Opinião

REsp 2.211.682-RJ: atuação da Defensoria na assistência qualificada da vítima

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  • é defensora pública do estado de Rondônia coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem) da Dpero e mestre em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça.

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  • é defensor Público do Estado de Rondônia. Ex-defensor público do Amapá mestrando em Direito pela Univali (Universidade do Vale do Itajaí) professor universitário. especialista em Direito Público pela PUC-MG (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais) e em Direito Constitucional pela Ucam (Universidade Cândido Mendes).

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2 de julho de 2025, 6h31

Em julgamento realizado em 17/6/2015, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça consignou que a “atuação da Defensoria Pública em polos opostos nos mesmos autos não configura ofensa à sua unidade e indivisibilidade, desde que defensores públicos distintos atuem em defesa de réu e vítima, sem identidade subjetiva entre os membros”.

Reprodução

Apesar de a conclusão ser aparentemente óbvia, o fato de a matéria ter sido levada à discussão perante o Superior Tribunal de Justiça, tribunal incumbido de uniformizar a interpretação da lei federal, torna necessário o aprofundamento no tema, sob pena de autorizar a difusão de entendimentos metodologicamente inadequados.

Para compreender o objeto de discussão, necessário, primeiro, compreender os contornos fáticos do julgamento.

No REsp 2.211.682-RJ, o Ministério Público do Rio de Janeiro, questiona, dentre outros pontos, a legitimidade da atuação compulsória da Defensoria Pública como assistente da vítima de violência doméstica e familiar contra a mulher.

No recurso, o MP-RJ questiona decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que decidiu pela inexistência de incompatibilidade na atuação da Defensoria Pública em favor do réu e da vítima, desde que por defensores públicos distintos, e pela obrigatoriedade da assistência jurídica qualificada em todas as fases do procedimento criminal, conforme previsão contida na Lei 11.340/2006. Ao final, requereu a revogação da decisão que determinou a nomeação automática da Defensoria Pública como assistente da vítima.

No acórdão, a 5ª Turma reconheceu inexistir ilegalidade na decisão do juiz que nomeia a Defensoria Pública para atuar na condição de assistente qualificada, reconhecendo inexistir afronta à liberdade de escolha da vítima, que poderá, a qualquer tempo, fazer substituir a atuação da Defensoria ao constituir advogado de sua confiança.

Nesse ponto, parece inexistir maiores questionamentos, haja vista que a própria Lei 11.340/2006 prevê, em seu artigo 27, a presença “de advogado” (aqui, leia-se advogado ou defensor público) em todos os atos processuais, cíveis e criminais. Do mesmo modo, o artigo 28 do mesmo diploma  a toda mulher em situação de violência doméstica e familiar o acesso aos serviços de Defensoria Pública, seja em sede policial ou no curso do processo.

Defesa e assistência qualificada

A grande discussão repousa na existência de eventual incompatibilidade entre a atuação da Defensoria Pública, muitas vezes encarregadas da defesa do réu, e a atuação na condição de assistente qualificado.

Spacca

Sobre o tema, necessário alguns apontamentos.

Primeiro que, conforme já sustentamos [1], a assistência qualificada não pode se confundir com a figura do assistente de acusação, visto que suas as finalidades são distintas.

O assistente de acusação é um ator processual cuja finalidade é auxiliar o titular da ação penal (MP) de forma a aumentar as chances de condenação. O objetivo final do assistente de acusação é, portanto, a condenação do réu.

Por outro lado, o assistente qualificado atua como representante processual da vítima e, ainda que tenha como uma de suas possíveis finalidades, de fato, a condenação, esse não é seu objetivo principal.

Com efeito, a atuação do assistente qualificado deve ser voltada à proteção dos direitos da vítima, mormente a evitar a sua revitimização. E esse escopo de evitar a revitimização encontra-se inserido dentro das funções institucionais da Defensoria Pública [2].

Seja na condição de representante processual, seja como custos vulnerabilis, é forçoso reconhecer a pertinência temática entre a instituição Defensoria Pública e a atuação em favor da vítima com a finalidade de evitar a revitmização.

E não há que se falar que, ao atuar em favor da vítima, a Defensoria Pública estará tentando ocupar espaço próprio do Ministério Público. Na verdade, a atuação em favor da vítima, conforme perceptível pela simples leitura dos artigos citados da Lei Maria da Penha, podem ser exercidos por advogados ou por defensores públicos, mas não pelo Ministério Público, que não atribuição para tanto (representação processual da vítima) no curso do processo penal.

Para deixar claro o que se está sustentando, os papeis e funções são distintos: o Ministério Público, dominus litis, tem o múnus de exercer a acusação, direcionando a sua atuação nesse mister no curso da persecução penal. Essa característica não é subtraída, mas reforçada pelo fato de, em não verificando, ao final da instrução processual, provas suficientes de materialidade e autoria delitivas, possuir liberdade para pleitear a absolvição do denunciado.

Para além da acusação, necessariamente haverá uma defesa, que poderá ser pública, se exercida pela Defensoria Pública, ou privada, caso o réu tenha constituído advogado de sua confiança.

Paralelo a essas figuras, atua, em crimes envolvendo violência contra a mulher, o assistente qualificado, cujo móvel está muito mais relacionado a garantir o respeito aos direitos da vítima do que propriamente ao resultado da ação penal.

O assistente qualificado, que pode ser advogado ou defensor público, atuará, portanto, na defesa dos direitos da vítima, evitando a sua revitimização e, como visto, com a atuação do assistente de acusação, que, como o nome indica, é auxiliar do Ministério Público no intento condenatório.

Questão central

E feitas essas explicações, chega-se ao cerne do texto: existe incompatibilidade entre a instituição Defensoria Pública e a atuação na condição de assistente qualificado em favor da vítima?

A resposta é negativa.

Primeiro que, como visto, tanto a Lei Maria da Penha quanto a Lei Nacional da Defensoria Pública preveem a atuação da Defensoria em favor de mulheres vítimas de violência doméstica, o que guarda sintonia com o mandamento constitucional previsto no art. 5º, LXXIV [3], da Constituição.

Segundo o que, a instituição Defensoria Pública pode defender interesses aprioristicamente considerados contraditórios. Na doutrina é o que se chama de natureza dialética da instituição [4]. Na prática, isso é visto com frequência e nunca foi objeto de qualquer discussão no âmbito cível: é fato notório que, em todo o Brasil, ações de família contam com defensores (distintos, evidentemente) realizando a representação processual nos diferentes polos da demanda. E isso para citar o exemplo.

No processo penal, por imperativo de coerência, a regra é a mesma. O fato de um defensor público realizar a defesa técnica do réu não impede a intervenção da instituição, por outro membro, com fins a prestar assistência qualificada à vítima, com vias a evitar a sua revitimização.

Nessa linha de ideias, percebe-se que tanto advogados quanto defensores públicos podem realizar a assistência qualificada da vítima, cuja atuação, por força da vontade do legislador, resta obstada apenas ao Ministério Público, parte responsável pela acusação.

E é por isso que se defende que acertou o STJ no julgamento do REsp 2211682-RJ.

 


[1] ALVES, Jaime Leônidas Miranda. Fábrica de Criminalistas: Manual de defesa criminal para defensores públicos e advogados. 3. Ed. Vol. 2. Leme-SP: Editora Mizuno, 2025, p. 304.

[2] Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: XI – exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado;

[3] LXXIV – o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;

[4] ESTEVES, Diogo; SILVA, Franklyn Roger Alves. Defensoria Pública e atuação processual em favor do nascituro: uma reflexão. In: Consultor Jurídico, 2023. Disponível  aqui.

Autores

  • é defensora pública do estado de Rondônia, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem) da Dpero e mestre em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça.

  • é defensor público do estado de Rondônia, coordenador do Núcleo Especializado de Atuação Recursal Estratégica (Nare) da Dpero, doutorando em Ciência Jurídica e mestre em Ciência Jurídica.

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