A voz de Turim: alento e esperança para os ítalo-descendentes
4 de julho de 2025, 18h17
A recente remessa do Tribunal de Turim à Corte Costituzionale, questionando a legitimidade constitucional da Lei 74/2025 — que alterou substancialmente a Lei 91/92 sobre cidadania italiana iure sanguinis — representa um dos debates mais sensíveis e complexos do Direito italiano contemporâneo.

O cerne da controvérsia reside na introdução do artigo 3-bis à Lei 91/92, que, em termos práticos, restringe drasticamente o reconhecimento da cidadania italiana para descendentes de italianos nascidos no exterior e já titulares de outra cidadania, caso não tenham apresentado pedido administrativo ou judicial até 27 de março de 2025. O Tribunal de Turim, ao analisar o caso de descendentes de italianos nascidos na Venezuela, expôs uma série de questões de legitimidade constitucional e de compatibilidade internacional que merecem análise detida [1].
O ponto de partida do raciocínio do juiz Fabrizio Alessandria é a natureza do direito à cidadania iure sanguinis no ordenamento italiano. A jurisprudência consolidada da Corte di Cassazione e da própria Corte Costituzionale sempre reconheceu que a cidadania por descendência é adquirida originariamente no momento do nascimento, sendo um direito subjetivo perfeito, imprescritível e indisponível, que não depende de reconhecimento formal, mas apenas de prova da linha de transmissão [2].
O reconhecimento judicial ou administrativo, portanto, tem natureza meramente declaratória, não constitutiva [3]. Essa compreensão é fundamental, pois implica que qualquer restrição retroativa ao exercício desse direito, como a introduzida pela Lei 74/2025, não se limita a regular expectativas, mas atinge direitos já incorporados ao patrimônio jurídico dos indivíduos [4].
A Lei 74/2025, ao estabelecer que “é considerado não ter jamais adquirido a cidadania italiana quem nasceu no exterior antes da entrada em vigor do presente artigo e é titular de outra cidadania”, salvo exceções muito restritas, opera uma verdadeira revogação retroativa da cidadania para todos aqueles que não tenham apresentado pedido até a data-limite [5].
O Tribunal de Turim destaca que tal mecanismo não encontra paralelo razoável nem mesmo em sistemas jurídicos estrangeiros, como o alemão, que, ao reformar sua legislação sobre cidadania, previu a aplicação das novas restrições apenas para nascimentos futuros, respeitando o princípio da irretroatividade e da proteção da confiança legítima [6].
A primeira e mais evidente questão de legitimidade levantada pelo juiz de Turim refere-se à violação dos princípios constitucionais da igualdade e da razoabilidade, consagrados nos artigos 2 e 3 da Constituição Italiana. A lei cria uma distinção arbitrária entre aqueles que, por acaso, apresentaram pedido antes de 27 de março de 2025 e aqueles que, por razões alheias à sua vontade — como a impossibilidade administrativa de protocolar pedidos em consulados, especialmente no caso de descendentes por linha materna antes de 1948 —, não o fizeram [7]. Não há qualquer fundamento objetivo que justifique tal discriminação, o que afronta o princípio da igualdade e o princípio da proteção da confiança legítima, ambos reiteradamente afirmados pela Corte Costituzionale, inclusive em matéria previdenciária e de cidadania [8].
Neste contexto, é oportuno recordar as palavras de Luca Sommi em seu livro La più bella, que sintetizam o espírito da Constituição italiana: “È bella, giusta, poetica, gentile, generosa la nostra Costituzione. È scritta come una poesia ma è rigorosa, non ammette che la si contraddica. Considera tutti i cittadini e le cittadine uguali, dal più povero al più ricco, senza distinzione di sesso, di razza, di religione, di lingua, di orientamento politico, di condizioni sociali ed economiche” [9]. Essa não apenas proclama a igualdade formal, mas exige que o legislador respeite a igualdade substancial de todos, sem exceção. A Lei 74/2025, ao criar distinções arbitrárias e retroativas, parece colidir frontalmente com esse ideal constitucional, que é ao mesmo tempo poético e rigoroso, generoso e inflexível quanto à sua observância.
Além disso, a retroatividade da restrição, sem qualquer mecanismo de direito intertemporal que permita aos interessados se adaptarem à nova legislação, viola o princípio da segurança jurídica [10]. O Tribunal de Turim cita precedentes da Corte Costituzionale que reconhecem a existência de “direitos adquiridos” e a necessidade de respeito ao grau de consolidação das situações jurídicas, especialmente quando há jurisprudência pacífica e prolongada reconhecendo determinado direito, como é o caso da cidadania iure sanguinis [11]. A ausência de uma “janela” razoável para adaptação, como previsto em outros ordenamentos, agrava a arbitrariedade da medida.
Violações
Outro ponto central da argumentação do juiz Alessandria é a violação do artigo 22 da Constituição, que proíbe a privação da cidadania por motivos políticos, e do artigo 117, que impõe o respeito aos compromissos internacionais assumidos pela Itália. O juiz destaca que, embora o texto constitucional fale em “motivos políticos”, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 15, §2º) e o Quarto Protocolo Adicional à Convenção Europeia dos Direitos Humanos (art. 3, §2º) proíbem a privação arbitrária da cidadania, conceito mais amplo que abrange qualquer medida injustificada, desproporcional ou irrazoável [12]. A revogação automática e retroativa da cidadania, sem exame individualizado das consequências para os afetados e sem possibilidade de defesa, configura, segundo a jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos e do Tribunal de Justiça da União Europeia, uma privação arbitrária [13].

No plano do direito da União Europeia, a restrição imposta pela Lei 74/2025 repercute diretamente sobre o status de cidadão europeu, já que a cidadania italiana é pressuposto para a cidadania da União. O Tribunal de Turim invoca a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, que exige que qualquer medida de perda de cidadania nacional — e, por consequência, da cidadania europeia — seja precedida de exame individualizado e proporcional, com possibilidade de defesa e de apresentação de pedido de conservação ou recuperação da cidadania [14].
A lei italiana, ao prever a perda automática e retroativa, sem qualquer mecanismo de salvaguarda, viola os artigos 9 do Tratado da União Europeia e 20 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, além de afrontar o princípio do primado do direito da União [15].
O juiz Alessandria também ressalta que a medida legislativa não pode ser justificada por razões de ordem pública, segurança nacional ou outros interesses superiores, pois não há qualquer alegação de que os afetados tenham cometido atos contrários ao interesse nacional ou renunciado voluntariamente à cidadania. Trata-se, ao contrário, de uma restrição baseada exclusivamente em critérios formais e temporais, desprovidos de razoabilidade e desproporcionais em relação ao objetivo declarado de limitar o fenômeno da cidadania iure sanguinis para descendentes de italianos no exterior [16].
Excepcional e ilegítima
A análise comparada reforça a ilegitimidade da opção legislativa italiana. O exemplo alemão, citado na decisão, demonstra que reformas restritivas em matéria de cidadania podem ser implementadas de forma prospectiva, respeitando direitos já adquiridos e oferecendo mecanismos de transição razoáveis [17]. A ausência de qualquer previsão semelhante na Lei 74/2025 evidencia o caráter excepcional e, portanto, suspeito da medida italiana.
Por fim, o Tribunal de Turim sugere que, caso a Corte Costituzionale reconheça a inconstitucionalidade parcial do artigo 3-bis, seria possível preservar o objetivo legítimo da reforma — a introdução do critério do “genuine link” — mediante a previsão de um regime intertemporal que permita aos interessados apresentar pedido de reconhecimento da cidadania em prazo razoável após a entrada em vigor da nova lei¹⁸. Tal solução conciliaria a necessidade de atualização legislativa com o respeito aos direitos fundamentais e à segurança jurídica, em consonância com os parâmetros constitucionais e internacionais.
Em conclusão, a remessa do Tribunal de Turim à Corte Costituzionale evidencia que a Lei 74/2025, ao restringir retroativamente o reconhecimento da cidadania italiana iure sanguinis para descendentes de italianos nascidos no exterior, suscita graves dúvidas de legitimidade constitucional e de compatibilidade com os compromissos internacionais assumidos pela Itália. A medida afronta os princípios da igualdade, da razoabilidade, da proteção da confiança legítima, da segurança jurídica e da proibição de privação arbitrária da cidadania, além de violar o direito da União Europeia e tratados internacionais de direitos humanos. A expectativa é que a Corte Costituzionale, ao julgar a questão, reafirme a centralidade dos direitos fundamentais e da proteção dos direitos adquiridos no ordenamento italiano, promovendo uma interpretação que harmonize a necessidade de atualização legislativa com o respeito à dignidade e à segurança jurídica dos cidadãos, em plena sintonia com o espírito generoso, rigoroso e igualitário da Constituição italiana.
In bocca al lupo!
Notas de rodapé:
1. Ordinanza do Tribunal de Turim, 25/06/2025, remessa à Corte Costituzionale sobre a Lei 74/2025.
2. Cass. civ., Sez. Un., sent. n. 4466/2009; Cass. civ., Sez. Un., sent. n. 25318/2022.
3. Cass. civ., Sez. Un., sent. n. 29459/2019.
4. Corte Costituzionale, sent. n. 70/2024; Cass. civ., Sez. Un., sent. n. 25318/2022.
5. Art. 3-bis, Lei 91/1992, introduzido pelo D.L. 36/2025, convertido na Lei 74/2025.
6. Staatsangehörigkeitsgesetz (StAG), art. 4(4), reforma de 1999, Alemanha.
7. Ordinanza do Tribunal de Turim, 25/06/2025, p. 5-6.
8. Corte Costituzionale, sent. n. 69/2014; sent. n. 169/2022.
9. Luca Sommi, La più bella, Feltrinelli, 2022, p. 13. Tradução livre do autor: “É bela, justa, poética, gentil, generosa a nossa Constituição. É escrita como uma poesia, mas é rigorosa, não admite que seja contradita. Considera todos os cidadãos e cidadãs iguais, do mais pobre ao mais rico, sem distinção de sexo, de raça, de religião, de língua, de orientação política, de condições sociais e econômicas.”
10. Corte Costituzionale, sent. n. 69/2014; sent. n. 70/2024.
11. Corte Costituzionale, sent. n. 70/2024; Cass. civ., Sez. Un., sent. n. 4466/2009.
12. Declaração Universal dos Direitos Humanos, art. 15(2); Quarto Protocolo Adicional à CEDH, art. 3(2).
13. CEDH, sent. 12/03/2019, Tjebbes e a., C-221/17; CJUE, sent. 5/09/2023, C-689/21.
14. CJUE, sent. 2/03/2010, Rottmann, C-135/08; sent. 12/03/2019, Tjebbes, C-221/17; sent. 5/09/2023, C-689/21.
15. Tratado da União Europeia, art. 9; Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, art. 20.
16. Ordinanza do Tribunal de Turim, 25/06/2025, p. 13-14.
17. Staatsangehörigkeitsgesetz (StAG), art. 4(4), Alemanha; Ordinanza do Tribunal de Turim, 25/06/2025, p. 13.
18. Ordinanza do Tribunal de Turim, 25/06/2025, p. 19-20.
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