Depoimento especial: papel do juiz de garantias na proteção de crianças e adolescentes
3 de julho de 2025, 6h04
A persistente revitimização de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, apesar da vigência da Lei nº 13.431/2017, representa grave falha sistêmica no Brasil. Essa legislação, de caráter protetivo e garantista, estabelece diretrizes para a escuta especializada e o depoimento especial, determinando que a criança ou adolescente seja ouvida uma única vez, em ambiente adequado e por profissional capacitado, com o intuito de evitar traumas adicionais decorrentes da repetição de seu relato.

No entanto, a prática institucional ainda revela um descompasso com os preceitos legais, permitindo que a vítima seja submetida a múltiplas oitivas durante a investigação e o curso do processo penal, situação que compromete sua integridade psíquica e viola princípios fundamentais do processo penal e da proteção integral.
O combate à revitimização de crianças e adolescentes, vítimas de violências e abusos sexuais, que são chamadas para serem ouvidas diversas vezes, seja na fase do inquérito seja na fase processual na produção da prova, tendo que reviver traumas pela simples ausência de uma padronização para escuta como prova antecipada, uma única vez, violando a própria Lei 13.431/2017, gera um grave problema na proteção dessas vítimas, que tem seus direitos violados pelo próprio Poder Judiciário, o que caracteriza a chamada violência institucional.
De acordo com a Lei nº 14.321/2022, violência institucional consiste em submeter a vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade a situação de violência ou outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização.
Diante desse cenário, o Tribunal de Justiça do Ceará (TJ-CE), por meio de seu Núcleo de Cooperação Judiciária, instituiu um fluxo padronizado para a produção antecipada de prova em casos de violência sexual infantojuvenil, inspirado nos princípios da cooperação judiciária interinstitucional e na utilização racional da tecnologia processual. Essa medida, que tem como base normativa a Lei nº 13.431/2017 e as Resoluções do Conselho Nacional de Justiça, objetiva assegurar a escuta única, tempestiva e qualificada da vítima, respeitando o devido processo legal e a dignidade da pessoa humana, especialmente em sua dimensão infantojuvenil.

A produção antecipada de prova, prevista no artigo 156, I, do Código de Processo Penal, permite ao juiz determinar a realização de diligência probatória relevante e urgente, antes mesmo do oferecimento da denúncia. No contexto da violência sexual contra crianças e adolescentes, essa previsão legal harmoniza-se com o artigo 11 da Lei nº 13.431/2017, que assegura o depoimento especial judicial como técnica apropriada para a escuta protegida, garantindo o contraditório e a ampla defesa.
Complementarmente, a Resolução CNJ nº 299/2019 normatiza o uso do depoimento especial no âmbito do Judiciário, enquanto a Resolução CNJ nº 350/2020 institui as diretrizes da cooperação judiciária nacional. Já a Resolução CNJ nº 562/2024 introduz parâmetros para a atuação do juiz das garantias, consolidando sua compatibilidade com práticas protetivas e céleres, como a produção antecipada de prova.
Estruturação do fluxo e compatibilidade com o modelo de juiz das garantias
O fluxo foi formalizado por meio do Termo de Cooperação Interinstitucional nº 04/2023, celebrado entre o TJ-CE, o Ministério Público, a Defensoria Pública, a Polícia Civil, a Ordem dos Advogados do Brasil e o Núcleo de Depoimento Especial (Nudepe). Tal instrumento estabelece os compromissos de cada instituição na operacionalização do fluxo, garantindo que a oitiva da criança ou adolescente vítima de violência sexual ocorra de maneira unificada, com qualidade técnica, observância do contraditório e no menor tempo possível após o registro do fato. O protocolo estabelece ainda que o depoimento deve ser realizado por profissional capacitado, em espaço adequado, com registro audiovisual e observância dos parâmetros legais.
A operacionalização do fluxo ocorre via Sistema, com o uso dos códigos das Tabelas Processuais Unificadas (TPU) do CNJ que dispões sobre cooperação judiciária, o que viabiliza a movimentação eletrônica célere entre o juiz do Núcleo de Garantias, que no Ceará funciona de forma regionalizada, e o juiz da comarca do domicílio da vítima, responsável pela realização da oitiva. Essa sistemática processual elimina a necessidade de expedição de cartas precatórias, promovendo maior agilidade, segurança jurídica e economia de tempo processual, ao mesmo tempo em que assegura que a vítima seja ouvida em seu próprio território, com menor deslocamento e exposição.
No que tange à produção antecipada de prova, o Código de Processo Penal, em seu artigo 156, I, dispõe o seguinte:
“Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)
I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)”
Como se vê, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, segundo a literalidade do CPP, pode ser determinada pelo(a) magistrado(a) antes de iniciada a ação penal.
A Resolução nº 562, de 3 de junho de 2024 instituiu diretrizes de política judiciária para a estruturação, implantação e funcionamento do juiz das garantias no âmbito da Justiça Federal, Eleitoral, Militar, e dos estados, Distrito Federal e territórios, altera e acrescenta dispositivos da Resolução CNJ nº 213/2015, que dispõe sobre a apresentação de toda pessoa presa à autoridade judicial no prazo de 24 horas, conforme julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 sobre a Lei nº 13.964/2019.
O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal até o oferecimento da denúncia, marco a partir do qual passa a atuar o juiz da instrução da ação penal.
Dispõe a Resolução, em seu artigo 2º, que “os tribunais, no exercício da autonomia administrativa e financeira garantida pela Constituição Federal, definirão a estrutura e o funcionamento do instituto do juiz das garantias, consideradas suas particularidades demográficas, geográficas, administrativas e financeira”.
O artigo 12, por sua vez prevê expressamente que “na estruturação e implementação do juiz das garantias, os tribunais, com base na Resolução CNJ nº 350/2020, e no âmbito da cooperação interinstitucional, adotarão soluções administrativas e de organização judiciária dialogadas e articuladas entre todos os órgãos e instituições envolvidas, considerando os efeitos advindos para as partes, a Defensoria Pública, o Ministério Público, a Ordem dos Advogados do Brasil, os órgãos de segurança pública, de perícia técnica e de administração prisional”. Com essas considerações e utilizando dessa ferramenta extraordinária que é a cooperação, o fluxo foi estruturado.
A partir do recebimento da representação pela autoridade policial ou pelo Ministério Público, o juiz das garantias, lotado no Núcleo de Custódia, analisa o pedido de produção antecipada da prova, que pode ocorrer no prazo de até 24 horas. Sendo deferido, o processo é redistribuído eletronicamente, mediante código específico de cooperação da TPU do CNJ, à unidade judiciária do domicílio da vítima. Essa unidade realiza a designação da audiência, providencia a intimação das partes e requisita o profissional entrevistador forense. Após a oitiva, a gravação audiovisual é anexada aos autos e o processo é remetido de volta ao núcleo de origem, compondo o inquérito principal.
Ressalte-se que em contexto de violência doméstica, a competência do inquérito não será do juiz de garantias, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.298 DF.
Esse modelo organizativo adotado pelo TJ-CE foi formalmente reconhecido e consolidado por meio da Resolução do Tribunal Pleno nº 14/2024, que regulamenta a implantação do juiz das garantias no âmbito da Justiça cearense. Essa norma estabelece a cisão funcional entre o juiz das garantias e o juiz da instrução, bem como confirma a competência dos Núcleos Regionais de Custódia e das Garantias para deliberar sobre pedidos de produção antecipada de provas nos crimes de violência contra crianças e adolescentes, nos termos do artigo 3º da referida resolução. Com isso, institucionaliza-se o fluxo protetivo de escuta única, garantindo maior previsibilidade e segurança jurídica na atuação interinstitucional.
Com isso, o fluxo da produção antecipada de prova em situações de violência sexual contra crianças e adolescente já está de acordo com a Resolução 562/2024 do CNJ, respeitando o modelo e os protocolos adotados nacional e internacionalmente.
Capacitação e efetividade
Ciente da carência de entrevistadores forenses nos quadros do Poder Judiciário, o Núcleo de Depoimento Especial do TJ-CE (Nudepe) promoveu, ao final de 2023, um processo de capacitação de 40 servidores das varas com competência criminal. Essa iniciativa, de natureza estruturante e pedagógica, ampliou significativamente a capacidade técnica e territorial do sistema de justiça cearense, possibilitando a realização do depoimento especial em diversas comarcas e garantindo o atendimento às vítimas com qualidade técnica e respeito aos protocolos normativos.
A qualificação dos servidores envolveu formação teórica e prática sobre o protocolo brasileiro de entrevista forense, fundamentos da escuta protegida, ética na abordagem da vítima e o uso de equipamentos adequados para a gravação e conservação da prova. Com essa estrutura consolidada, a decisão judicial para a realização do depoimento especial tem sido proferida no prazo de 24 horas após o recebimento da representação, o que permite que a oitiva ocorra com brevidade e precisão, em momento processual próximo ao dos fatos, minimizando o risco de apagamento da memória e garantindo maior confiabilidade ao relato da vítima.
Resultados e perspectivas
O impacto do novo fluxo tem sido expressivo. Casos que anteriormente permaneciam paralisados por longos períodos, em razão da indisponibilidade de profissional habilitado ou da morosidade na tramitação de cartas precatórias, passaram a ser resolvidos com maior celeridade e efetividade. O uso racional da tecnologia, associado à articulação institucional eficiente, permitiu o avanço substancial no combate à revitimização, garantindo a centralidade da vítima no sistema de justiça.
Um exemplo emblemático dessa efetividade foi o julgamento de um caso de violência sexual contra adolescente na Comarca de Ipu, interior do Ceará, finalizado em tempo recorde de 30 dias entre o registro do fato e a sentença condenatória. O feito foi viabilizado por meio do fluxo de produção antecipada de prova e oitiva protegida, com atuação coordenada entre os órgãos envolvidos. O caso foi destacado institucionalmente pelo TJ-CE como paradigma de celeridade e respeito à dignidade da vítima.
Dados do Ministério da Saúde, reunidos entre 2015 e 2021, revelam mais de 200 mil casos notificados de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil. Tal realidade impõe a adoção de respostas institucionais articuladas, efetivas e sensíveis às especificidades da infância. A criação de fluxos padronizados, pautados na cooperação judiciária e na atuação técnica qualificada, mostra-se não apenas recomendável, mas imprescindível para o enfrentamento da violência institucional e a afirmação dos direitos fundamentais das vítimas.
Considerações finais
A centralidade da vítima, a articulação interinstitucional, a valorização da produção antecipada de prova e o respeito ao contraditório são pilares de um novo paradigma de atuação judicial em casos de violência sexual infantojuvenil, que rompe com a lógica de revitimização e afirma o compromisso institucional com a proteção integral.
O fortalecimento desse modelo é medida que se impõe não apenas por razões humanitárias ou éticas, mas como exigência jurídico-normativa derivada do ordenamento constitucional brasileiro e dos compromissos internacionais assumidos pelo país. O depoimento especial, conduzido com técnica, brevidade e respeito, é um instrumento de justiça e de reparação simbólica. Ao promovê-lo, o Poder Judiciário reafirma seu papel como garantidor de direitos e promotor de dignidade, garantindo a celeridade e a eficiência que o processo exige.
Referências
BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017. Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência. Diário Oficial da União, 5 abr. 2017.
BRASIL. Ministério da Saúde. BRASIL Boletim Epidemiológico. Volume 54. nº.8. Disponível aqui5.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.298. Relator: Min. Luiz Fux. Brasília, DF, jul. 2023. Disponível aqui.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 299, de 10 de setembro de 2019.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 350, de 27 de outubro de 2020.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 562, de 8 de fevereiro de 2024.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO CEARÁ. Crime sexual contra adolescente é julgado em tempo recorde de 30 dias na Comarca de Ipu. 14 fev. 2024. Disponível aqui.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO CEARÁ. Resolução do Tribunal Pleno nº 14, de 17 de outubro de 2024. Dispõe sobre a implantação e funcionamento do juiz das garantias no âmbito do Poder Judiciário do Estado do Ceará. Diário da Justiça Eletrônico Administrativo do Estado do Ceará, ed. 3415. Disponível aqui.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO CEARÁ. Termo de Cooperação Interinstitucional nº 04/2023. Fortaleza, 2023. Disponível aqui.
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