A fiscalização ambiental e a diretriz da prevalência da atuação do órgão licenciador
3 de julho de 2025, 20h50
A fiscalização ambiental é instrumento essencial de concretização do direito fundamental ao meio ambiente equilibrado, previsto no caput do artigo 225 da Constituição, uma vez que o seu objetivo é garantir o cumprimento dos padrões de qualidade determinados pela norma ou pelos órgãos ambientais. Trata-se de um conjunto de ações administrativas voltadas à verificação do cumprimento da legislação com o objetivo de prevenir, corrigir ou reprimir condutas ecologicamente lesivas.

A sua relevância consiste na capacidade de tornar efetiva a norma, por meio do poder de polícia do órgão ambiental, a quem cabe assegurar que as atividades potencial e efetivamente poluidoras atuem em conformidade com os parâmetros legais e com as condições impostas pelo licenciamento ambiental. Isso implica dizer que ela serve tanto para orientar, esclarecer e induzir comportamentos ambientalmente adequados quanto para dissuadir e punir condutas irregulares.
As espécies de fiscalização incluem a fiscalização direta, que é realizada no lugar da atividade, quando a fiscalização indireta, que se dá por meio da análise de documentos e cruzamento de dados. Hoje em dia a tecnologia é cada vez mais usada como apoio pelos fiscais de meio ambiente, como drones, laboratórios, satélites e softwares.
A fiscalização ambiental está diretamente ligada à aplicação das sanções administrativas previstas na Lei 9.605/1998 (Lei dos Crimes e das Infrações Administrativas Ambientais) e no Decreto 6.514/2008, que dispõe sobre as infrações e sanções administrativas ao meio ambiente e estabelece o processo administrativo federal para apuração destas infrações. Inobstante seja federal, cumpre dizer que esse decreto é usado diretamente por muitos estados e municípios, ao passo que outros fazem uso de regras inspiradas nele, de forma que a sua importância extrapola a esfera federal.
As sanções administrativas ambientais previstas nas normas citadas são advertência, multa simples, multa diária, embargos, apreensão de bens e produtos, demolição etc. São medidas de coerção e dissuasão, marcada pelas características da autoexecutoriedade, da tipicidade e da finalidade pública, cuja aplicação está condicionada à regular atuação fiscalizatória.
Regulamentação e a prevalência da atuação do órgão licenciador
O Brasil é uma Federação marcada pelos três níveis de poder, que são o federal, o estadual e o municipal [1], possuindo todos eles, nos termos do artigo 23 da Constituição de 1988, competência administrativa comum em matéria ambiental, especialmente para proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas. Essa competência comum impõe uma atuação articulada, cooperativa e integrada entre os entes federativos, exigindo clareza quanto às responsabilidades de cada esfera de governo na execução de ações de controle, fiscalização e licenciamento.

Para regulamentar essa matéria foi editada a Lei Complementar nº 140/2011, que regulamentou os incisos III, VI e VII do caput e do parágrafo único do dispositivo constitucional mencionado, e fixou a cooperação entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção do meio ambiente. A razão de ser dessa lei, cuja edição foi prevista constitucionalmente, como muitas outras leis complementares, foi disciplinar o federalismo ecológico brasileiro, procurando garantir que haja ordem, coordenação e delimitação de responsabilidades.
A Lei Complementar nº 140/2011 representou um enorme avanço ao estabelecer, nos seus artigos 7º, 8º, 9º, 10 e 17, critérios objetivos de distribuição de competências administrativas ambientais entre os entes federativos, bem como ao delimitar os instrumentos de cooperação institucional (como consórcios públicos, convênios, acordos de cooperação técnica e outros mecanismos previstos no artigo 4º). O pilar da repartição de competências administrativas ambientais é a diretriz ou o princípio da prevalência do órgão licenciador, segundo o qual a responsabilidade pela fiscalização de determinada atividade deve recair prioritariamente sobre o ente que concedeu a licença ambiental.
Na realidade, essa diretriz tem fundamentos técnicos e práticos. O órgão licenciador é aquele que detém maior conhecimento sobre as especificidades do empreendimento, especialmente no que diz respeito às condições impostas na licença. Afinal de contas, a ele coube analisar o projeto, as alternativas tecnológicas e a alternativa locacional, além de avaliar o estudo ambiental e definir as condicionantes.
Demais, a fiscalização por parte do órgão que licenciou, ou que seria o responsável pelo licenciamento ambiental da atividade no caso concreto, promove maior segurança jurídica, evita a sobreposição de atuações e assegura a coerência entre licenciamento e controle. Daí a Lei Complementar nº 140/2011 dispor sobre o assunto de forma expressa a reiterada em quatro momentos distintos:
“Art. 7º. São ações administrativas da União:
(…)
XIII – exercer o controle e fiscalizar as atividades e empreendimentos cuja atribuição para licenciar ou autorizar, ambientalmente, for cometida à União;
(…)
Art. 8º. São ações administrativas dos Estados:
(…)
XIII – exercer o controle e fiscalizar as atividades e empreendimentos cuja atribuição para licenciar ou autorizar, ambientalmente, for cometida aos Estados;
(…)
Art. 9º. São ações administrativas dos Municípios:
(…)
XIII – exercer o controle e fiscalizar as atividades e empreendimentos cuja atribuição para licenciar ou autorizar, ambientalmente, for cometida ao Município;
(…)
Art. 17. Compete ao órgão responsável pelo licenciamento ou autorização, conforme o caso, de um empreendimento ou atividade, lavrar auto de infração ambiental e instaurar processo administrativo para a apuração de infrações à legislação ambiental cometidas pelo empreendimento ou atividade licenciada ou autorizada.
(…)”
Assim, a regra geral da Lei Complementar nº 140/2011 é a prevalência da atuação do órgão licenciador. Esse, inclusive, já foi o entendimento do STF na STA nº 286/BA, decisão essa que inclusive foi anterior à lei complementar em questão:
“[…] Contudo, cabe destacar que, se há um dever comum de fiscalização dos órgãos do SISNAMA, quanto a infrações e crimes ambientais, isso não significa que se possa interpretar o seu poder de polícia ambiental a ponto de se incitar, em último caso, uma inoperância da preservação ambiental a partir da divergência de entendimentos dos órgãos de fiscalização ambiental e da ação de uns, em prejuízo dos outros e da coletividade. Por isso, o parâmetro mínimo que pode ser considerado aqui é exatamente se a fiscalização em análise decorreria diretamente do exercício regular do licenciamento ambiental (para a concessão de uma licença, para a discussão quanto a condicionantes e requisitos necessários à licença), o que evidenciaria, em princípio, possível superposição da atuação do IBAMA sobre a competência do órgão municipal/estadual para o licenciamento, o que não está permitido, provisoriamente, pelas decisões desta Presidência” (STF. STA nº 286/BA. Rel. min. Gilmar Mendes. DJe,28 abr. 2010).
Possibilidade de fiscalização concorrente
Nesse contexto, o Ibama editou a Orientação Jurídica Normativa nº 49/2013, decisão com força vinculante dentro do órgão, que estabeleceu que “Na hipótese de duplicidade de autuações ambientais, caberá a prevalência da fiscalização realizada pelo órgão licenciador”. A respeito do assunto, destaca Talden Farias:
“Com efeito, a ideia da prevalência do órgão licenciador no que diz respeito às sanções administrativas ambientais é uma forma de apor racionalidade à ação comum dos órgãos ambientais tendo em vista os inúmeros conflitos anteriormente existentes. Além do mais, é uma forma de prestigiar o instituto do licenciamento ambiental, que é o instrumento por meio do qual a Administração Pública melhor conhece a respeito da atividade poluidora, pois se presume que quem licencia sabe mais do empreendimento” [2].
Tal orientação reforça a primazia da atuação do órgão licenciador, mas não exclui a possibilidade de fiscalização concorrente ou supletiva nos casos previstos, ou seja, quando o órgão competente for comprovadamente inexistente, omisso ou ineficaz, ou quando houver uma urgência. Nas demais situações, há que se respeitar a prevalência da atuação do órgão licenciador, uma vez que essa é a regra geral da Lei Complementar nº 140/2011.
Todavia, o julgamento da ADI nº 4.757 pelo STF, que julgou a constitucionalidade da Lei Complementar nº 140/2011 e que teve a ministra Rosa Weber como relatora, pode ter aberto margem para interpretações que ameaçam a funcionalidade do federalismo ecológico brasileiro. A depender da interpretação do acórdão, é perfeitamente possível extrair o entendimento de que o Supremo restabeleceu a ordem jurídica anterior à Lei Complementar nº 140/2011, quando todos poderiam fazer tudo ao mesmo tempo sem distinção clara.
Nesse sentido, não haveria mais nem a coordenação nem o benefício de ordem, de maneira que o STF pode ter aberto o caminho para fragilizar a diretriz da prevalência do órgão licenciador e fomentou um cenário de instabilidade e de guerra fiscal ambiental. É que o Supremo, ao declarar a constitucionalidade do artigo 17 da norma com interpretação conforme, admitiu que qualquer ente federado possa impor sanções ambientais, inclusive sobre empreendimentos licenciados por outro ente.
O resultado prático dessa decisão seria a possibilidade de um “vale tudo ambiental”, em que vários órgãos possam aplicar sanções a um mesmo empreendimento, gerando insegurança jurídica, conflitos federativos e riscos ao princípio da legalidade. Trata-se, no entanto, de uma grande equívoco, pois não se decidiu nem jamais se decidiria dessa forma, do contrário estaria se fomentando a insegurança jurídica e os conflitos sociais, o que não teria sentido algum.
Na verdade, o que foi decidido é que a União, por meio do Ibama, os Estados e os Municípios podem atuar subsidiariamente na fiscalização, inclusive lavrando autos de infração, em situações excepcionais e devidamente justificadas. Tal orientação reforça a primazia da atuação do órgão licenciador, mas não exclui a possibilidade de fiscalização concorrente ou supletiva nos casos previstos, ou seja, quando o órgão competente for omisso ou ineficaz, ou quando houver uma urgência.
Nas demais situações, há que se respeitar a prevalência da atuação do órgão licenciador, uma vez que essa é a regra geral e pedra de toque da Lei Complementar nº 140/2011. A decisão do STF equilibra esses entendimentos, garantindo segurança jurídica e eficiência à gestão ambiental.
A atuação supletiva deve ser excepcional, devidamente justificada e limitada aos casos em que o ente responsável não atue de forma satisfatória, não devendo ser admitida nas demais situações. Conclui-se que a diretriz da prevalência do órgão licenciador é condição essencial para a racionalidade, eficiência e previsibilidade da fiscalização ambiental.
Seu esvaziamento não fortalece o controle ambiental, mas o desorganiza, criando um cenário propício à desarticulação institucional e à arbitrariedade. A proteção ambiental eficaz exige ordem, competência definida e respeito ao papel de cada ente federativo.
[1] O Distrito Federal aglutina as atribuições estaduais e locais.
[2] FARIAS, Talden. Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos. 10. ed. Salvador: JusPodivm, p. 194.
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