Opinião

Quatro regimes e nenhuma certeza: efeitos sistêmicos da decisão do STF sobre responsabilidade na internet

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  • é advogada com atuação em Direito Digital com foco em políticas de regulação e governança de tecnologias digitais pós-graduada em Direito Digital e Proteção de Dados pelo IDP (Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa) mestranda em Gestão Global pela Royal Roads University (Canadá) pesquisadora voluntária no Laboratório de Governança e Regulação de Inteligência Artificial do IDP (LIA-IDP) e no Grupo de Trabalho sobre Responsabilidade de Intermediários da Internet Society Brasil (Isoc Brasil) com certificações internacionais em gestão de privacidade e proteção de dados como CIPM e CDPO/BR pela Iapp DPO pela Exin além de certificação em Direito e Tecnologia pelo Insper.

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2 de julho de 2025, 19h35

Ao julgar dois recursos com repercussão geral envolvendo redes sociais, o Supremo Tribunal Federal reformulou substancialmente o regime jurídico da responsabilidade civil de provedores de aplicação na internet. A declaração parcial de inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil deu origem a uma nova estrutura normativa, composta por quatro hipóteses distintas de responsabilização, com contornos pouco definidos. Na tentativa de suprir uma suposta lacuna legislativa, o tribunal comprometeu a previsibilidade regulatória, transferindo aos próprios agentes o encargo de interpretar, operacionalizar e suportar os riscos jurídicos de um regime fragmentado.

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A solidez do modelo anterior não residia apenas em seu conteúdo, mas no processo institucional que o legitimava. O marco civil foi fruto de uma construção multissetorial, com intensa participação da sociedade civil, do setor privado, da academia e do Estado. Esse arranjo gerou uma norma de equilíbrio, em que diferentes atores cederam posições em nome de uma arquitetura jurídica comum. Ao condicionar a responsabilização à existência de ordem judicial, o artigo 19 buscava compatibilizar liberdade de expressão, reparação de danos e segurança jurídica. A decisão do STF rompe com esse arranjo institucional, substituindo um marco normativo estável por obrigações abertas e de difícil aplicação.

Críticas ao artigo 19 são legítimas, especialmente diante da adoção de práticas opacas ou de respostas morosas por alguns intermediários digitais. Ainda assim, a norma oferecia critérios objetivos, reconhecidos como estruturantes da segurança jurídica nos ambientes digitais. Ao invalidá-la sem apresentar uma alternativa tecnicamente consistente, a Corte amplia a incerteza regulatória e desloca para os agentes privados a responsabilidade de preencher um vácuo normativo com alto grau de indeterminação.

A tese aprovada desenha quatro hipóteses de responsabilização, mas falha em articular critérios para sua coordenação normativa. A primeira hipótese preserva o modelo do artigo 19 para os casos de crimes contra a honra (como calúnia e difamação) e serviços de comunicação interpessoal privada, como e-mails e mensagens. É uma preservação residual, restrita a situações específicas. A segunda hipótese amplia a lógica do artigo 21, originalmente aplicada à remoção de imagens íntimas não consentidas, a qualquer crime ou ato ilícito — inclusive situações de contas falsas. Permite-se a responsabilização do provedor diante da inércia após notificação, inclusive extrajudicial. O problema desta hipótese se inicia na indeterminação do conceito de “ato ilícito”, que frequentemente exige ponderações complexas entre direitos, e ao delegar esse juízo a entes privados, a tese desvirtua o papel institucional dos provedores e fragiliza as garantias do devido processo.

A terceira hipótese impõe presunção de responsabilidade quando o conteúdo for impulsionado mediante pagamento ou disseminado por redes artificiais de engajamento, como robôs e chatbots. Ainda que a responsabilidade objetiva seja rejeitada formalmente, a inversão do ônus da prova produz efeitos similares. A inclusão genérica dos chatbots ilustra bem os riscos da imprecisão normativa, pois não distingue entre usos legítimos, como canais de atendimento, acessibilidade ou assistentes virtuais, e práticas abusivas de manipulação algorítmica. Ao antecipar debates atinentes à regulação da inteligência artificial que ainda tramitam no Congresso, a tese introduz conceitos vagos e potenciais distorções regulatórias.

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Já a quarta hipótese impõe um dever geral de cuidado em situações classificadas como de “extrema gravidade”, incluindo pornografia infantil, terrorismo, tráfico de pessoas, incitação ao suicídio e ataques à democracia. Nesses casos, admite-se responsabilização com base em “falha sistêmica” e espera-se que os provedores adotem monitoramento ativo e resposta imediata. Não há clareza, no entanto, sobre os indicadores de diligência esperados ou como calibrar essas obrigações à capacidade técnica e ao porte de cada agente. A ausência de órgão regulador agrava o quadro, por retirar qualquer instância de supervisão ou harmonização normativa, fragilizar a segurança e impor riscos desproporcionais, sobretudo aos pequenos e médios provedores.

Decisão transforma o remédio em veneno

Ainda que mencione a possibilidade de autorregulação regulada, a tese não estabelece nenhuma estrutura institucional que a viabilize. Sem critérios mínimos de adesão, salvaguardas procedimentais ou mecanismos de supervisão, a autorregulação se converte, na prática, em mais um ônus sobre os agentes privados. O resultado é um modelo em que quatro hipóteses de responsabilização coexistem sem hierarquia normativa, sem regras de transição e sem diretrizes claras para sua aplicação integrada, inclusive no que diz respeito à possibilidade de sobreposição entre elas. Fora as exceções evidentes — como serviços protegidos por sigilo —, os demais provedores que hospedam conteúdo de terceiros tornam-se sujeitos a deveres amplos, imprecisos e potencialmente cumulativos.

Apesar das críticas às chamadas big techs e à percepção de que concentram poder informacional — diagnóstico reiterado nos próprios votos do julgamento —, a tese termina por reforçar sua centralidade. A ausência de critérios de diferenciação ignora a heterogeneidade do ecossistema digital e favorecem-se as estruturas com capacidade técnica, jurídica e operacional para internalizar as exigências e incertezas do novo regime. Ao contrário de modelos como o Digital Services Act europeu, que impõe obrigações proporcionais ao porte e ao impacto das plataformas, o modelo brasileiro concebido pela decisão judicial ignora as assimetrias de capacidade técnica, jurídica e econômica entre os diversos atores. O efeito prático é a ampliação da concentração de mercado e a retração de modelos alternativos.

A indeterminação dos deveres atribuídos aos provedores gera um ambiente de insegurança estrutural, no qual a mera ameaça de responsabilização incentiva práticas de moderação preventiva. Em vez de decisões pautadas por critérios jurídicos estáveis, prolifera a adoção de filtros automáticos e remoções generalizadas, sobretudo diante de conteúdos ambíguos, contestatórios ou socialmente controversos. A consequência é uma restrição indireta à liberdade de expressão, promovida não por censura institucionalizada, mas por incentivos regulatórios difusos que induzem ao silenciamento prévio.

O Supremo foi instado a julgar dois casos envolvendo redes sociais, mas terminou por redesenhar, de forma autônoma, toda a arquitetura normativa construída pelo Marco Civil da Internet. Ao declarar a inconstitucionalidade parcial do artigo 19, sem apresentar critérios claros ou diferenciação entre provedores, a corte comprometeu um arranjo institucional que, embora passível de aprimoramento, conferia previsibilidade regulatória e proteção equilibrada entre direitos. O resultado é um sistema marcado por insegurança estrutural, no qual deveres amplos e mal delimitados incentivam o silenciamento preventivo e ampliam barreiras de entrada, restringindo a diversidade de vozes e de modelos no ecossistema digital. Ao fazer da responsabilização um mecanismo difuso de contenção, a decisão transforma o remédio em veneno e impõe, sob o pretexto de sanar omissões legislativas, um regime orientado pela incerteza.

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  • é advogada com atuação em Direito Digital, com foco em políticas de regulação e governança de tecnologias digitais, pós-graduada em Direito Digital e Proteção de Dados pelo IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa), mestranda em Gestão Global pela Royal Roads University (Canadá), pesquisadora voluntária no Laboratório de Governança e Regulação de Inteligência Artificial do IDP (LIA-IDP) e no Grupo de Trabalho sobre Responsabilidade de Intermediários da Internet Society Brasil (Isoc Brasil), com certificações internacionais em gestão de privacidade e proteção de dados, como CIPM e CDPO/BR pela Iapp, DPO pela Exin, além de certificação em Direito e Tecnologia pelo Insper.

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