O Judiciário, a inteligência artificial e o paradoxo: se der certo, deu errado
3 de julho de 2025, 9h17
A inteligência artificial é a grande revolução, diz o Judiciário brasileiro. Ninguém no mundo pensa assim, mas aqui somos vanguarda “iluminista” da humanidade.

O Conselho Nacional de Justiça tomou a frente. O robô Maria faz coisas que ninguém imagina, como resumir um processo de 20 volumes em 5 páginas, ao algo desse tipo. Se o robô faz bem o trabalho, impossível de dizer. Afinal, quem vai conferir os vinte volumes? E se for fazer isso, por que pediu para o robô?
O Rio Grande do Sul disponibilizou IA para várias camadas de decisões. Entre os recursos desenvolvidos está a Gaia Minuta (gosto dos nomes dos robôs: Gaia, Hércules, Maria, Victor), ferramenta que sugere minutas de decisões aos magistrados de 1º e 2º grau. Quando acionado, o mecanismo analisará os dados do processo e buscará referência no acervo de despachos anteriores daquele magistrado para apresentar uma proposta de decisão, que levará em conta inclusive o estilo de escrita de cada juiz. Vejam: até o estilo do magistrado!
Leio agora que o Tribunal de Justiça de Santa Catarina capacitará 800 magistrados e servidores do 1º grau para aplicação da IA. Diz a notícia que o TJ-SC capacitará no próximo mês de agosto todos os magistrados das 400 unidades judiciárias do 1º grau, além de um assessor de cada juiz, para utilização da inteligência artificial (IA).
Como diz o juiz Romano José Enzweiler,
“Quando você coloca um determinado número de documentos na ferramenta, não há risco de ‘alucinação’. Isso é fácil de confirmar, porque cada tópico vem com a citação da fonte de arquivo onde a informação foi pesquisada. Por isso, estamos fazendo o letramento dos colegas.”
De acordo com o diretor da Academia Judicial, o objetivo é testar o maior número de ferramentas de IA para saber qual é a melhor para a necessidade do Judiciário catarinense. “Quando a máquina é instruída corretamente, ela não erra”, completou o juiz Romano Enzweiler.
Pronto. Já não haverá mais erros. Com a IA, até mesmo os embargos de declaração serão dispensados. Afinal, como um IA pode deixar omissões, obscuridades ou ser contraditória? Nem pensar. Causídicos: tirai vossos cavalos da chuva. Todos rumo à meta REsp Zero e RE Zero — o dia em que já não haverá recursos ao STJ e ao STF. E na sequência Apelação Zero, já que, bem manejada, como diz o juiz romano, a IA vai proporcionar o acerto 100: “quando a máquina é instruída corretamente, ela não erra”.
Genial, não? A petição de princípio é latente. O que é “bem instruída”? Quem faz as perguntas às quais o robô dá as respostas?
Mais: se o juiz estiver certo, ele está errado. Pois o seu trabalho passa a ser de um primeiro nível: o de alimentar uma ferramenta com subsídios. Só que esses subsídios, num segundo momento, virão do material jurídico filtrado… pela IA. Bingo. A solução do judiciário sobrecarregado é tornar-se inútil? O que restará para os juízes fazerem?
O que dizer sobre isso? Alguém se atreve?
De todo modo, admito que isso faz algum sentido. Afinal, se a máquina “for bem instruída” — como dizem o técnico e o juiz romano — , dará a resposta certa. Porque
- eventual recurso será examinado por outra máquina,
- que, devidamente “bem instruída”,
- dirá que a anterior está correta. Questão de lógica.
- As máquinas não podem se contradizer, certo?
- Se não for assim, o sistema entrará em curto-circuito.
De todo modo, descobrimos que o Judiciário já é chamado de “organização”, nas palavras do assessor técnico da Divisão de TI do TJ-SC:
“Trabalhamos no foco das perguntas realizadas à IA para obtermos a resposta correta. Nossa missão é evitar os erros, que podem comprometer a reputação da organização. Para isso, trabalhamos na capacitação dos colaboradores. Assim, a intenção é encontrar soluções para os valores departamentais e, posteriormente, poder evoluir para os objetivos da organização. Atualmente, estamos desenvolvendo casos de uso com foco no 2º grau de jurisdição. Uma das funcionalidades é o agrupamento de sentenças similares de 1º grau para o auxílio das decisões de 2º grau.”
E eu teimando em dizer que o Judiciário é uma instituição. Já uma organização é uma coisa diferente.
No mesmo encontro, foi dito que:
“É urgente criar um centro de apoio digital para os juízes, para que num momento como esse eu não precise nomear um perito. Uma coisa é saber o que é, outra é poder aplicar. Daí a diferença entre alfabetização, letramento, inclusão e exclusão digital. Essa experiência é árdua, mas muito legal. Parece-me que hoje, em um diálogo sobre tecnologia, a gente conversa com pessoas que fingem que sabem o que estão falando. Isso é grave em diversos níveis, principalmente para a educação.”
Quer dizer, não basta que o Estado gaste com a máquina administrativa, concursos, contratar funcionários bem remunerados, cursos para juízes, muitos com mestrado e doutorado cursados sob os auspícios do Estado. Não. Agora vem uma nova etapa a ser seguida, com a alfabetização digital, o letramento digital, a inclusão digital.
De todo modo, devo estar incluído na exclusão digital, porque sou jurássico. Talvez porque eu acho que decisão (sentença, acórdão) é uma coisa a ser feita pelo agente político do Estado – o juiz. Não por uma máquina.
Mas, enfim, já não é assim.
Post scriptum: “— Uma máquina faz melhor uma coisa para a qual você estudou cinco anos?”
Numa palavra, há nisso uma questão paradoxal para a qual os protagonistas e entusiastas não se atentaram. Trata-se de um paradoxo: se o uso da IA der certo, então já deu errado. Explico: se o uso da IA melhorar o sistema todo, trazendo inclusive graus mínimos de decisões erradas (erradas em que sentido? Erradas segundo a IA?), então é porque a mão humana fracassou. A máquina é melhor. Ora, se a máquina é melhor do que nós (juízes, professores etc.), então nosso projeto humano falhou. Perdemos.
Que ruim é isso, pois não? Como disse um jovem advogado: “ – Ah, o Chat faz petição muitíssimo melhor do que eu”. Respondi a ele: “ – e você acha isso bonito? Isso não lhe diz nada? Uma máquina faz melhor uma coisa para a qual você estudou cinco anos?” E fechei com um gauchês: bah!
A propósito: na contramão do Brasil, na Europa nem aceitam a carteira de motorista digital. E nem assinatura digital. Devem ser atrasados esses europeus. Tão atrasados que nem usam IA nos julgamentos e não possuem processos eletrônicos. O Brasil é, realmente, vanguarda iluminista… (contém ironia).
Ainda numa palavra:
- se o juiz usa a IA e decide;
- então o tribunal usa a IA para decidir a apelação e assim por diante…
- o resultado é absolutamente previsível? Deve ser.
- Sim, porque, se a IA é exata, sequer haverá recursos.
- Se houver, já se saberá o resultado. STJ? Nem falar. Com a IA previsível, já não haverá recursos.
- Porque máquina contra máquina tem de dar empate. E isso é impossível.
- Os adictos e adeptos da IA (inclusive de Santa Catarina) podem responder.
- Resta saber se esse é o sistema que querem(os). E se é um sistema que querem implodir. Porque se a IA funciona, não pode haver recursos. Ou ela não funciona. Perceb? O sistema tende a se auto implodir. Ou ele fracassará.
Enfim, ao fim e ao cabo, todos teremos tempo para jogar golfe. E já não haverá “sextou”. Será “quintou”! Ou talvez “quartou”! Ou até “terçou”!
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