HC 828.743/RS: cooperação no combate ao crime transnacional e proteção das garantias
4 de julho de 2025, 19h38
Em um cenário marcado pela intensificação da criminalidade transnacional, impulsionada pela internet e pela mobilidade de pessoas, bens e informações, o enfrentamento de ilícitos penais de escala global — como a exploração sexual infantil — exige uma atuação coordenada entre estados. Nesse contexto, a cooperação internacional tornou-se ferramenta indispensável à persecução penal. No entanto, sua eficácia não pode implicar na relativização das garantias constitucionais asseguradas aos cidadãos brasileiros e, especialmente, às diretrizes dispostas pelo processo penal.

Ministro Sebastião Reis Jr., do STJ
O julgamento do Habeas Corpus nº 828.743-RS, julgado no dia 22/4/2025, relatado pelo ministro Sebastião Reis Júnior, ganha relevo justamente por tratar acerca do delicado equilíbrio entre a necessidade de colaboração entre jurisdições e a observância ao processo legal. A decisão reafirma que informações obtidas por autoridades estrangeiras podem ensejar investigações no Brasil, mas que a validade das provas utilizadas na persecução penal deve observar os parâmetros constitucionais e legais nacionais.
Esse caso fornece uma oportunidade valiosa para discutir os contornos jurídicos da cooperação internacional em matéria penal, especialmente em relação à distinção entre o que seria, de fato, uma notitia criminis estrangeira e produção autônoma de provas no Brasil. Também levanta questões sobre o controle judicial das diligências investigativas originadas em comunicação internacional e os limites da atuação estatal diante do princípio da legalidade, da proteção da dignidade humana e do devido processo.
C caso analisado: do intercâmbio de informações à persecução penal nacional
O processo que deu origem ao HC 828.743-RS teve início com uma comunicação entre as autoridades do Reino Unido e a Polícia Federal brasileira, no contexto de investigações sobre uma rede internacional de pedofilia. Ao identificarem usuários com domicílio no Brasil, as autoridades britânicas repassaram às autoridades nacionais informações sobre possíveis crimes cometidos por cidadãos brasileiros.
A comunicação em questão consistiu, consoante ao considerado pela relatoria, em uma notitia criminis, ou seja, uma notícia da ocorrência de fato típico, sem caráter de elemento probatório.
Nucci (2024), inclusive, dispõe que consiste na ciência, por parte da autoridade policial, da possível ocorrência de um fato criminoso, podendo ocorrer de forma direta, quando o delegado toma conhecimento do delito por meios próprios, durante diligências ou investigações preliminares; ou de forma indireta, quando sua atuação é provocada por terceiros, como a vítima, que comunica o fato, ou ainda por requisição do Ministério Público ou do Poder Judiciário.
A distinção entre o enquadramento da comunicação realizada por autoridade estrangeira como simples notitia criminis — ou seja, mera notícia da ocorrência de possível infração penal — ou como elemento de prova dotado de valor jurídico autônomo, constitui questão central no julgamento do Habeas Corpus nº 828.743/RS. A delimitação não é meramente conceitual, possuindo implicações relevantes no tocante à legalidade da persecução penal e à validade das provas produzidas.

No caso concreto, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que a informação oriunda do Reino Unido teve natureza estritamente informativa, sem configurar prova pré-constituída. A partir dessa notícia inicial, a Polícia Federal conduziu as diligências investigativas de forma autônoma e conforme os parâmetros estabelecidos pelo ordenamento jurídico brasileiro, incluindo as referências relativas à cadeia de custódia.
Dentre essas diligências, destaca-se a expedição de mandado judicial de busca e apreensão, regularmente autorizado por magistrado competente e executado com observância ao devido processo legal, à cadeia de custódia e às garantias constitucionais inerentes à atividade persecutória estatal.
A atuação do Ministério Público Federal e do Judiciário também seguiu os trâmites regulares: foi requerido e autorizado mandado de busca e apreensão, os materiais apreendidos foram periciados por órgãos técnicos nacionais, e o laudo resultante serviu de base para a formulação da acusação. Ou seja, consoante à relatoria, não houve importação de provas ou utilização direta de elementos colhidos no exterior, mas sim o desencadeamento de uma investigação nacional a partir de um dado informativo externo.
Notitia criminis internacional: limites e valor jurídico
Conforme assentado pelo STJ, a notitia criminis internacional não se confunde com prova penal válida e eficaz no âmbito do processo penal brasileiro. Enquanto elemento meramente informativo, cuja finalidade é subsidiar a abertura de procedimento investigativo interno, jamais servir, isoladamente, como fundamento para imputação penal ou condenação.
A função é inauguradora da atuação estatal, devendo esta, a partir de então, desenvolver-se nos estritos marcos do devido processo legal, com observância ao contraditório, à ampla defesa e às demais garantias constitucionais do investigado.
Essa diferenciação assume relevância especial para a preservação da soberania jurisdicional do Estado brasileiro. A aceitação acrítica de provas colhidas no exterior, sem qualquer controle judicial prévio ou respeito às exigências formais da cooperação jurídica internacional, comprometeria a ordem pública nacional, vulneraria a cadeia de custódia e afrontaria diretamente os direitos fundamentais do acusado. Ao reafirmar a necessidade dessa distinção, o STJ contribui não apenas para o fortalecimento da legalidade interna, mas também para a harmonização da jurisprudência brasileira com os compromissos assumidos internacionalmente pelo país, em estrita conformidade com os princípios constitucionais que regem a persecução penal em um Estado Democrático de Direito.
Além disso, a decisão lança luz sobre a aplicação de tratados internacionais, como a Convenção de Budapeste sobre Crime Cibernético (2001), cujo teor prevê cooperação entre autoridades policiais de diferentes países, mas exige o cumprimento das normas internas de cada Estado para a admissibilidade de provas. Assim, a cooperação internacional deve se pautar por protocolos que não dispensem as garantias processuais nacionais, sob pena de nulidade da persecução.
Legalidade da investigação no Brasil: autonomia e validade das provas
Um dos aspectos centrais destacados no acórdão é a demonstração de que todas as provas que embasaram a condenação foram colhidas integralmente em território nacional, em estrita conformidade com a Constituição, com o Código de Processo Penal e com os princípios do contraditório e da ampla defesa.
A atuação das instituições brasileiras — Polícia Federal, Ministério Público e Poder Judiciário — ocorreu de forma autônoma e independente, sem qualquer subordinação ao procedimento investigativo estrangeiro. A persecução penal observou, rigorosamente, uma cadeia procedimental nacional que se iniciou motivada pela notícia-crime internacional, e seguiu com a análise do Ministério Público, culminando no requerimento de medidas cautelares.
Após apreciação judicial, houve a autorização fundamentada para a realização de busca e apreensão, sendo os dispositivos eletrônicos recolhidos submetidos à perícia técnica por órgãos brasileiros competentes. A denúncia, por sua vez, foi formulada exclusivamente com base na prova produzida sob autoridade e controle do sistema de justiça nacional.
Trata-se, portanto, não de prova “importada” — cuja admissibilidade exigiria a observância formal de mecanismos de cooperação jurídica internacional, como carta rogatória ou acordo bilateral —, mas de prova produzida nacionalmente, ainda que motivada por uma notícia externa.
Ao reconhecer essa distinção, o Superior Tribunal de Justiça reafirma sua jurisprudência no sentido de que a validade da prova penal está necessariamente condicionada à sua conformidade com os requisitos legais internos. Alegações de ilicitude ou contaminação probatória somente se sustentam quando fundadas em vícios concretos na obtenção das provas, e não, de modo exclusivo, na origem enquanto notitia criminis.
Conclusão
O julgamento do Habeas Corpus nº 828.743/RS constitui relevante marco para a consolidação de um modelo de cooperação penal internacional fundado nos princípios da legalidade, da proporcionalidade e do respeito à soberania jurisdicional. Em um cenário de crescente complexidade da criminalidade transnacional — que envolve delitos como a exploração sexual infantil, o tráfico de pessoas, a lavagem de capitais e os crimes cibernéticos — a atuação articulada entre autoridades de distintos países torna-se indispensável. Contudo, deve operar sob rígidos controles normativos e institucionais, com a finalidade de assegurar sua plena compatibilidade com os direitos fundamentais consagrados no ordenamento jurídico brasileiro.
A lógica cooperativa, por mais que se justifique em razão da necessidade de resposta eficaz aos crimes transnacionais, não pode servir de pretexto para o enfraquecimento das garantias processuais. Nesse sentido, a exigência de autorização judicial para a realização de medidas invasivas, a supervisão do Ministério Público sobre a atividade investigativa e a observância do contraditório na produção de provas são expressões do devido processo legal e pilares estruturantes do Estado Democrático de Direito.
O precedente analisado também ressalta a importância de que as instituições brasileiras — como a Polícia Federal, o Ministério Público e o Poder Judiciário — estejam adequadamente preparadas, técnica e juridicamente, para o manuseio de instrumentos de cooperação internacional. Em especial, diante da sofisticação dos crimes praticados por meio digital, torna-se essencial a construção de práticas que aliem celeridade e legalidade, sem abrir mão do controle jurisdicional e da proteção das liberdades individuais.
Ao reconhecer que a notitia criminis estrangeira pode ser legítimo ponto de partida para a instauração de inquérito policial no Brasil — desde que a produção probatória subsequente respeite os requisitos formais e materiais do processo penal nacional — o STJ reafirma a possibilidade de compatibilizar a atuação cooperativa entre Estados com a preservação do núcleo essencial das garantias constitucionais. Trata-se de um importante passo no desenvolvimento de uma doutrina penal que harmonize a eficácia investigativa com os limites impostos pelo Estado de Direito.
A decisão evidencia, ainda, que a validade das provas em contextos transnacionais está condicionada à sua obtenção dentro dos marcos legais brasileiros. Qualquer afastamento desse parâmetro compromete não apenas a legalidade das decisões judiciais, mas também a própria legitimidade da atuação punitiva do Estado. Combater o crime, por mais grave que seja, não autoriza a erosão das garantias processuais; ao contrário, exige ainda mais rigor na observância das normas que conferem racionalidade e justiça à persecução penal.
O desafio que se impõe, portanto, ultrapassa a fixação do precedente. Exige-se agora sua implementação efetiva, o que passa pela atuação coordenada das instituições democráticas, pelo fortalecimento de mecanismos formais de cooperação jurídica internacional e pela consolidação de práticas investigativas que combinem técnica, celeridade e fidelidade ao texto constitucional. Somente assim será possível enfrentar os desafios contemporâneos da criminalidade transnacional sem sacrificar os fundamentos que sustentam o Estado Democrático de Direito.
Referências
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 828.743/RS. Relator: Ministro Sebastião Reis Júnior. 6ª Turma. Julgado em 22 abr. 2025.
BRASIL. Decreto nº 11.491, de 12 de abril de 2023. Promulga a “Convenção sobre o Crime Cibernético”, firmada em Budapeste em 23 de novembro de 2001. Diário Oficial da União: Seção 1, Brasília, DF, 13 abr. 2023.
NUCCI, Guilherme de S. Código de Processo Penal Comentado – 23ª Edição 2024. 23. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024. E-book. p.68. ISBN 9788530994303. Disponível aqui
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