Validade do decreto do IOF: da função extrafiscal ao desvio de finalidade
1 de julho de 2025, 18h39
Com a recente derrubada dos decretos que ampliariam a cobrança do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), surgem dúvidas legítimas: os valores pagos a mais durante a vigência dessas normas pode ser recuperada judicialmente? Em quais hipóteses isso é possível? E quais os limites que o Poder Executivo deve observar ao exercer sua prerrogativa de alterar alíquotas de um tributo extrafiscal?

Por sua natureza extrafiscal, o IOF ocupa posição diferenciada no sistema constitucional tributário. A Constituição prevê duas exceções importantes que relativizam, em parte, a rigidez do princípio da legalidade tributária e da anterioridade.
A primeira diz respeito justamente ao princípio da legalidade, segundo o qual todos os elementos essenciais à instituição do tributo — como materialidade, base de cálculo, alíquota e sujeito passivo — devem estar previstos em lei. Como o IOF é tributo federal, essa competência cabe à União, exercida pelo Congresso.
Contudo, a própria Constituição (artigo 153, §1º) autoriza o Poder Executivo federal a alterar as alíquotas do IOF por decreto, sem necessidade de lei formal, desde que respeitados os limites previamente estabelecidos em lei ordinária. Essa prerrogativa se justifica pela função do IOF como instrumento de política econômica, que exige respostas rápidas a variações conjunturais no crédito, câmbio ou mercado de capitais.
Exemplo concreto: A Lei nº 5.143/1966 autoriza a fixação de alíquotas do IOF-Câmbio até o limite de 25%. Se um decreto presidencial elevar a alíquota para além desse limite — por exemplo, fixando em 30% — haverá violação ao princípio da legalidade, pois o Executivo terá extrapolado os limites legais da delegação recebida.
Essa exceção é, portanto, restrita: o Executivo pode alterar alíquotas, mas não pode inovar em outros elementos da hipótese de incidência, nem ultrapassar os tetos legais fixados.
A segunda exceção refere-se à vigência da norma tributária. Em regra, um tributo só pode ser exigido após respeitar os princípios da anterioridade anual (exercício seguinte à publicação da lei) e da anterioridade nonagesimal (prazo mínimo de 90 dias). O IOF, no entanto, está expressamente dispensado dessas exigências. Como dispõe o artigo 150, §1º, da CF/88, alterações de alíquota do IOF têm vigência imediata, podendo ser cobradas a partir do dia seguinte à publicação do decreto.
Essa dispensa visa garantir a celeridade necessária à finalidade extrafiscal do imposto — mas não exime o Executivo do dever de respeitar os limites legais nem a finalidade regulatória da medida. Alterações com nítido caráter arrecadatório, desvinculadas de motivação extrafiscal, podem ser consideradas ilegítimas por desvio de finalidade.
Assim, o IOF é exceção tanto ao princípio da legalidade quanto ao da anterioridade — mas dentro de balizas constitucionais e legais bem definidas. Seu descumprimento compromete a validade da cobrança.
Desvio de finalidade
Ao analisar os principais pontos da discussão jurídica é possível verificar a existência de controvérsia jurídica quanto à legalidade da cobrança de IOF sobre operações que não estariam expressamente previstas na legislação de regência do imposto, como: operações de antecipação de recebíveis sem coobrigação (conhecidas como “risco sacado”); e aportes em VGBL.
Sustenta-se que os decretos teriam inovado na materialidade tributável — o que exigiria lei formal, nos termos do artigo 150, I, da Constituição. Por outro lado, há quem defenda que essas operações já se enquadrariam nas hipóteses existentes, a depender da interpretação da norma vigente.

Trata-se, portanto, de uma questão controvertida, cujo deslinde dependerá da interpretação consolidada pelo Judiciário sobre os limites da atuação regulamentar.
Já quando é analisado pelo ponto do desvio de finalidades, mesmo que os decretos observem os limites formais — hipótese de incidência prevista e alíquota dentro do teto legal — há fundamento jurídico para pleitear a restituição dos valores pagos, com base na tese de desvio de finalidade. Isso porque o IOF, enquanto tributo extrafiscal, deve ser utilizado como instrumento de intervenção econômica, e não como mecanismo arrecadatório.
Quando a majoração do imposto se dá sem motivação extrafiscal concreta, com o objetivo exclusivo de aumentar a arrecadação, configura-se abuso de poder. A prerrogativa constitucional de alterar alíquotas por decreto e com vigência imediata não é absoluta: exige fundamento fático e econômico que justifique a intervenção.
Se o Executivo utiliza essa prerrogativa para contornar o processo legislativo — sem justificativa extrafiscal concreta — há desvio de finalidade. Nesse cenário, o decreto pode ser considerado inválido, e os valores recolhidos, indevidos.
Embora não haja garantia de êxito, há base jurídica relevante para essa discussão, sendo a análise do caso concreto essencial, especialmente no que se refere à demonstração da ausência de finalidade extrafiscal.
O controle da finalidade integra a legalidade do ato administrativo. Com esse fundamento, o Partido Liberal ajuizou a ADI nº 7.827 no STF, alegando que a elevação do IOF configurou um “mecânico aumento de arrecadação”, sem respaldo em objetivos regulatórios — ou seja, desvio de finalidade.
O IOF é um imposto que admite maior flexibilidade normativa, justamente por sua natureza extrafiscal. Essa característica permite ao Poder Executivo ajustar alíquotas por decreto e com vigência imediata, sempre que necessário para atender objetivos de política econômica.
Essa prerrogativa, no entanto, não é absoluta. Está condicionada ao respeito aos limites legais, à finalidade regulatória e à compatibilidade entre o meio adotado e o fim público declarado. A exceção constitucional existe para viabilizar respostas rápidas do Estado a circunstâncias conjunturais — não para ampliar a arrecadação sem controle legislativo.
Quando a alteração da alíquota ocorre sem motivação extrafiscal legítima, com o único propósito de elevar a arrecadação, configura-se desvio de finalidade. Nesses casos, o instrumento constitucional previsto para intervenção econômica é desvirtuado, comprometendo a legalidade do ato, o equilíbrio entre os Poderes e caracterizando abuso de poder por parte do Executivo.
Por isso, o controle da legalidade do IOF exige análise substancial: é necessário verificar se a medida possui fundamentação econômica, proporcionalidade e aderência ao objetivo que justifica sua adoção — bem como se respeita os limites formais da delegação legislativa, sem inovar na hipótese de incidência.
Todavia, devemos ressaltar que não obstante existam argumentos sólidos para impugnar decretos recentes, a validade de cada medida dependerá, em última instância, da avaliação do Poder Judiciário.
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