Opinião

A 'interamericanização' do Ministério Público do Estado de Sergipe

Autores

  • é promotor de Justiça em Sergipe professor de Direitos Humanos dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade Tiradentes (UNIT) pós-doutorado em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade de Coimbra doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e mestre em Direito Econômico e Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR).

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  • é procurador de Justiça do Ministério Público de Sergipe professor de Direito Constitucional dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e da Universidade Tiradentes (UNIT) doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e especialista em Direito de Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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2 de julho de 2025, 15h18

O surgimento de ordens jurídicas internacionais, notadamente de proteção dos direitos humanos, ensejou um processo de mundialização do direito e, por consequência, de sua “desnacionalização” [1], alicerçado na inevitável interconexão entre o direito interno e os ordenamentos jurídicos internacionais, que se influenciam mutuamente.

Divulgação

O constitucionalismo contemporâneo do século 21 passou a ter clara vocação supranacional [2], na medida em que a abertura das Constituições aos valores e princípios internacionais acarretou a interconexão entre os ordenamentos jurídicos nacionais e as ordens jurídicas internacionais, que passaram a ter relevância constitucional direta para os indivíduos, para a tutela de seus direitos e, a depender do caso concreto, impondo-se sobre as normas domésticas, inclusive constitucionais [3].

Os instrumentos, mecanismos e procedimentos existentes no direito doméstico podem ser ineficientes ou insuficientes para concretizar plenamente os direitos humanos no âmbito interno estatal, de modo que a existência de um sistema multinível de tutela dos direitos humanos viabiliza a compensação de eventuais deficiências, omissões ou falhas do Poder Judiciário brasileiro nesse desiderato.

Abertura ao direito internacional dos direitos humanos

As cláusulas de abertura do direito doméstico ao direito internacional dos direitos humanos, previstas nos §§ 2° e 3°, do artigo 5º, da Carta Magna, não asseguram, per se, a plena satisfação dos direitos humanos no plano interno brasileiro. A efetividade dos direitos humanos reclama um constitucionalismo compensatório no âmbito internacional [4], no sentido de que os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos poderiam corrigir falhas ou omissões domésticas na tutela de tais direitos.

Para além disso, a emergência do direito internacional dos direitos humanos e dos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos propiciou a interconexão e a interdependência de ordenamentos jurídicos, nacional e internacional, que passam a se articular para a realização de objetivos constitucionais comuns [5], como a proteção e a promoção dos direitos humanos. Nesse contexto, é inegável que o ordenamento jurídico brasileiro e o Sistema Interamericano se entrelaçam e interagem para o profícuo exercício multinível da função constitucional de proteção e de promoção dos direitos humanos, cuja articulação se dá por meio de ferramentas de governança multinível [6], tais como o princípio da subsidiariedade, o princípio da complementariedade, o princípio pro homine, o diálogo judicial internacional, o controle de convencionalidade e do uso de instrumentos jurídicos próprios do sistema jurídico brasileiro para assegurar o efetivo cumprimento das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos [7].

Os ordenamentos jurídicos brasileiro e interamericano, ao terem como objetivo comum a proteção dos direitos humanos, devem manter uma relação de cooperação e de complementariedade recíproca, visando, com isso, ao preenchimento de lacunas e à solução de deficiências eventualmente existentes em cada sistema jurídico. Nesse caso, as autoridades domésticas, incluído o Ministério Público, podem exercer uma série de poderes de persuasão ou coerção existentes no ordenamento jurídico nacional para dar efetividade às obrigações internacionais [8].

O Ministério Público tem papel fundamental na efetividade dos direitos humanos no âmbito interno, em razão das atribuições que lhe foram confiadas pelo constituinte, notadamente a defesa da ordem jurídica, da democracia, dos interesses sociais e individuais indisponíveis (artigo 127), além e especificamente do controle externo da atividade policial. O Ministério Público brasileiro deverá atuar, com eficiência e resolutividade, para assegurar o respeito, a proteção e a promoção dos direitos humanos positivados nos tratados interamericanos dos quais o Brasil seja signatário, bem como para cumprir e fazer cumprir das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos proferidas contra o Estado brasileiro.

Interamericanização

A interação entre os órgãos do Sistema Interamericano e os atores jurídicos e políticos domésticos gera o que, nas palavras de Mariela Morales Antoniazzi, se chama de “interamericanização” em direitos humanos de ordens nacionais [9], que “envolve o uso de padrões jurisprudenciais no debate público, na atividade judicial e extrajudicial” [10], a exigir mudanças estruturais na esfera interna dos estados.

Spacca

A interamericanização implica transformações na atividade e no funcionamento dos atores e instituições nacionais que, influenciados pela atuação da Comissão Interamericana e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, buscam a concretização dos direitos humanos guiados pelos padrões hermenêuticos estabelecidos pelos referidos órgãos internacionais.

O Ministério Público não pode ficar alheio às transformações promovidas pela emergência do direito internacional dos direitos humanos, catalisadas, especialmente, com a criação e o funcionamento dos órgãos integrantes do Sistema Interamericano. Não pode ficar indiferente às recomendações da Comissão Interamericana, às opiniões consultivas e aos precedentes da Corte Interamericana. Do mesmo modo, não pode se omitir do cumprimento das sentenças do Tribunal Regional prolatadas contra a República Federativa do Brasil.

Nesse contexto, em 25 de junho de 2025, o Ministério Público do Estado de Sergipe (MP-SE) deu um passo importante para o fortalecimento do Sistema Interamericano de Direitos Humanos no âmbito doméstico, com a inclusão, em sua Lei Orgânica (LC nº 02/90), de novos deveres funcionais:

Art. 87 […]

XX – zelar pelo cumprimento dos tratados internacionais de direitos humanos em que a República Federativa do Brasil seja parte, inclusive mediante o exercício do controle de convencionalidade, ficando os membros do Ministério Público do Estado de Sergipe vinculados à jurisprudência e às opiniões consultivas da Corte Interamericana de Direitos Humanos;

XXI – cumprir as decisões e as medidas provisórias proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos contra a República Federativa do Brasil, quando tais encargos se inserirem nas atribuições constitucionais e legais do Ministério Público;

XXII – fiscalizar o cumprimento das decisões e das medidas provisórias proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos contra a República Federativa do Brasil, quando as obrigações estabelecidas na decisão judicial internacional deverem ser cumpridas por autoridades estaduais e municiais.

Legislação em Sergipe

O MP-SE optou por deixar expresso, em sua legislação institucional, de forma também simbólica e indene de dúvidas, que seus membros têm o dever de cumprir os tratados internacionais de direitos humanos. Além disso, o artigo 87, inciso XX, da Lei Complementar nº 02/1990, do Estado de Sergipe, dando concretude aos artigos 1.1 e 2 do Pacto de São José da Costa Rica, estabeleceu claramente o exercício obrigatório do controle de convencionalidade pelos procuradores e promotores de Justiça de Sergipe. O exame de convencionalidade das leis brasileiras não é mera faculdade, mas obrigação jurídica imposta pela Convenção Americana e, agora, pelo artigo 87, inciso XX, da Lei Orgânica do MP-SE.

Apesar da Corte Interamericana ter afirmado, desde o julgamento do Caso Almonacid Arellano e outros vs. Chile, ocorrido em 2006, a força obrigatória dos seus precedentes, ou seja, a eficácia vinculante à ratio decidendi ou aos fundamentos determinantes de suas decisões [11], a nova legislação sergipana ratifica a vinculação aos precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos para os membros do Ministério Público.

Os membros do Ministério Público de Sergipe não poderão exercer suas funções institucionais de modo a limitar os padrões hermenêuticos fixados pela Corte Interamericana. Dessa maneira, darão efetividade mínima aos direitos positivados no Pacto de San José da Costa Rica [12], salvo para a adoção, com fulcro no princípio pro homine previsto no artigo 29.b da Convenção Americana, de interpretação mais benéfica e protetiva ao ser humano [13]. Os tratados integrantes do Sistema Interamericano e os precedentes da Corte Interamericana são um piso mínimo e não um teto máximo de proteção dos direitos humanos [14]. Não se trata, por obviedade, de uma vinculação cega à jurisprudência do Tribunal Interamericano, que poderá ceder se houver precedente nacional mais protetivo.

Inovação

A inovação legislativa orienta os membros do Ministério Público de Sergipe a, em atenção ao artigo 68.1 da Convenção Americana, no sentido do cumprimento, imediata e voluntariamente, das sentenças da Corte Interamericana proferidas contra o Brasil, quando os encargos impostos se inserirem nas suas atribuições constitucionais e legais, tal como ocorreu no Caso Favela Nova Brasília, no qual a Corte proibiu o Parquet de usar os termos “resistência” ou “oposição” à ação policial.

E mais, impõe aos seus membros o dever de fiscalizar o cumprimento das decisões da Corte Interamericana quando as obrigações estabelecidas na sentença internacional devam ser cumpridas pelas autoridades estaduais ou municipais.

Enfim, inicia-se no MP-SE um processo de “interamericanização”, que exigirá, não apenas a criação de uma cultura de diálogo e cooperação com os órgãos do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, mas, sobretudo, o respeito aos precedentes da Corte Interamericana e a utilização dos instrumentos colocados à sua disposição pelo sistema jurídico nacional, a exemplo do inquérito civil, da ação civil pública, do procedimento investigatório criminal, da ação penal, da ação de improbidade administrativa, do termo de ajustamento de conduta e da recomendação, para garantir o cumprimento das sentenças da Corte Interamericana proferidas contra o Brasil.

 


[1] CASSESE, Sabino. Los tribunales ante la construción de un sistema jurídico global. Sevilha: Editorial Derecho Global – Global Law Press, 2010, p. 68.

[2] FIORAVANTI, Maurizio. Constitucionalismo: experiencias históricas y tendencias actuales. Madrid: Editorial Trotta, 2014, p. 151.

[3] FIORAVANTI, Maurizio. Los derechos fundamentales: apuntes de historia de las constituciones. 7. ed.  Madrid: Trotta, 2016, p. 147.

[4] PETERS, Anne. Compensatory Constitutionalism: The Function and Potential of Fundamental International Norms and Structures. Leiden Journal of International Law, vol. 19, p. 579-610, 2006, p. 580.

[5] ALVARADO, Paola Andrea Acosta. Más allá de la utopía: del diálogo interjudicial a la constitucionalización del derecho internacional: la red judicial latinoamericana como prueba y motor del constitucionalismo multinivel. 2015. Tese (Doutorado em Direito Internacional e Relações Internacionais) – Universidade Complutense de Madrid, Instituto Universitário de Investigação Ortega e Gasset, Madrid, 2015, p. 183.

[6] ALVARADO, Paola Andrea Acosta. Más allá de la utopía: del diálogo interjudicial a la constitucionalización del derecho internacional: la red judicial latinoamericana como prueba y motor del constitucionalismo multinivel. 2015. Tese (Doutorado em Direito Internacional e Relações Internacionais) – Universidade Complutense de Madrid, Instituto Universitário de Investigação Ortega e Gasset, Madrid, 2015, p. 185.

[7] RESENDE, Augusto César Leite. O futuro do Sistema Interamericano de Direitos Humanos é doméstico: diálogo e cooperação entre ordens jurídicas como modelos de empoderamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos. 2019. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.

[8] SLAUGHTER, Anne-Marie; BURKE-WHITE, William. The Future of International Law Is Domestic (or, The European Way of Law). In: NIJMAN, Janne; NOLLKAEMPER, André (ed.). New perspectives on the divide between national & international law. Oxford: Oxford University Press, p. 110-133, 2007, p. 119.

[9] ANTONIAZZI, Mariela Morales. Interamericanização: fundamentos e impactos. In: LEGALLE, Siddharta; FACHIN, Melina; RAMOS, André de Carvalho. Interamericanização do direito constitucional e constitucionalização do Sistema Interamericano. Andradina: Meraki, 2022, p. 322-350, p. 322.

[10] ANTONIAZZI, Mariela Morales. Interamericanização: fundamentos e impactos. In: LEGALLE, Siddharta; FACHIN, Melina; RAMOS, André de Carvalho. Interamericanização do direito constitucional e constitucionalização do Sistema Interamericano. Andradina: Meraki, 2022, p. 322-350, p. 340.

[11] MARINONI, Luiz Guilherme. Controle de convencionalidade: na perspectiva do direito brasileiro. In: MARINONI, Luiz Guilherme; MAZZUOLI, Valério de Oliveira (coord.). Controle de convencionalidade: um panorama latino-americano: Brasil, Argentina, Chile, México, Peru e Uruguai. Brasília: Gazeta Jurídica, p. 57-85, 2013, p. 80.

[12] MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer. Eficacia de la sentencia interamericana y la cosa juzgada internacional: vinculación directa hacia las partes (res judicata) e indirecta hacia los Estados parte de la Convención Americana (res interpretata). Estudios Constitucionales, Talca, vol. 11, n. 2, p. 641-694, 2013b , p. 668.

[13] BAZÁN, Victor. Control de convencionalidad, tribunales internos y protección de los derechos fundamentales. Revista Direitos Humanos Fundamentais, Osasco, vol. 14, n. 1, p. 13-61, jan./jun. 2014 , p. 17.

[14] ZÚÑIGA, Natalia Torres. Control de convencionalidad y protección multinivel de los derechos humanos en el Sistema Interamericano de Derechos Humanos. Derecho PUCP, Lima, N. 70, p. 347-369, 2013, p. 355.

Autores

  • é promotor de Justiça em Sergipe, professor de Direitos Humanos dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade Tiradentes (UNIT), pós-doutorado em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade de Coimbra, doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e mestre em Direito Econômico e Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR).

  • é procurador de Justiça do Ministério Público de Sergipe, professor de Direito Constitucional dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e da Universidade Tiradentes (UNIT), doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e especialista em Direito de Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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