Opinião

Causa como elemento essencial do ato administrativo: da legalidade e da razoabilidade

3 de julho de 2025, 11h18

A prática administrativa, não raro, opera como se o simples cumprimento formal dos requisitos legais fosse suficiente para legitimar os atos administrativos do poder público. Contudo, na prática, a legitimidade administrativa não pode ser aferida apenas pela legalidade literal dos atos, é preciso uma análise mais profunda e substancial. É nesse contexto que o conceito de causa como novo elemento, tantas vezes negligenciado pela doutrina e jurisprudência, revela-se essencial para a compreensão da estrutura e da validade do ato administrativo.

Tomaz Silva / Agência Brasil

Considere dois pedidos de dispensa feitos por servidores públicos: no primeiro, o funcionário solicita liberação do expediente para realizar compras pessoais, e a autoridade, sem análise crítica, defere o pedido; no segundo, outro servidor solicita dispensa para acompanhar o filho menor a uma consulta médica de urgência, apresentando a devida comprovação, e tem seu pedido igualmente atendido. Em ambos os casos, o motivo é verdadeiro e o conteúdo — a concessão da dispensa — é juridicamente possível. No entanto, apenas no segundo exemplo há coerência entre o motivo e o conteúdo do ato, pois existe uma causa legítima que justifica a decisão em conformidade com a finalidade pública.

Em verdade, no primeiro, a ausência de causa — ou seja, a falta de conexão racional entre a justificativa apresentada e a medida concedida — compromete a validade do ato administrativo, evidenciando a importância da causalidade como elemento essencial à legalidade e à legitimidade dos atos praticados pela administração.

Elo racional

A causa, como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, não se confunde com o motivo. O motivo corresponde aos pressupostos de fato e de direito que justificam a prática do ato; o objeto é o conteúdo do ato, aquilo que ele determina; a finalidade é o interesse público visado. A causa, por sua vez, é a correlação lógica entre o motivo e o conteúdo do ato, considerada a finalidade pública. É o elo racional que confere sentido e legitimidade à decisão administrativa. Sem causa, ainda que o motivo seja verdadeiro e o objeto possível, o ato poderá ser inválido por ausência de coerência interna.

A importância dessa concepção se torna clara quando aplicada a situações concretas. Tome-se, por exemplo, o recente caso ocorrido no município do Rio de Janeiro, onde a prefeitura editou novas regras para o uso das praias da cidade. Entre as medidas, proibiu-se o uso de caixas térmicas grandes, tendas e outros itens, sob o argumento de “ordenamento urbano” e “segurança pública”. Em um primeiro olhar, o motivo parece legítimo: garantir a organização e evitar tumultos. No entanto, ao analisar a causa — isto é, a relação entre esse motivo e o conteúdo do ato —, surgem dúvidas quanto à sua legitimidade.

Spacca

Ora, é razoável concluir que o uso de uma caixa térmica grande, por si só, compromete a segurança pública ou o ordenamento urbano? Tal objeto é amplamente utilizado por famílias, especialmente de menor poder aquisitivo, para armazenar mais alimentos e bebidas durante longas permanências na praia. Proibir genericamente esse item, sem qualquer distinção de uso, não se conecta logicamente ao motivo invocado. O resultado prático é a penalização indireta da pobreza, sob a aparência de uma norma neutra. Há, portanto, motivo e objeto formalmente presentes, mas a causa — o nexo racional entre eles — é arbitrária, o que compromete a validade do ato.

O que se evidencia, nesse caso, é um descompasso entre o argumento utilizado e a medida tomada, em clara violação ao princípio da proporcionalidade e da razoabilidade administrativa.

Causa simulada

Outro exemplo paradigmático envolve a exoneração de um servidor ocupante de cargo em comissão. Suponha-se que o servidor, até então bem avaliado, seja subitamente exonerado sob a justificativa de “quebra de confiança”, o que, em regra, se insere na esfera da discricionariedade do gestor. Contudo, descobre-se que a exoneração ocorreu dias após o servidor ter denunciado irregularidades no setor em que atuava, envolvendo, inclusive, seu superior imediato.

Ora, nessa situação, o motivo alegado é “quebra de confiança” e o objeto é a exoneração. No entanto, a causa — a lógica entre o motivo e o ato — se revela simulada. A desconfiança alegada não decorre de nenhum fato funcional legítimo, mas de uma retaliação velada. Ainda que a exoneração de cargos comissionados seja, em tese, discricionária, não pode servir de escudo para o desvio de finalidade disfarçado. Quando a causa do ato é falsa ou ilógica, o ato está viciado, sendo inválido.

Um outro exemplo, comum em políticas urbanísticas, é a revogação de uma licença de construção em razão de nova orientação política adotada pela administração. Imagine-se um cidadão que obteve, por meios legais, licença para construir em determinado bairro. Meses depois, a prefeitura, com base em nova diretriz ambiental, revoga a licença unilateralmente.

No caso supracitado, o motivo alegado é a mudança na política pública. O objeto é a revogação da licença. A causa, porém, mostra-se desequilibrada: a nova diretriz não pode retroagir para atingir licenças regularmente expedidas e já em execução, sem previsão legal específica ou justa indenização.

Portanto, o descompasso entre o motivo e o conteúdo do ato configura ausência de causa válida. Trata-se de medida arbitrária que fere princípios como a proteção da confiança legítima e a segurança jurídica.

Os exemplos supracitados mostram que a análise da causa é essencial para a verificação da legitimidade substancial do ato administrativo. Não basta que a administração pública alegue um motivo genérico e pratique o ato. É preciso demonstrar que o motivo sustenta logicamente o conteúdo do ato, de modo proporcional e orientado à finalidade pública. A racionalidade do ato administrativo se expressa exatamente pela existência de uma causa válida.

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