Engajamento cívico de povos originários
2 de julho de 2025, 16h21
O engajamento cívico ou cidadania ativa diz respeito a atividades individuais e grupais que ocorrem no espaço cívico da esfera pública voltadas a questões relativas ao interesse coletivo e à melhoria do bem estar da sociedade. Na atualidade, ele passa por uma complexa transformação pois se encontra envolvido com a expansão da participação digital, as pressões por justiça climática, as reações a crises humanitárias, a polarização, o descaso com grupos marginalizados, o aumento do autoritarismo e da repressão de governantes e a crescente presença da desinformação.

Apesar dessa intricada situação, ele tem avançado em múltiplos recantos do planeta com o envolvimento de pessoas pertencentes a diversos segmentos sociais. Este incremento tem a ver com um conjunto de fatores tais como o oferecimento de educação de qualidade, principalmente com a oferta de um curso especial de formação para a cidadania, a presença de uma cultura valorizadora da participação e do bem comum, o acesso à informação confiável, o desenvolvimento do afeto de pertencimento, a aparição de crises e momentos de mudanças significativas e a persistência de desigualdades e injustiças sociais.
Um dos agrupamentos da sociedade que aderiu ao engajamento cívico se refere aos denominados povos originários, isto é, os primeiros habitantes de uma determinada região. Há diversos grupos espalhados pelo mundo, tais como os Mapuche na Patagônia Argentina e Chilena, os Maori na Nova Zelândia e os Aborígenes na Austrália. Eles exerceram um importante papel na formação de diversos países, pois agregam uma riqueza de línguas, tradições, mitos e práticas artísticas. Carregam conhecimentos nas áreas da agricultura, medicina e manejo sustentável dos recursos naturais. E suas lutas por direitos, terras e culturas têm influenciado movimentos sociais e políticas públicas.
Início ao engajamento cívico
A história aponta os povos originários que deram início à prática do engajamento cívico. Há cerca de 3 mil anos antes de Cristo os sumerianos participavam de decisões comunitárias relevantes por meio de assembleias de moradores e conselhos de anciões. Com data semelhante, os maias e astecas escolhiam líderes e conselhos de nobres para funções específicas. Na Índia, em período menor, os Vajii realizavam debates coletivos e tomavam decisões conjuntas.
Em período posterior, ou seja, no transcorrer da Idade Média, outros grupos tomaram a iniciativa. Os iroqueses do nordeste da América do Norte exibiam um sistema representativo formado por dirigentes eleitos e decidiam coletivamente em reuniões de clãs. Na América do Sul a autoridade do cacique dos Tupis Guaranis dependia do consenso da comunidade e as grandes escolhas resultavam de discussões em círculos de adultos. O imperador de Mali na África governava apoiado em uma assembleia composta por clãs e grupos étnicos cujos membros deliberavam sobre guerra, comércio e justiça. As tribos prussianas e lituanas mantinham uma junta responsável pelas decisões coletivas. Na Índia, os povos Khasi e Garo gerenciavam terras e recursos de forma grupal.
Na modernidade, o engajamento cívico prosseguiu. Os incas praticavam um trabalho comunitário voltado para a construção de obras públicas e cultivo agrícola, bem como deliberavam de modo coletivo. No México, os nahuas e astecas ostentavam uma organização social e econômica cujos integrantes decidiam conjuntamente a respeito da guerra, da religião e da agricultura. Os iroqueses da América do Norte constituídos em uma confederação de várias nações preservavam o consenso, a representatividade e o equilíbrio de poderes. Havia um grande conselho onde as decisões aconteciam de forma consensual.
Povos originários seguem engajamento cívico
Tão ou mais importante constatar o que ocorreu no passado é verificar o que está se processando no presente. A esse respeito cabe dizer que muitos povos originários se encontram praticando intensamente o engajamento cívico. Desde meados do século passado os aborígenes australianos têm direito ao voto, e certas organizações eleitorais realizam campanhas para aumentar o contingente de votantes. Outras defendem as prerrogativas deles nas áreas da saúde, posse da terra e políticas públicas as quais envolvem consultas a comunidades. Ocorrem pressões por mudanças nos campos da justiça criminal, direitos territoriais, reconhecimento constitucional e tratados com o governo. Conselhos consultivos tratam de direitos humanos. Há uma televisão que amplifica suas vozes e tem-se a atuação de escritores, artistas e acadêmicos que influenciam debates sobre identidade e regalias conquistadas ou a serem granjeadas.

Essa luta persistente é bastante árdua e carregada de múltiplas dificuldades, mesmo porque refletem séculos de colonização, discriminação e exclusão. Veja-se a seguir várias delas. Condições socioeconômicas precárias, ausência de internet e transporte, presença de instituições desencorajadoras do envolvimento em atividades políticas, comparência marcante de visões preconceituosas, falta de documentos necessários ao registro eleitoral, desinformação sobre direito ao voto, resistências em garantir o reconhecimento oficial na Constituição, intercomunicação em línguas tradicionais, ausência de materiais eleitorais em idiomas próprios, tratamento discriminatório pela polícia e justiça e diversidade de clãs dificultadores da formação de uma frente unificada para ações reivindicatórias.
A cidadania ativa dos Maori na Nova Zelândia tem se mostrado bastante resiliente. Já fizeram protestos contra o confisco de terras, movimentos contra a mineração no mar, campanhas para reduzir o elevado número da população carcerária. Costumam se manifestar em programas específicos de rádio e televisão e seus líderes atuam no Fórum Permanente Sobre Assuntos Indígenas da ONU. Alguns óbices continuam atrapalhando as ações tais como a baixa expectativa de vida, a maior taxa de pobreza e a demora nas reparações pelo governo.
As diversas tribos indígenas dos Estados Unidos negociam diretamente com o governo federal, fazem pressões para obterem direitos territoriais, financiamento para a saúde e fundos para a educação, reagem contra a ausência de endereços postais nas reservas, processam a administração nacional para garantir prerrogativas, fazem protestos contra oleodutos e se mobilizam por causas climáticas. Também enfrentam obstáculos na aplicação de seus empenhos, haja vista que ainda existem leis restritivas ao exercício do voto, dificuldade de votação em áreas remotas, altas taxas de encarceramento, escassez de recursos financeiros e persistência de estereótipos.
Povos originários no Brasil
Os indígenas brasileiros também exibem condutas semelhantes. Entretanto, vale lembrar que a pugna deles é bastante longeva. Quando os colonizadores portugueses aqui compareceram no século 16, os mesmos já habitavam o território há milhares de anos, com culturas, línguas e modos de vida próprios. A chegada dos europeus trouxe violência, escravidão, doenças e a perda de territórios. No transcorrer dos séculos que se seguiram enfrentaram a expansão agrícola, a exploração dos recursos naturais e a imposição de valores culturais. No entanto, sempre resistiram por meio de fugas, guerras, preservação de suas tradições e formação de alianças.
Muitos de seus atos indicados a seguir revelam que são firmes adeptos do exercício da cidadania ativa. Participam do Conselho Nacional de Direitos Humanos e da Comissão de Política Indigenista. Mobilizaram-se pela demarcação de terras tal como ocorreu no caso da Raposa Serra do Sol e de Munduruku. Fizeram protestos contra a construção de hidrelétricas como a de Belo Monte. Reagem contra garimpeiros e madeireiros ilegais com o apoio do Conselho Indigenista Missionário e do Greenpeace. Integram o Acampamento Terra Livre onde exigem a concretização de seus direitos. Efetivaram a ocupação do Ministério da Saúde contra o desmonte de programas médicos destinados a eles. Mantêm coalisões com os ribeirinhos, quilombolas e ativistas climáticos. Seus escritores e artistas usam a arte para combater estereótipos. A Rede da Juventude Indígena e a Articulação das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade envolvem os mais jovens nas manifestações dos adultos. O empenho mais recente tem ocorrido nas audiências de conciliação relativas ao marco temporal comandadas pelo STF. Outrossim, têm encarado vários empecilhos tais como ações de violência e assassinato, pressões da bancada parlamentar ruralista, mortes por desnutrição e doenças, invasões e desmatamento e presença da inconstitucional Lei 14.701 elaborada pelos parlamentares.
Desafios dos povos originários
Apesar dos múltiplos empecimentos arrostados pelos povos originários de vários recantos do planeta, cujos casos anteriormente relatados são ilustrativos, verifica-se que o recontro deles tem proporcionado muitas vitórias. Na Austrália, a Suprema Corte reconheceu o direito de posse da terra. Os Maori conquistaram a prerrogativa de sete assentos no Parlamento neozelandês, receberam bilhões de dólares em compensações por terras confiscadas e lograram a obrigação dos governantes de consultá-los em políticas que os afetem. Nos Estados Unidos a justiça estabeleceu que grande parte do leste de Oklahoma é território tribal, bem como garantiu sucesso em processos de revisões ambientais. Nossos indígenas granjearam um destacado artigo na Carta Magna, o qual instituiu a admissão de sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e fixou os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, o STF rejeitou a tese do marco temporal e outorgou medidas cautelares resultantes de violações de direitos.
Esses triunfos dos povos originários mostram que o engajamento cívico deles se assemelha ao dos demais cidadãos e revela sua importância e eficácia no meio social, o qual transforma o cidadão em protagonista e não apenas expectador da coletividade onde vive. E apesar de os governantes serem eleitos para representar o povo e trabalhar pelo bem comum, dos quais é legítimo esperar que eles cumpram essa função, a realidade mostra que sem pressão, cobrança, exigência, vigilância e participação popular muitas demandas correm o risco de ficar sem resposta. Ademais o engajamento cívico contribui muito para o fortalecimento da democracia pois provoca transformações sociais reclamadas, torna a sociedade menos injusta e desigual, oferece a chance de garantir que os direitos sejam respeitados e ampliados, permite que o povo tenha voz em políticas que impactam a sua vida cotidiana.
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