A equiparação hospitalar para sociedade limitada unipessoal
2 de julho de 2025, 21h41
A Receita Federal, por meio da Solução de Consulta Cosit nº 60/2025, trouxe à tona um tema tributário de alta complexidade e relevância prática para clínicas e estabelecimentos médicos organizados sob a forma de SLU (sociedade limitada unipessoal): a possibilidade de aplicação dos percentuais reduzidos de presunção (8% para IRPJ e 12% para CSLL) às receitas oriundas de serviços hospitalares. Trata-se, em última análise, da discussão sobre o enquadramento fiscal dessas entidades e sua aderência ao conceito legal e jurisprudencial de “serviços hospitalares”, com vistas à fruição de regime fiscal mais benéfico no lucro presumido.

Se, por um lado, a legislação condiciona o acesso ao benefício fiscal à prestação de serviços hospitalares por sociedades empresárias que atendam às normas da Anvisa, por outro, o conceito de “serviços hospitalares” consolidado na jurisprudência afasta interpretações fundadas exclusivamente na estrutura do prestador, priorizando a natureza das atividades efetivamente desempenhadas.
É justamente nesse ponto que a figura da SLU se apresenta como um divisor de águas na interpretação administrativa da norma fiscal: ela poderia ser reconhecida como “sociedade empresária” para fins da aplicação da margem de presunção reduzida? A antiga barreira criada pela existência da Eireli (empresa individual de responsabilidade limitada) — outrora considerada incompatível com o conceito de sociedade empresária — cede lugar, por força de lei, à SLU, estrutura que, desde a promulgação da Lei nº 13.874/2019, passou a ser reconhecida automaticamente como sociedade empresária unipessoal.
Um possível argumento a ser considerado é que a SLU poderia ser interpretada como equivalente a uma sociedade uniprofissional, caracterizada pela ausência de estrutura empresarial típica. Essa leitura poderia afastar a caracterização da SLU como sociedade empresária para fins de enquadramento na categoria de equiparação hospitalar.
Ao esclarecer sobre esse assunto, a Cosit, alinhada à Solução de Consulta nº 36/2016 e ao julgado vinculante do STJ, reconhece que a SLU, se efetivamente organizada como sociedade empresária (isto é, exercendo profissionalmente atividade econômica com estrutura própria, pessoal, equipamentos e alocação de fatores de produção), faz jus à aplicação dos percentuais reduzidos do IRPJ e da CSLL sobre a receita bruta oriunda de atividades que se enquadrem, objetivamente, nas atribuições 1 a 4 da RDC nº 50/2002 da Anvisa.
Da forma à função
O raciocínio fiscal há muito deixou de ser meramente formal. A exigência de que a empresa esteja “organizada de fato e de direito” como sociedade empresária não se resume à sua inscrição na Junta Comercial com essa natureza jurídica. Exige-se, na prática, a comprovação de que a entidade opera com organização econômica típica de atividade empresarial — o que pressupõe separação entre o profissional e a estrutura de negócios. Essa distinção adquire relevo especial no caso das SLUs, justamente por serem estruturas que misturam o elemento unipessoal com a roupagem empresarial.
A Receita caminha, assim, na direção da funcionalização da norma tributária, alinhando-se a uma jurisprudência fiscal que privilegia o conteúdo econômico das operações sobre sua aparência formal.
Do conceito de ‘serviço hospitalar’
A Resolução RDC nº 50/2002 da Anvisa torna-se o epicentro interpretativo da controvérsia. Apenas os serviços enquadráveis nas atribuições 1 a 4, que compreendem desde o atendimento ambulatorial em hospital-dia até o apoio ao diagnóstico e à terapia, podem ser classificados como serviços hospitalares para fins de aplicação dos percentuais de presunção.

Neste ponto, é importante ressaltar a exclusão expressa das simples consultas médicas do conceito de “serviços hospitalares”. Ainda que realizadas dentro de uma estrutura hospitalar, essas consultas não se confundem com o atendimento prestado por hospitais — entendimento reiterado tanto pela Receita quanto pelo próprio STJ. A análise deve ser granular, serviço por serviço, atividade por atividade. A clínica mista, que realiza consultas e cirurgias ambulatoriais, deverá segregar suas receitas, aplicando o percentual de 32% às consultas e os percentuais reduzidos apenas aos procedimentos efetivamente enquadrados no conceito de serviços hospitalares.
Entre o alívio fiscal e a responsabilidade organizacional
Trata-se de um avanço interpretativo que corrige um descompasso entre a norma legal e a evolução das formas de organização empresarial no país. Mas é também um alerta: o alívio fiscal caminha lado a lado com a responsabilidade organizacional. Não se trata de um salvo-conduto, mas de um pacto implícito entre eficiência empresarial e coerência tributária.
Em um cenário de elevada complexidade fiscal e mutações constantes na legislação societária, a equiparação hospitalar para a SLU não apenas equilibra o jogo, como fortalece o princípio da isonomia tributária — não mais pautado pela forma, mas pela substância.
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