Opinião

STJ e superendividamento: o recado que chega ao mercado

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  • é procurador do estado do Espírito Santo mestre em Direito Difusos e Coletivos pela PUC-SP professor de diversos cursos e autor de diversas obras jurídicas tendo atuado como assessor do relator no Senado do projeto de lei do superendividamento.

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2 de julho de 2025, 13h20

O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial nº 2.188.689/RS, envolvendo consumidores superendividados, proferiu uma decisão que, embora tecnicamente fundamentada, acaba transmitindo sinais que merecem reflexão crítica e cuidadosa.

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Nesse julgamento, o STJ entendeu que não haveria obrigação jurídica de o credor apresentar proposta de repactuação da dívida durante a fase processual, mesmo diante da demonstração da situação de superendividamento, e que a ausência de proposta não configuraria, por si só, conduta abusiva nem violação ao dever de boa-fé objetiva.

Quando se examina o impacto de uma decisão desse porte, não se pode ignorar que pronunciamentos judiciais têm consequências que ultrapassam o processo específico. As decisões dos tribunais superiores servem como referência para todo o mercado e acabam moldando as condutas que fornecedores e instituições financeiras adotarão nos casos seguintes.

Nesse sentido, é importante reconhecer que decisões judiciais exercem uma função que podemos chamar de incentivo social. A forma como o Judiciário interpreta e aplica a lei influencia a percepção de risco e de responsabilidade dos agentes econômicos.

Comportamentos cooperativos

Quando um tribunal reconhece, valoriza e prestigia comportamentos cooperativos — como a negociação, a repactuação equilibrada e o compromisso com a dignidade econômica do consumidor —, ele cria um contexto em que esses comportamentos passam a ser considerados desejáveis e até mesmo esperados.

No caso concreto, a decisão do STJ acabou, mesmo que de maneira involuntária, transmitindo ao mercado a ideia de que não há obrigação efetiva de buscar soluções consensuais e de que a simples recusa em negociar não gerará qualquer consequência negativa relevante. Essa sinalização pode desestimular programas de repactuação e iniciativas voluntárias de conciliação, que vinham sendo adotadas por algumas instituições com resultados positivos, inclusive em termos de recuperação de crédito.

Essa compreensão contrasta com experiências concretas que já vinham se consolidando em tribunais de primeira instância. No Rio Grande do Sul, por exemplo, decisões da magistrada Karen Bertoncello demonstraram que uma atuação proativa do Judiciário pode produzir efeitos econômicos e sociais benéficos.

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Em artigo nesta ConJur, relatei essa experiência positiva e destaquei como a adoção de medidas que estimulavam a apresentação de propostas reais de renegociação pelos credores resultou em um expressivo aumento no número de acordos.

Esse trabalho mostrou que, quando o juiz se compromete com a finalidade da Lei do Superendividamento, é possível compatibilizar o interesse legítimo dos bancos em recuperar créditos com a necessidade de proteger a subsistência digna dos consumidores.

A juíza passou a convocar audiências de conciliação, exigindo dos bancos propostas compatíveis com a capacidade financeira dos consumidores. O resultado foi um aumento expressivo no número de acordos, com pessoas superendividadas regularizando seus débitos e retomando sua autonomia econômica. Essa prática contribuiu também para reduzir o volume de execuções judiciais, pois os acordos substituíram a via contenciosa.

STJ se distancia da finalidade da lei

Esse recado institucional proferido pelo STJ é problemático porque se distancia da finalidade da Lei nº 14.181/2021, que estabeleceu instrumentos jurídicos específicos para enfrentar o superendividamento e criou um ambiente normativo orientado por princípios como a boa-fé objetiva, a preservação do mínimo existencial e o equilíbrio nas relações contratuais.

Esses princípios não podem ser vistos como meras recomendações genéricas. Ao contrário, são diretrizes concretas que devem informar a interpretação das cláusulas contratuais e orientar a conduta dos fornecedores.

Em especial, o princípio da boa-fé objetiva não se esgota na proibição de comportamentos enganosos ou de abuso de direito. Ele envolve também um dever de cooperação e de renegociação leal, especialmente quando fica demonstrado que a situação econômica do consumidor se agravou de maneira a comprometer sua subsistência. A decisão do STJ, ao não reconhecer esse dever de forma mais clara, enfraqueceu a eficácia prática da boa-fé como instrumento de reequilíbrio das relações.

Na prática, ao dar prevalência quase exclusiva à literalidade contratual, o tribunal deixou de afirmar que o fornecedor de crédito tem uma obrigação jurídica de buscar soluções razoáveis antes de insistir na execução integral de dívidas que sabidamente superam a capacidade de pagamento do consumidor. Quando decisões judiciais não incorporam essa leitura principiológica, a mensagem que se transmite ao setor financeiro é que manter posturas intransigentes não traz riscos reputacionais ou jurídicos.

É importante observar que a escolha por uma postura mais dialogal por parte do Judiciário não comprometeria a segurança jurídica. Ao contrário, consolidaria a confiança social de que as relações de crédito devem ser orientadas por critérios de responsabilidade e solidariedade.

As experiências em várias jurisdições mostram que decisões que valorizam acordos não significam anulação de contratos ou anistia de dívidas, mas apenas uma busca por soluções viáveis que preservem a dignidade da pessoa humana e a função social do crédito.

Demonstração da importância da renegociação

Autores como Cass Sunstein e Richard Thaler, ainda que com abordagens econômicas, destacam que pequenos sinais institucionais — como uma decisão judicial que valorize boas práticas — funcionam como incentivos poderosos. Quando o Judiciário demonstra que reconhece a importância da renegociação, cria-se uma expectativa legítima de que os fornecedores devem se organizar para agir de forma mais cooperativa.

O julgamento em questão perdeu a oportunidade de transmitir esse incentivo positivo. Ao não afirmar de maneira mais enfática que existe um dever de renegociar, deixou aberta a possibilidade de que a recusa em dialogar seja percebida como conduta juridicamente neutra e socialmente aceitável. Esse efeito não é trivial. Se decisões judiciais não induzem comportamentos responsáveis, acabam legitimando práticas que perpetuam ciclos de exclusão econômica.

A jurisprudência, portanto, não é apenas um ato técnico de aplicação da lei. Ela cria parâmetros simbólicos e normativos que orientam como pessoas e empresas agirão daqui para frente. Quando se trata de superendividamento, esse ponto é ainda mais sensível, porque envolve diretamente a subsistência digna de milhares de famílias e o equilíbrio da ordem econômica.

Por isso, é fundamental que decisões futuras reconheçam que os princípios da boa-fé, da cooperação e da função social do contrato não são meros enunciados abstratos. São instrumentos concretos, que, quando aplicados com coragem e sensibilidade, podem induzir mudanças significativas nas práticas de crédito e reduzir a desigualdade nas relações de consumo.

Autores

  • é procurador do estado do Espírito Santo, mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP, diretor do Brasilcon, membro do GT de acompanhamento da Lei do Superendividamento no CNJ, autor do livro Lei do Superendividamento Comentada e Anotada (2025) pela Editora Juspodivm.

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