ISS nos serviços de construção civil: arbitrariedades dos municípios
3 de julho de 2025, 15h23
Da prática advocatícia não nos faltam exemplos de municípios que, ardilosamente, vêm impondo a cobrança do Imposto Sobre Serviço (ISS) relacionado às atividades de construção civil de forma antecipada aos tomadores dos serviços como condição para emissão dos respectivos alvarás de construção.

Diversos municípios vêm inovando o regramento estabelecido pela Lei Complementar 116/2003, calculando o ISS por meio do arbitramento da base de cálculo e impondo o pagamento antes mesmo da ocorrência do fato gerador como condição para início das obras.
Inicialmente, é preciso dizer que o ISS, conforme estabelecido pelo artigo 1º da LC 116/2003, tem como fato gerador a prestação de serviços.
Por sua vez, a base de cálculo é, nos termos do artigo 7º da mesma norma, o preço efetivamente cobrado pelo serviço.
Ainda que a legislação federal tenha atribuído aos municípios, em seu artigo 6º, a possibilidade de estabelecer “a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação”, não significa que tenha dado carta branca para o cometimento de arbitrariedades.
Obrigação tributária
Em outras palavras, mesmo nas hipóteses de responsabilidade tributária, não se pode admitir que os municípios adotem meios que distorçam a ideia estabelecida pelo artigo 16 do Código Tributário Nacional, segundo o qual só há obrigação tributária com a ocorrência do fato gerador.
Outrossim, ao exigirem o pagamento do ISS antes mesmo da efetiva prestação do serviço, os entes municipais violam frontalmente o artigo 148 do Código Tributário Nacional, que permite o arbitramento da base de cálculo tão somente quando presentes declarações, esclarecimentos ou documentos omissos, ou que não mereçam fé, prestados pelo sujeito passivo ou por terceiro legalmente obrigado.
Sobre o assunto Hugo de Brito Machado Segundo deixa claro que:
[…] não é possível à autoridade estabelecer, previamente, pautas com valores e preços predeterminados, a título de presunção absoluta, como acontece em algumas repartições fiscais, nas quais se presume que certos bens têm determinado preço, e mesmo que o contribuinte declare e comprove, por documentação idônea, que o preço efetivamente praticado foi menor, o lançamento é feito sobre o valor presumido.
Lógica invertida
Pois é justamente o que vem sendo praticado. Inverte-se a lógica. Presume-se a futura ocorrência dos requisitos do artigo 148 do CTN.

Parte-se da presunção de que o responsável tributário tomador do serviço não reterá na fonte o valor do imposto devido e, por isso, de imediato, antes mesmo do início da obra, realizam o lançamento tributário utilizando base de cálculo arbitrada.
O que se observa, na verdade, é o uso escancarado da sistemática como meio indireto de coerção ao pagamento de tributo, pois impõe que o tomador do serviço realize o pagamento antecipado como condição para obter a concessão de seu alvará de construção.
Sobre o tema o Tribunal de Justiça de São Paulo em recente julgado já se posicionou:
DIREITO TRIBUTÁRIO. REEXAME NECESSÁRIO. INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO JURÍDICO-TRIBUTÁRIA. REEXAME NECESSÁRIO NÃO PROVIDO. I. Caso em Exame Ação declaratória de inexistência de relação jurídico-tributária proposta pelo Município de Ribeirão Preto, decorrente de ISS sobre construção civil, envolvendo incorporação em imóvel próprio e serviços tomados de terceiros. Revisão de ofício dos lançamentos pelo fisco municipal. II. Questão em Discussão 2. A questão em discussão consiste na impossibilidade de alteração da base de cálculo do ISS por meio de aplicação de valores apurados em pauta fiscal, e na vedação da utilização de meio indireto de coerção, como a concessão do “Habite-se” condicionada ao pagamento do ISSQN. III. Razões de Decidir 3. A base de cálculo do ISS é o preço do serviço, não podendo ser alterada por valores apurados em pauta fiscal, conforme o artigo 148 do Código Tributário Nacional. 4. A concessão do “Habite-se” não pode ser condicionada ao pagamento do ISSQN, em razão da vedação de meio indireto de coerção para pagamento de tributo, conforme as Súmulas 70, 323 e 547 do Supremo Tribunal Federal. IV. Dispositivo e Tese 5. Reexame necessário não provido. Tese de julgamento: 1. A base de cálculo do ISS deve ser o preço do serviço. 2. É vedada a utilização de meio indireto de coerção para pagamento de tributo. Legislação Citada: Código Tributário Nacional, art. 148. Jurisprudência Citada: STF, Súmulas 70, 323 e 547. (TJSP; Remessa Necessária Cível 1055049-43.2023.8.26.0506; Relator (a): Raul De Felice; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Público; Foro de Ribeirão Preto – 2ª Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 07/05/2025; Data de Registro: 07/05/2025)
Evidente, portanto, que a utilização da cobrança antecipada como meio indireto de coerção ao pagamento de tributos já vem sendo rechaçado pelo Poder Judiciário.
Prática dos Fiscos
Pois bem, de tudo o que foi dito chegamos à conclusão de que a sistemática adotada pelos Fiscos municipais é nula com base nos seguintes argumentos:
- cobrança do tributo vem sendo realizada antes do fato gerador
- arbitramento da base de cálculo vem sendo realizado sem justificativa legal
- utilização da cobrança antecipada vem sendo realizada como meio indireto de coerção ao pagamento de tributo
A respeito de todas as irregularidades apontadas acima, a Terceira Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, no julgamento da Apelação n. 0302988-33.2018.8.24.0005, de relatoria do desembargador Sandro José Neis se posicionou no seguinte sentido:
“a considerar que a Lei Complementar n. 116/2003 já estabeleceu a forma que ocorre o cálculo do imposto devido, não há como admitir a realização de cálculo por estimativa e a inclusão de outras variáveis, sob pena de macular a higidez da exação.
E mais, na forma como apresentada a demanda, observa-se que o Município exigiu o pagamento do ISS devido pelo contribuinte como “condição para a outorga do ‘Habite-se’ […]”
Ocorre que tal providência não se coaduna com as regras que regem o ISS e que estabelecem o efetivo “preço do serviço” como critério quantitativo desse tributo. Aliás, é vedado que o Ente Fiscal se utilize de meios coercitivos para, por via oblíqua, forçar o contribuinte ao recolhimento de tributos de forma diversa.
Assim, de fato, não pode subsistir a atitude do município em apenas conceder o “habite-se” fundado unicamente no recolhimento do ISS, tendo em vista que a expedição desse documento, tratando-se de ato vinculado, deve estar subordinada ao exame da adequação da obra às exigências municipais relativas à segurança da habitação, e não ao pagamento daquele tributo, já que a Administração Pública dispõe de meios específicos para a sua cobrança.”
Ainda:
APELAÇÃO CÍVEL. EXECUÇÃO FISCAL PROPOSTA PELO MUNICÍPIO DE WITMARSUM. TAXA DE ALVARÁ DE CONSTRUÇÃO E ISS. EMBARGOS ACOLHIDOS. INSURGÊNCIA DA MUNICIPALIDADE. PRELIMINARDE CERCEAMENTO DE DEFESA AFASTADA. DESNECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA. MATÉRIAEMINENTEMENTE DE DIREITO. PROVA DOCUMENTAL SUFICIENTE PARA O DESLINDE DACONTROVÉRSIA. EXIGÊNCIA DE RECOLHIMENTO DO ISS POR ESTIMATIVA, ANTES DA EXPEDIÇÃO DO ALVARÁ. IMPOSSIBILIDADE. OBRA SEQUER INICIADA. FATO GERADOR NÃO VERIFICADO. SENTENÇAMANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (TJSC, Apelação n. 5001321-72.2021.8.24.0141, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Margani de Mello,Quinta Câmara de Direito Público, j. 01-08-2023, grifou-se).
“ISSQN PAUTA FISCAL Município de Ribeirão Preto Ação ordinária julgada procedente Ilegitimidade da cobrança Base de cálculo estipulada segundo pauta de preços mínimos, expedida por ato do Poder Executivo Inadmissibilidade Inobservância do art. 148 do CTN Súmula nº 431 do STJ Precedentes desta 15ª Câmara de Direito Público Recursos não providos.” (Apelação / Remessa Necessária nº 1039910-90.2019.8.26.0506; Relator (a): Erbetta Filho; 15ª Câmara de Direito Público; Foro de Ribeirão Preto Julg. 16/02/2023)
Ainda, em ação de repetição de indébito tributário de Imposto Sobre Serviço — Construção Civil, o Tribunal de Justiça de São Paulo em 23 de agosto de 2024, nos autos da Apelação n° 1052748-66.2019.8.26.0053, decidiu que o contribuinte deve ser ressarcido dos valores pagos indevidamente:
AÇÃO DE REPETIÇÃO DE INDÉBITO. ISSQN (construção civil). Município de São Paulo. Lançamento complementar em virtude de saldo apurado com base em aplicação de pauta fiscal (valor unitário mínimo de mão de obra por metro quadrado de construção) prevista nas Portarias SMF 257/83 e SMF 295/2016. Impossibilidade. ISS que tem como base de cálculo o real preço do serviço tomado/prestado. Ilegalidade da cobrança do aludido tributo com base em pauta fiscal mínima estabelecida por ato administrativo do Poder Executivo. Inteligência do art. 9º do Decreto-Lei nº 406/68 e art. 7º da Lei nº 116/2003. Fisco que nem sequer observou os princípios do contraditório e ampla defesa em regular procedimento administrativo para apuração do real valor devido a título de ISS, uma vez verificadas dúvidas nas declarações da responsável tributário quando do lançamento por homologação. Violação do art. 148 do CTN verificada. Precedentes desta C. Corte e do E. STJ. Cumprimento das exigências do art. 166 do CTN no vertente caso. Sentença mantida. Recursos oficial e voluntário da Municipalidade improvidos.
Conclusão
Chegamos à conclusão, portanto, de que a atual sistemática adotada por diversos municípios brasileiros por meio da cobrança antecipada do ISS sobre serviços de Construção Civil — com base em pautas fiscais e como condição para concessão de alvarás — vem contrariando frontalmente a Constituição, o Código Tributário Nacional e a Lei Complementar nº 116/2003.
Cabe, desse modo, a todos aqueles que atuam na área de construção civil, sejam pessoas físicas ou jurídicas, agirem com cautela ao submeter projetos à aprovação dos Fiscos Municipais, sob pena de realizarem pagamentos indevidos.
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