Planos de saúde de autogestão: da Súmula 608/STJ e o regime de isonomia pelo Código Civil
1 de julho de 2025, 20h34
O sistema de saúde suplementar brasileiro sobreveio como importante pilar de sustentação com a finalidade de complementar o SUS (Sistema Único de Saúde), oferecendo alternativas organizacionais diversificadas para a prestação de serviços de saúde.

Entre diversas modalidades de plano de saúde, a autogestão representa uma forma peculiar de organização que se distingue das operadoras tradicionais por suas características estruturais e funcionais específicas.
A Lei nº 9.656 de 1998 [1], que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde, estabeleceu o marco regulatório fundamental para o setor, definindo em seu artigo 1º, parágrafo 2º, que as entidades de autogestão são equiparadas às operadoras de planos de saúde para fins de aplicação da lei, submetendo-as à regulação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
A publicação da Súmula 608 [2] do Superior Tribunal de Justiça, estabeleceu um divisor de águas na interpretação jurídica aplicável aos contratos de planos de saúde de autogestão.
O enunciado sumular determina que “Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão” (STJ, 2025), criando regime jurídico diferenciado que demanda análise aprofundada de suas implicações práticas e teóricas.
O presente estudo visa analisar as modalidades de planos de saúde de autogestão sob a perspectiva jurídica contemporânea, examinando especificamente os conceitos fundamentais e características distintivas da autogestão; as facilidades e dificuldades operacionais enfrentadas por esta modalidade; o modelo assistencial específico; as implicações jurídicas da Súmula 608/STJ e a construção de regime isonômico baseado no Código Civil.
Desenvolvimento
A autogestão é o plano de saúde que a própria empresa ou entidade administra. Pode ser adotada por associação civil sem fins lucrativos ou cooperativa, que gerenciarão o plano de saúde de seus funcionários ativos, aposentados, pensionistas e ex-colaboradores e seus dependentes, sem finalidade lucrativa.

O conceito regulamentar evidencia três elementos essenciais: (1) a restrição do público beneficiário a grupo específico vinculado à entidade promotora; (2) a gestão interna realizada pela própria pessoa jurídica e (3) a exclusividade da prestação de serviços ao grupo delimitado.
A autogestão oferece vantagens operacionais significativas em relação às operadoras tradicionais, tais como a proximidade com os beneficiários permite conhecimento detalhado do perfil epidemiológico, demográfico e socioeconômico do grupo, facilitando a adequação de serviços e a implementação de programas preventivos específicos; a gestão mais eficiente dos recursos financeiros, com possibilidade de reinvestimento de eventuais sobras no próprio plano ou constituição de reservas para melhoria de benefícios, e a comunicação mais direta entre gestores e beneficiários, facilitando a identificação de problemas e a implementação de soluções adequadas.
Igualmente é necessário traçar os desafios dos planos de saúde de autogestão. Pode-se elencar como exemplo
A necessidade de atendimento às normas regulamentares, incluindo constituição de reservas técnicas, prestação de informações periódicas, adequação às coberturas mínimas obrigatórias e submissão à fiscalização; além disso, a concentração de riscos, ou seja, ausência de pulverização adequada de riscos pode gerar desequilíbrios financeiros significativos, especialmente em eventos de alta complexidade ou epidemias e também se apresenta como um desafio a ser superado.
Não se pode ignorar ainda a dificuldade no relacionamento com prestadores. Na prática, depara-se com um menor poder de negociação com prestadores de serviços em comparação com grandes operadoras, resultando em custos potencialmente maiores.
A autogestão deve observar sua função complementar ao SUS, conforme estabelecido no artigo 199, §1º, da Constituição. Esta integração manifesta-se através do ressarcimento ao SUS: Obrigação de ressarcir o Sistema Único de Saúde pelos atendimentos prestados a beneficiários de planos privados, conforme artigo 32 da Lei nº 9.656/98.
Assim como a observância às diretrizes de saúde pública: Alinhamento com políticas públicas de saúde, especialmente em ações de vigilância epidemiológica e sanitária.
Por fim, a complementaridade assistencial: Atuação complementar ao sistema público, evitando duplicações desnecessárias e contribuindo para a otimização dos recursos de saúde.
A jurisprudência do STJ, até a edição da Súmula 608, entendia que as normas do CDC regulavam as relações existentes entre filiados e operadoras de planos de saúde, ainda que estas se constituíssem na forma de autogestão, sem fins lucrativos, uma vez que a relação de consumo se caracterizaria pelo objeto contratado, ou seja, a cobertura médico-hospitalar [3].
A orientação inicial baseava-se na interpretação de que a relação de consumo independia da natureza jurídica da operadora, mas do objeto contratado e da vulnerabilidade do beneficiário. O precedente paradigmático foi o REsp 519.310/SP, julgado pela 3ª Turma, que aplicou integralmente o CDC às autogestões.
A 2ª Seção do STJ consagrou o entendimento de não se aplicar o Código de Defesa do Consumidor ao contrato de plano de saúde administrado por entidade de autogestão, haja vista a inexistência de relação de consumo (Súmula nº 608/STJ).
Para Márcio André [4] o Superior Tribunal de Justiça confere tratamento diferenciado para os planos de saúde de autogestão, tendo em vista a necessidade de atender as características próprias dessa modalidade, com o intuito de diminuir os custos de sua manutenção haja vista que os serviços são prestados baseadas nas contribuições dos participantes e, não objetivam o lucro.
A fundamentação para esta mudança de orientação baseia-se em diversos aspectos:
Primordialmente a clara ausência de relação de consumo em que o STJ reconheceu que a autogestão não se caracteriza como atividade econômica de prestação de serviços no mercado de consumo, mas como organização interna de benefícios.
Consequentemente, ante a natureza mutualística haja vista que o modelo fundamenta-se na solidariedade e mutualismo entre membros de grupo específico;
Ainda, é necessário discorrer acerca do controle pelos próprios Beneficiários eis que através da entidade que integram, exercem controle sobre a gestão do plano, afastando a caracterização de vulnerabilidade típica das relações de consumo.
Por fim, há de expor a finalidade não lucrativa, em razão de que a ausência de finalidade lucrativa na atividade de saúde distingue a autogestão das operadoras comerciais.
Na ausência da aplicação plena do CDC, as relações jurídicas nas autogestões regem-se primordialmente pelo Código Civil [5], especialmente pelos princípios contratuais fundamentais, como a boa fé objetiva (artigo 422 do Código Civil), a função social do contrato (artigo 421 do Código Civil) e o equilíbrio contratual.
O estabelecimento de regime isonômico entre beneficiários e autogestão deve pautar-se pelos princípios constitucionais de igualdade e pelos princípios civilísticos de equidade e proporcionalidade. A isonomia não significa tratamento idêntico, mas tratamento adequado às especificidades da relação jurídica.
Conclusão
A análise desenvolvida demonstra que os planos de saúde de autogestão constituem modalidade sui generis no sistema de saúde suplementar brasileiro, caracterizada por elementos distintivos que justificam tratamento jurídico específico.
A Súmula 608 do STJ, ao excluir a aplicação do Código de Defesa do Consumidor às autogestões, reconheceu adequadamente a natureza mutualística e não comercial desta modalidade organizacional.
A investigação revelou que as autogestões oferecem vantagens significativas, como flexibilidade operacional, conhecimento específico do público-alvo e eficiência na aplicação de recursos, mas enfrentam desafios substanciais relacionados à gestão de riscos e conformidade regulamentar e o relacionamento junto aos prestadores.
O regime jurídico baseado no Código Civil mostra-se adequado à natureza específica da autogestão, oferecendo instrumentos suficientes para proteção dos beneficiários através da aplicação dos princípios da boa-fé objetiva, função social do contrato e equilíbrio contratual.
A jurisprudência posterior à Súmula 608 tem demonstrado que os princípios civilísticos permitem proteção efetiva dos direitos dos beneficiários, como evidenciado pela aplicação da surrectio e outros institutos protetivos.
Referências
BRASIL. Lei nº 9656/98. Disponível aqui
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Súmula 608-STJ. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível aqui
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 519.310/SP, relatora ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 20/4/2004, DJ de 24/5/2004, p. 262. Acesso em junho de 2025, disponível aqui
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Acesso em junho de 2025. Disponível aqui
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[1] BRASIL. Lei nº 9656/98. Disponível aqui.
[2] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Súmula 608-STJ. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível aqui
[3] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 519.310/SP, relatora ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 20/4/2004, DJ de 24/5/2004, p. 262. Acesso em junho de 2025, disponível aqui
[5] BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Acesso em junho de 2025. Disponível aqui
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