Opinião

Fixar horário não é controlar jornada: o erro persistente na aplicação do artigo 62, i da CLT

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4 de julho de 2025, 7h02

A ampliação das ferramentas tecnológicas de monitoramento à distância tem levado parte da jurisprudência a reinterpretar, por vezes com distanciamento do texto legal, o alcance da exceção prevista no artigo 62, inciso I, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que afasta o controle de jornada de empregados cuja atividade é incompatível com a fixação de horário de trabalho. A tendência, verificada em algumas decisões judiciais, é de restringir a aplicação do dispositivo com base em um suposto “controle indireto” por sistemas de geolocalização, roteirização ou inserção de dados em aplicativos corporativos.

Contudo, essa interpretação, embora sedutora do ponto de vista tecnológico, colide frontalmente com a literalidade do artigo 62, I, da CLT, que não exige, para fins de enquadramento na exceção, a total impossibilidade de fiscalização ou a ausência absoluta de meios eletrônicos de acompanhamento da produtividade, mas sim a incompatibilidade com a fixação de horário de trabalho — expressão que deve ser compreendida com a densidade conceitual que o próprio texto legal impõe.

O que significa, de fato, ‘incompatibilidade com a fixação de horário’?

A legislação é clara ao condicionar a inaplicabilidade das regras sobre duração do trabalho à “incompatibilidade com a fixação de horário”. E aqui cabe estabelecer, com precisão técnica, o sentido das expressões centrais.

“Fixação” é o ato de estabelecer de maneira estável um marco inicial e final da jornada de trabalho, de modo a permitir que o empregador, no momento da contratação e na execução cotidiana do contrato, imponha um horário delimitado de início e término das atividades. Já “incompatibilidade”, por sua vez, não comporta gradação: trata-se de uma inconciliabilidade ontológica entre duas realidades que não podem coexistir sem perda de eficácia funcional.

Portanto, o que se exige para a configuração do artigo 62, I, não é a total impossibilidade de controle da jornada, mas a inviabilidade, por natureza da função, de se fixar um horário estável de trabalho. Essa distinção é essencial, pois a própria CLT reconhece que o poder fiscalizatório é inerente à relação de emprego (artigo 2º), mas relativiza a sua aplicação plena quando a atividade desenvolvida não permite o estabelecimento prévio e objetivo dos limites temporais da jornada.

Atividades externas e a (in)viabilidade de fixação de horário

Profissionais que atuam em regime de visitação externa, como representantes comerciais, técnicos de manutenção em campo, inspetores, auditores externos, entre outros, estão frequentemente submetidos a rotinas que dependem de fatores imprevisíveis: alterações de itinerário, disponibilidade de clientes, variações geográficas, volume de atendimento, tempo de deslocamento e até mesmo imprevistos externos como trânsito, clima ou atrasos em recepções.

Spacca

A título ilustrativo, citam-se os propagandistas da indústria farmacêutica, cuja rotina envolve visitas a médicos em consultórios, clínicas e hospitais — ambientes nos quais as urgências médicas frequentemente provocam cancelamentos, adiamentos e longos períodos de espera. Ainda que utilizem sistemas eletrônicos para reportar visitas ou registrar dados comerciais, tais instrumentos não traduzem, com a precisão necessária, o tempo efetivo de labor e tampouco permitem, ex ante, a definição rígida de jornada.

Nesse contexto, a tentativa de caracterizar a utilização de GPS, tablets ou aplicativos de visitação como formas de controle de jornada ignora a diferença entre monitoramento de produtividade (poder diretivo) e fiscalização efetiva de horários (poder de controle). A jurisprudência mais alinhada à realidade prática tem reconhecido essa distinção:

“O fornecimento pelo empregador de equipamentos eletrônicos para lançamento de visitas […] constitui mero acompanhamento das funções […] e não como instrumento de fiscalização de horário de trabalho.” (TRT-4, 7ª Turma, ROT 0021375-59.2017.5.04.0702, j. 1/6/2022)

O respaldo constitucional à prevalência das convenções coletivas

Outro aspecto essencial do debate sobre a jornada dos trabalhadores externos diz respeito à força normativa das cláusulas coletivas que reconhecem a inaplicabilidade do controle de jornada em determinadas categorias. Após o julgamento do Tema 1.046 pelo Supremo Tribunal Federal, firmou-se entendimento vinculante no sentido de que:

“São constitucionais os acordos e as convenções coletivos que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas […] desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis” (RE 1.121.633).

Com base nessa tese, a 5ª Turma do TST reconheceu a validade de cláusula convencional que atribuía à função externa o enquadramento no artigo 62, I, da CLT, afastando condenação imposta por Tribunal Regional que desconsiderara o instrumento coletivo. Na decisão, destacou-se o risco de esvaziamento da autonomia coletiva se o Judiciário insistir em reinterpretações desvinculadas da norma e da realidade do setor:

“Afastar a norma coletiva que atribui a empregados externos a exceção do art. 62, I, da CLT significa desprestigiar a vontade coletiva e a tese firmada no Tema 1.046.” (TST, RR 0001042-86.2017.5.02.0462)

Considerações finais

A tentativa de reconstruir a lógica do artigo 62, I, da CLT com base em tecnologias de monitoramento, por mais sofisticadas que sejam, desconsidera o núcleo do dispositivo legal: a impossibilidade de fixar um horário regular e estável para o trabalho externo. Não se trata de ignorar a evolução dos meios de supervisão, mas de reconhecer que o que está em jogo não é apenas o “saber onde o empregado está”, e sim a capacidade jurídica de estabelecer, de forma coerente com a natureza da atividade, os marcos temporais do início e término do expediente.

Aos operadores do Direito — juízes, advogados, sindicatos — cabe resgatar a literalidade da norma e interpretar o artigo 62, I, da CLT à luz da realidade contratual, da autonomia coletiva e da função constitucional da legislação trabalhista, sob pena de se comprometer a segurança jurídica e desestimular modelos legítimos de atuação externa.

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