Contratações no Sistema S e aplicação da Lei nº 14.133/2021
4 de julho de 2025, 11h23
A despeito de não integrarem propriamente a estrutura da administração pública [1], seja das administrações diretas, autárquicas e fundacionais (regidas pela Lei nº 14.133/2021 para fins de contratações), seja da administração indireta (sujeita à Lei nº 13.303/2016), as entidades do 3º Setor, recebedoras de contribuições parafiscais e prestadoras de serviços de interesse público ou social, encontram-se sob a jurisdição do Tribunal de Contas da União [2].
No âmbito do TCU, há muito é pacífico o entendimento de que as licitações nas entidades do Sistema “S” são regidas por normativos próprios, respeitados os princípios encartados no caput do artigo 37 da Constituição e em normas infraconstitucionais que disciplinam contratações públicas. Segundo a referida Corte de Contas, prevalece para o Sistema S a necessidade de maior autonomia administrativa e adoção de um regime jurídico diferenciado, resguardando o poder discricionário que lhe é ínsito (Acórdão nº 2522/2009-TCU — 2ª Câmara, relator: ministro Raimundo Carreiro).
Sob a ótica do TCU, embora as entidades integrantes do Sistema S tenham natureza jurídica de direito privado, estão sujeitas à observância dos princípios gerais que norteiam a execução da despesa pública, por gerirem recursos de natureza pública, cabendo-lhes editar regulamentos próprios de licitações e contratos que guardem coerência com tais princípios.
Logo, assim como restou assentado na vigência das revogadas Leis 8.666/1993 (Lei Geral de Licitações e Contratos) e 10.520/2002 (Lei do Pregão), é correto afirmar que a Lei nº 14.133/2021 não é cogente em relação a tais entidades [3], nem estas deveriam aplicá-la subsidiariamente em casos de lacuna ou omissão, salvo se tal procedimento estivesse formalmente previsto nos regulamentos próprios.
Em síntese, as entidades do Sistema S não se sujeitam à estrita observância dos procedimentos previstos na Lei nº 14.133/2021, mas sim ao conteúdo dos seus regulamentos, que devem se pautar pelos princípios gerais das contratações públicas, hoje formalmente explicitados no artigo 5º da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (NLLCA) [4].
Aplicação suplementar
Muito embora a flexibilidade dos regulamentos editados por tais entidades paraestatais seja atrativa o bastante para dispensar o aproveitamento de uma lei mais intransigente e menos maleável, de dificultosa aplicabilidade prática, alguns conceitos, institutos e dispositivos da Lei nº 14.133/2021 podem ser sim aplicados, mas de forma supletiva, por analogia, desde que haja compatibilidade sistêmica, observadas as especificidades de cada entidade, e mediante o indispensável disciplinamento nos regulamentos próprios.

Um bom exemplo é o sistema de nulidades previsto nos artigos 147 e 148 da NLLCA, haja vista que a ratio que orienta a análise consequencialista que antecede eventual declaração de nulidade do processo licitatório ou do contrato – que é o da preservação da execução contratual e da primazia da entrega do objeto pactuado – pode sim ser transposta para o regime jurídico das contratações realizadas pelas entidades do Sistema S.
Outras situações de compatibilidade sistêmica que vislumbramos: necessidade de aprovação jurídica das minutas de editais, contratos e termos aditivos (artigo 53 da Lei nº 14.133/2021); utilização do procedimento auxiliar de “credenciamento” (artigo 79); adoção da ordem cronológica de pagamento (artigo 141); exigência de programa de integridade (artigos 60, inciso IV; 156, § 1º, inciso V; e 163, parágrafo único); definição de infrações e respectivas sanções (artigos 155 e 156); e detalhamento dos mecanismos de reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos (reajuste, repactuação e revisão).
Outros exemplos envolveriam, em essência, a absorção de boas práticas, como as previstas nos artigos 11, parágrafo único, e 18 da NLLCA, em especial: governança (envolvimento direto da alta administração), planejamento das contratações, elaboração de estudos técnicos preliminares e gerenciamento de riscos.
Não é demais ressaltar que eventual omissão no regulamento próprio apta a autorizar a aplicação supletiva da Lei nº 14.133/2021 deve ser analisada à luz do contexto finalístico das entidades do 3º Setor, jamais com base na simples racionalidade da NLLCA. Afinal de contas, a ausência de determinada norma pode ser daqueles silêncios eloquentes e cheios de sentido, que desautorizam que se cogite a existência de lacunas ou mesmo a aplicação analógica.
Enfim, a edição da Lei nº 14.133/2021 é uma excelente oportunidade para as entidades do Sistema S adaptarem suas contratações às especificidades de atuação do 3º Setor, mediante a atualização dos regulamentos próprios, verificando o que pode ser melhorado, acrescentando disposições faltantes e excluindo previsões desnecessárias ou incompatíveis, tendo agora como referencial a NLLCA e suas implicações no regime jurídico dessas entidades.
[1] Nesse sentido, o STF apreciou a matéria no RE 789.784: “Os serviços sociais autônomos integrantes do denominado Sistema “S”, vinculados a entidades patronais de grau superior e patrocinados basicamente por recursos recolhidos do próprio setor produtivo beneficiado, ostentam natureza de pessoa jurídica de direito privado e não integram a Administração Pública, embora colaborem com ela na execução de atividades de relevante significado social. Tanto a Constituição Federal de 1988, como a correspondente legislação de regência (como a Lei 8.706/93, que criou o Serviço Social do Trabalho – SEST) asseguram autonomia administrativa a essas entidades, sujeitas, formalmente, apenas ao controle finalístico, pelo Tribunal de Contas, da aplicação dos recursos recebidos”.
[2] Nesse sentido, o inciso V do art. 5º da Lei nº 8.443/1992 – Lei Orgânica do TCU – preconiza:
Art. 5º – A jurisdição do tribunal abrange:
V – os responsáveis por entidades dotadas de personalidade jurídica de direito privado que recebam contribuições parafiscais e prestem serviço de interesse público ou social.
[3] O próprio art. 1º da Lei nº 14.133/2021 reforça esse entendimento, ao indicar os órgãos e as entidades que a ela se subordinam:
Art. 1º Esta Lei estabelece normas gerais de licitação e contratação para as Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e abrange:
I – os órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário da União, dos Estados e do Distrito Federal e os órgãos do Poder Legislativo dos Municípios, quando no desempenho de função administrativa;
II – os fundos especiais e as demais entidades controladas direta ou indiretamente pela Administração Pública.
[4] Art. 5º Na aplicação desta Lei, serão observados os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da eficiência, do interesse público, da probidade administrativa, da igualdade, do planejamento, da transparência, da eficácia, da segregação de funções, da motivação, da vinculação ao edital, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da competitividade, da proporcionalidade, da celeridade, da economicidade e do desenvolvimento nacional sustentável, assim como as disposições do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).
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