o IOF, desde que atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei”.

Especificamente em relação ao IOF, o artigo 65 do CTN determina que o Poder Executivo pode, nas condições e nos limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas ou as bases de cálculo do imposto, a fim de ajustá-lo aos objetivos da política monetária”.

A Lei nº 8.894/1994, em seu artigo 1º, caput e §2º, autoriza o Executivo a modificar apenas as alíquotas do IOF até o limite máximo de 1,5% ao dia, desde que com vistas aos objetivos das políticas monetária e fiscal:

“§ 2o  O Poder Executivo, obedecidos os limites máximos fixados neste artigo, poderá alterar as alíquotas tendo em vista os objetivos das políticas monetária e fiscal.”

Como se vê, não se trata de poder regulamentar, mas de delegação legislativa necessária para que o Estado possa atuar com a celeridade necessária em determinadas condições e circunstâncias de política monetária ou fiscal, dado o caráter regulatório/extrafiscal do imposto.

Assim, se o Executivo alterar a alíquota do IOF sem observar os limites estabelecidos na lei (vg.: alteração apenas de alíquotas, vinculada a objetivos de política monetária ou fiscal), o ato será ilegal, por extrapolar os limites da delegação legislativa.

Foi o que ocorreu com os Decretos 12.465, 12.466 e 12.499/2025, os quais criaram hipótese de incidência do IOF sobre operações de antecipação de pagamentos a fornecedores (“risco sacado”), sem previsão na Lei 8.894/94, e majoraram alíquotas em relação às outras operações tendo em vista objetivos [5] não previstos em lei para justificar a atuação do Executivo.

Conforme visto, a Lei 8.894/94 apenas permite ao Executivo a alteração de alíquotas, tendo em vista os objetivos das políticas monetária e fiscal. No caso, porém, o Executivo justificou a alteração nas alíquotas para, supostamente, “promover padronização normativa, simplificação operacional e maior neutralidade tributária, objetivos não previstos no rol da delegação legislativa. Tais finalidades, ainda que legítimas, pertencem ao domínio normativo do Congresso, não podendo sustentar validamente a atuação unilateral do Executivo.

Foi nesse contexto que o Decreto Legislativo 176/25 sustou o ato do Executivo com fundamento na exorbitância “dos limites de delegação legislativa” (artigo 49, V, da Constituição). Para tanto, o Congresso Nacional assentou ter havido a criação de nova hipótese de incidência sobre “operações como antecipação de pagamentos” (risco sacado) [6] e constatou que o Decreto do Executivo padece de “ausência de fundamentação técnica e desrespeito ao devido processo legal, agravando o cenário de insegurança jurídica” e “desvirtua a função extrafiscal do IOF, que, por sua natureza constitucional, deve ser utilizado com finalidade regulatória e não como instrumento de arrecadação ordinária.

A utilização do IOF com objetivo arrecadatório, sem a devida discussão legislativa, fere os princípios da legalidade tributária, da capacidade contributiva, do não confisco e da segurança jurídica, comprometendo a previsibilidade e a estabilidade do ambiente econômico e tributário”. (Parecer 87/25-Plen/SF, senador Izalci Lucas – DL 176/25).

É preciso esclarecer que os precedentes do STF, frequentemente citados para legitimar a majoração do IOF por decreto, não se aplicam à hipótese em caso, pois envolvem contextos distintos, especialmente pela ausência, nos casos anteriores, de inovação normativa e controle legislativo do ato pelo Congresso em razão da exorbitância “dos limites de delegação legislativa” (artigo 49, V, da Constituição).

De fato, no ARE 1526741 (relator ministro Gilmar Mendes), manteve-se a constitucionalidade do Decreto 6.3339/08, pois não há evidência de que a majoração do IOF objetivou modificar a natureza jurídica do imposto, de modo a desviar sua finalidade (…) saliento não ser possível afirmar, concretamente, que os recursos provenientes dessa majoração foram efetivamente destinados para os mesmos fins da CPMF”.

No mesmo sentido foi o decidido no RE 788.064-AgR (relator ministro Gilmar Mendes) sobre o mesmo tema. No RE 1.480.048 (relator ministro Edson Fachin), o STF examinou o Decreto que majorou o IOF em razão do programa Auxílio Brasil e assentou não poder alterar os fatos plasmados no acórdão da origem, segundo os quais “a medida (…) observa a finalidade permitida pela legislação de regência, pois tem em vista objetivos de política fiscal”, pois isso seria questão “adstrita ao âmbito infraconstitucional”.

Também no RE 1472012 (relator ministro André Mendonça), o STF deixou de declarar a inconstitucionalidade do mesmo Decreto, sob o fundamento de que “não há nenhuma evidência de que a majoração do IOF, por meio do Decreto nº 10.791, de 2021, objetivou modificar a natureza jurídica do imposto, de modo a desviar sua finalidade e transformá-lo em tributo com arrecadação vinculada.

Como se vê, nos julgados acima, a Corte examinou (e afastou) a hipótese de ocorrência de desvio de finalidade por ausência de indícios de uso do IOF com fins arrecadatórios. Na hipótese em exame, diferentemente, o que está em jogo não é propriamente desvio de finalidade, mas a constatação de inovação normativa pelo Executivo sem amparo em lei. Além disso, enquanto os decretos analisados pelo STF apenas ajustaram as alíquotas, os decretos de 2025 inauguraram hipótese de incidência do IOF sobre operações de antecipação de pagamentos (“risco sacado”) e majoraram alíquotas com base em objetivos não estabelecidos na lei delegante, o que extrapolou os limites da delegação legislativa. Por fim, em nenhum dos precedentes acima houve controle prévio do ato pelo Congresso, o que também distingue as situações.

Conclusão

Admitir que o Poder Executivo possa dispor livremente da tributação, como se tivesse carta branca para majorar alíquotas ou criar hipóteses de incidência não previstas em lei, sem controle institucional, é negar a essência da legalidade, núcleo duro do Estado Democrático de Direito.

Como se viu, os Decretos nº 12.465/25, 12.466/25 e 12.499/25 exorbitam da delegação legislativa ao criarem, sem amparo legal, nova hipótese de incidência do IOF sobre operações de antecipação de pagamento a fornecedores (“risco sacado”).

Além disso, ao majorarem alíquotas com base em justificativas como “padronização normativa”, “simplificação operacional” e “neutralidade tributária”, os decretos descumpriram os limites e condições da delegação, segundo os quais o Executivo apenas pode atuar “tendo em vista os objetivos de política monetária ou fiscal” (Lei 8.894/94).

Por isso, o Decreto Legislativo nº 176/25, ao sustar os atos com base no artigo 49, V, da Constituição, exerceu controle legítimo sobre a delegação conferida e reafirmou que a definição do conteúdo e dos fins da tributação permanece sob a responsabilidade do Parlamento, em respeito à legalidade e à soberania popular: “no taxation without representation”.

Se é o Congresso quem define, por lei, as condições da delegação, é inadmissível que não possa fiscalizar os atos do Executivo. Espera-se que isso seja considerado pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da ADC 96.

 


[1] MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição, Rio de Janeiro: Forense, 2003, pp. 76/77.

[2] BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro, atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 90.

[3] BALEEIRO, Aliomar. Limitações … cit., pág. 30.

[4] SOUZA, Hamilton Dias de. Estrutura do Imposto de Importação no Código Tributário Nacional. 1980, pp. 68/71.

[5]“2. O objetivo da proposta é alterar dispositivos relativos a operações de crédito, câmbio, seguros e títulos e valores mobiliários, com o intuito de promover padronização normativa, simplificação operacional e maior neutralidade tributária, considerando discussões posteriores à edição do Decreto nº 12.466, de 22 de maio de 2025” (Exposição de Motivos Dec. 12.499/25).

[6] “Para as empresas, a alíquota quase dobrou, passando de até 1,88% a.a. para até 3,95% a.a. (geral) e de 0,88% para até 1,95% a.a. (micro e pequenos empresários optantes do Simples – Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006).Ademais, operações como antecipação de pagamento a fornecedores também serão taxadas” (Justificativa DL 176/25 – Deputado Zucco).

Autores

  • é advogado fundador dos escritórios Advocacia Dias de Souza (DF) e Dias de Souza Advogados Associados (SP), mestre e especialista em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), onde lecionou.

  • é advogado sócio da Advocacia Dias de Souza (DF), mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), onde lecionou.

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