Inimigos da democracia crescem no mundo todo, diz Lewandowski
2 de julho de 2025, 16h49
A Constituição de 1988 legou ao Brasil uma democracia sólida, que foi capaz de resistir a crises econômicas e políticas, mas que agora precisa resistir a um fenômeno que ameaça os regimes democráticos em grande parte do mundo. Essa foi a análise feita, nesta quarta-feira (2/7), pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, em seminário do XIII Fórum de Lisboa, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL).

A ex-ministra Kátia Abreu discursa ao lado de Jorge Messias, Beto Simonetti, Ricardo Lewandowski, Edilene Lôbo e Lenio Streck
Em debate sobre os desafios e perspectivas atuais da democracia combativa, Lewandowski destacou que o regime democrático brasileiro conseguiu resistir a dois impeachments de presidentes, a várias crises econômicas e a uma tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023.
Ocorre que, segundo o ministro, esse mesmo sistema se vê diante de um movimento mais amplo, marcado pelo declínio das democracias.
“É visível. A democracia liberal, que foi inspirada nas revoluções liberais dos séculos 18 e 19, está perdendo espaço de forma bastante acelerada. Ontem eu estive em um seminário importante, na Universidade de Coimbra, e um palestrante nos dizia que hoje os regimes autoritários superam os democráticos ao redor do mundo. Assim, nós teríamos hoje 92 regimes autoritários e apenas 85 democracias nos moldes liberais, ocidentais”, disse Lewandowski, que também é ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal.
Ele observou que as democracias combativas — ou seja, aquelas que se defendem de forma ativa contra as ameaças à própria existência — podem dispor de três modelos básicos de preservação da ordem pública.
A primeira alternativa é o cesarismo ou o bonapartismo. Nesse modelo, explicou Lewandowski, ante uma crise institucional, recorre-se a alguém que tenha carisma e prestígio, a quem são dados poderes ditatoriais para resolver o problema.
Na segunda forma de defesa, mais usada nos países anglo-saxões, outorga-se a alguma autoridade plenos poderes para resolver a crise interna. É a chamada lei marcial, em que o líder recebe plenos poderes para resolver a situação, mas na qual também terá que responder perante os tribunais por eventuais excessos que vier a praticar.
“E há um terceiro modelo, que se distingue desses outros dois e que é o seguinte: quando há uma situação problemática, de anomia, com caos social, substitui-se transitoriamente a legalidade ordinária, que é própria da situação de normalidade, e de forma temporária, mas dentro dos parâmetros constitucionais, entrega-se a alguém os poderes necessários para restabelecer a ordem. No Brasil nós adotamos esse terceiro modelo”, disse o ministro. No país, contudo, houve ainda uma “quarta forma de intervenção”: o artigo 142 da Constituição.
“Aqui eu quero expressar as minhas angústias não apenas como acadêmico que já escreveu sobre esse assunto, mas também como ex-integrante do Tribunal Superior Eleitoral e da Suprema Corte em plenas eleições. O que diz o artigo? ‘As Forças Armadas destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, à garantia da lei e da ordem’. É um instrumento muito aberto, muito frouxo, que faz lembrar aquela situação difícil de luta pela democracia que todos nós enfrentamos, com a OAB à frente, em que cogitou-se inclusive erigir as Forças Armadas à estatura de um poder moderador”, disse.
“Esse polêmico artigo 142, entendo eu, do ponto de vista de princípios, só poderia ser empregado quando houvesse uma falência total dos órgãos de segurança pública prevista no artigo 144. Isso é algo que eu gostaria de colocar: devemos articular melhor esse artigo 142 no nível constitucional”, completou o ministro.
Beira do precipício
A ministra substituta do Tribunal Superior Eleitoral Edilene Lôbo, que falou na sequência, apontou que o verdadeiro desafio da democracia combativa, especialmente no Brasil, é fazer com que esse regime seja realmente democrático e se volte para o povo.
“Voltar-se para os que tradicionalmente estão atrás na fruição dos direitos fundamentais é o grande desafio”, disse ministra, que também citou outras tarefas ”gigantescas”.
“Uma delas é de que aquela democracia que superou o nazifascismo, que superou as ditaduras da década de 70, que superou as crises econômicas, parece imortal, mas não é. A democracia não só no Brasil, mas no mundo, se encontra à beira do precipício. E muito provavelmente porque grande parte da tarefa que foi atribuída ao governo de democracia liberal não foi cumprida”, disse.
Democracia e segurança
O jurista Lenio Streck também destacou o papel das políticas públicas como forma de fortalecimento da democracia. Nesse sentido, segundo ele, o subtítulo do painel poderia ser “É a democracia e a segurança, estúpido!”. Isso porque, em sua visão, democracia e segurança são coisas interligadas de tal forma que, hoje, a primeira depende da segunda para continuar existindo.
“Esse é um problema. O Estado de Direito exige condições sociais e econômicas, sendo dever do Estado promovê-las, como segurança, igualdade política e redução das desigualdades. Eu cito aqui um velho triângulo dialético em homenagem ao meu querido amigo J.J. Gomes Canotilho: pobreza, política e segurança. Enquanto isso não for resolvido, temos um problema da própria democracia”, disse o constitucionalista.
Nesse cenário, prosseguiu Lenio, surge o questionamento: em 2025 ou 2026, o Brasil estará livre de uma nova tentativa de golpe?
“Não sei. Há um deputado conspirando nos Estados Unidos. O irmão dele condiciona apoio ao (candidato) presidencial ao uso da força contra decisões do STF. No varejo, parte considerável da comunidade jurídica, incluindo parte do MP e do Poder Judiciário, tem certeza de que o STF é ditador. Assim como o açougueiro e o rapaz que cuida do elevador também pensam isso”, disse Streck.
Tributação
A ex-ministra da Agricultura e ex-senadora Kátia Abreu também falou sobre a relação entre democracia e políticas sociais. Ela observou que, no dia a dia, é a qualidade de vida das populações o fator que mais impacta o regime democrático, tanto nos países desenvolvidos quanto nos países em desenvolvimento. Assim, é praticamente impossível promover crescimento sem aumentar os gastos.
“Essa cobrança vem da base, vem do distrito, vem do povoado, vem do município, que não aceitam mais a rua sem asfalto, que quer o calçamento, quer a praça, a academia, a quadra de esporte. Estou falando de coisas mínimas. Todos querem desenvolvimento e o conforto para suas famílias. E não estão errados em nada disso, pois a própria Constituição promete tudo isso a eles“, disse Kátia Abreu.
Segundo ela, a despesa necessária para custear essas demandas acaba resultando em mais tributação, quadro observado em todo o mundo, mas sobretudo nos países em desenvolvimento, que não conseguem, por exemplo, tributar a renda.
“Porque não há renda. A tributação vem em cima dos produtos, e de forma regressiva, porque os tributos vêm em cima dos mais pobres, do arroz, do feijão, da carne, da roupa, do calçado. Nos países ricos, nós temos os ricos para serem tributados. E nos países em desenvolvimento, às vezes nem aqueles, que são poucos, podem ser tributados, porque são protegidos, são os que menos pagam os impostos.”
Riscos globais
Último a falar, o advogado-geral da União, Jorge Messias, disse que seminários do tipo crescem em importância em um momento como o atual, marcado pela “erosão das democracias”. Além disso, segundo ele, não é possível falar sobre democracia defensiva sem citar os chamados riscos globais enfrentados pelas sociedades, como, por exemplo, a crise do sistema neoliberal.
“Já desde a década de 70 o mundo vive diante de uma crise do sistema capitalista que impacta diretamente nos projetos democráticos ao redor do globo. Vivemos recentemente um risco financeiro com a crise dos subprimes, em 2008, que afetou o mundo de forma compartilhada. Mais recentemente, tivemos o risco sanitário, com a Covid-19. Então, nós temos que enfrentar o quadro da transformação global, que é o desafio que nos oferece este seminário, como elemento estruturante deste debate.”
Clique aqui para assistir ao painel ou veja abaixo:
Veja fotos do primeiro dia do evento:
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!