O conceito de ação é essencial no Direito brasileiro?
1 de julho de 2025, 21h38
Em recente livro publicado por este autor, um dos principais pontos defendidos foi a necessidade de superação do conceito de ação no direito brasileiro, ao menos no que diz respeito à sua utilização para explicar a garantia jurídica da possibilidade de acesso à jurisdição [1]. O objetivo aqui é divulgar alguns dos fundamentos trazidos na obra, a permitir uma maior difusão deles na comunidade acadêmica. A análise aprofundada de vários temas aqui adiantados encontra-se em “Repensando a ação e a jurisdição” [2].
Pois bem.
A ação e eventuais temas correlatos a esse vocábulo configuram-se como um dos assuntos mais investigados e debatidos pelos processualistas brasileiros, europeus e de alguns países sul-americanos, ao menos no contexto do século passado [3].
No Brasil, por exemplo, é fato notório que todo aspirante a se tornar um especialista no campo do processo civil inevitavelmente se deparará com o infindável debate a respeito do conceito da ação. Isso porque tal discussão se configurou praticamente como um ponto obrigatório para quem queira aprofundar a própria pesquisa na teoria processual civil brasileira.
Ante as sólidas produções bibliográficas existentes, um trabalho produzido recentemente que buscasse investigar tal questão no ordenamento jurídico nacional correria o risco de apenas reiterar a história já muitas vezes contada [4]. Repetiria todo aquele caminho que parte do debate entre Windscheid vs. Muther [5], seguido das contribuições de Plósz e Degenkolb [6], Adolf Wach [7] e Chiovenda (com sua prolusione) [8], adentrando posteriormente na perspectiva liebmaniana [9], em alguns casos podendo até haver comentários sobre o relativismo mencionado por Calamandrei [10], para depois analisar o instituto no direito brasileiro, à luz de toda a contenda em torno das “condições da ação” pensadas por Liebman e reverberadas em nosso país. Esse caminho teórico [11] é perceptível em várias obras nacionais [12].
Conceito de ação é essencial?
No entanto, é a partir dessa constatação que surgem algumas perguntas. Seria necessário seguir essa forma de abordagem comumente adotada? Seria possível dizer que o conceito de ação e demais perspectivas relacionadas são essenciais para uma adequada compreensão da estrutura do direito processual civil brasileiro? Será que haveria uma razão robusta para que a doutrina seguisse sempre o referido “roteiro” para explicar o fenômeno jurídico que garante o acesso à jurisdição? [13]

É importante refletir sobre a essencialidade e, principalmente, a necessidade de se continuar a adotar o conceito de ação no nosso ordenamento, tendo em vista uma série de fatores que, à luz de perspectivas atuais, permite que esse instituto, em suas mais variadas “versões”, não seja mais essencial como se costumava pensar.
Por exemplo, ao menos desde Chiovenda [14], passando por Pekelis [15], Calamandrei [16], Orestano [17] e Fairén Guillén [18], há uma denúncia no direito estrangeiro a respeito da relatividade do conceito de “ação” e demais perspectivas relacionadas, algo que não pode ser ignorado numa investigação sobre esse tema. Em diversos países, é possível perceber uma inconciliável diferenciação entre as noções conceituais de possibilidade jurídica de acesso ao judiciário, isso porque tal instituto se relaciona com uma série de variáveis que impedem a sua uniformização em um aspecto macro entre os juristas [19].
Alguns dos pontos de discordância são os seguintes:
- a existência de várias concepções contrastantes a respeito das classificações dos fenômenos jurídicos [20];
- a gradual modificação da estrutura dos ordenamentos, especialmente após o fenômeno da constitucionalização se proliferar no mundo [21];
- variadas interpretações sobre as funções do Poder Judiciário e das partes no agir procedimental;
- a proliferação de teorias que visam a debater a função do direito processual no campo do ordenamento jurídico;
- a influência da herança teórica de cada país.
Divergência do conceito de ação
Apenas para ilustrar, verifica-se que a grande dificuldade entre os teóricos a respeito da ação estaria relacionada às divergências de concepções atinentes à disputa sobre qual seria a melhor classificação para a possibilidade jurídica de acessar o Judiciário. Haveria divergência até mesmo quanto à gradação dessa possibilidade, mediante a investigação da profundidade e da efetividade da garantia estabelecida pelo ordenamento.
Em vista disso, e no livro são mencionados outros contrastes entre as diversas obras existentes, sobre os mais variados pontos [22], tentar estabelecer um meio do caminho para resolver toda essa discordância, que não se valha da conclusão de que esse assunto envolve uma discussão interminável, é uma opção inapropriada.
Daí por que penso que está na hora de refletirmos sobre a necessidade de superar esse conceito no direito processual civil brasileiro. Nesse sentido, acredito que as seguintes razões podem servir de norte para debates a respeito desse ponto.
Abstração teórica do conceito de ação
Em primeiro lugar, toda a abstração teórica moderna feita em torno do conceito clássico de ação não é imprescindível. É possível haver a consolidação de importantes sistemas jurídicos de maneira alheia a esses debates. Isso fica claro da análise do direito estadunidense, que ainda segue uma linha que poderia ser tida como concretista, isso se analisarmos sob uma perspectiva europeia ou nacional. Pouca importância se dá à indagação a respeito da abstração ou da concretude da ação, de maneira distinta do que ocorreu no cenário nacional e europeu, especialmente do século passado, período que ainda influencia a nossa doutrina [23].
Em segundo lugar, no atual contexto jurídico brasileiro, noções de direitos fundamentais e garantias processuais suprem qualquer lacuna que poderia ser deixada pelo direito/poder de ação, e isso fica claro até mesmo ante a sua não prevalência nos julgados do Supremo Tribunal Federal investigados no livro [24].
Em terceiro lugar, há marcantes indícios de que o conceito de ação tem relevância diminuta nos debates a respeito do direito de acesso ao judiciário, isso ante a presença de outras garantias processuais mais específicas, ou então pela implícita opção de se valer de nomenclaturas distintas, consolidadas no direito constitucional [25].
Discussão teórica que não faz sentido
Em quarto lugar, é inegável que os debates sobre a ação acabam se tornando estéreis. São frutos de pontos e contrapontos pautados em perspectivas teóricas relativamente antigas e que sequer consideravam (obviamente que por impossibilidade temporal e contextual) noções modernas da incidência constitucional em prol da efetividade dos direitos. Sem desprezar o rico caldo cultural decorrente dessas percepções, atualmente não faz sentido dar continuidade a toda essa contenda teórica.
Em quinto lugar, evidencia-se ser difícil aceitar a ampliação da noção de ação ao cenário de variadas posições jurídicas exercidas no decorrer do processo, tendo em vista que isso faz com que esse conceito, de tão diluído, perca a sua força normativa, existindo majoriatriamente apenas no campo da retórica, sem desconsiderar que até nessa seara já há perda de relevância, conforme apontado acima.
Em sexto e último lugar, sem óbice de outras constatações feitas no livro, a noção de ação dificilmente explica o complexo fenômeno da participação processual no direito brasileiro, ao menos se levarmos em consideração a forte carga de significação inerente a esse vocábulo, muito ligado a noções de ajuizamento da demanda, não obstante as tentativas de fazerem com que ele seja ampliado para o direito de defesa e o de participar do processo.
À luz da síntese feita acima, entendo que a proposta de superar o conceito de ação configura-se como uma recomendação de que se termine uma discussão teórica que hoje não faz mais sentido, não obstante a sua inegável importância histórica.
[1] Aqui se traz uma breve síntese. Há outras significações relacionadas à ação, muio próximas à que foi dada genericamente acima, que também merecem ser superadas. No presente momento, não seria cabível expor todas, por questões de espaço.
[2] NERY, Rodrigo. Repensando a ação e a jurisdição. Londrina: Thoth, 2025. O texto que será exposto após o presente rodapé foi elaborado com trechos contidos nesse livro. A ideia é manter uma certa fidelidade com o que nele foi dito. Destaco, contudo, que toda a exposição aqui feita tem o objetivo de ser meramente informativa, servindo especificamente para a divulgação da obra aqui mencionada, cuja leitura é fundamental para a efetiva compreensão do que defendo.
[3] Segundo Niceto Alcalá-Zamora y Castillo, entre os trabalhos que versaram sobre a ação, encontra-se o maior conjunto de obras capitais para o direito processual (CASTILLO, Niceto Alcalá-Zamora y. Enseñanzas y sugerencias de algunos procesalistas sudamericanos acerca de la acción. Estúdios de teoría general e historia del proceso (1945-1972). Tomo I: números 1-11. Ciudad Universitária: Universidad Nacional Autónoma de México, 1974, p. 323-324).
[4] Segundo Nieva-Fenoll, trata-se de uma história “tantísimas veces explicada” (NIEVA-FENOLL, Jordi. Imprecisiones privatistas de la ciencia jurisdiccional. Revista de Processo. vol. 220/2013, p. 113-156, junho de 2013, p. 4).
[5] WINDSCHEID, Bernhard; MUTHER, Theodor. Polémica sobre la “actio”. Trad. Tomás A. Banzhaf. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1974, passim.
[6] Analisando as teorias desses autores, com a leitura das obras nas versões em alemão, conferir: OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Efetividade e Tutela Jurisdicional. Fábio Cardoso Machado [et al.]. Polêmica sobre a ação, a tutela jurisdicional na perspectiva das relações entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 91-92.
[7] WACH, Adolf. La pretensión de declaración: un aporte a la teoría de la pretensión de protección del derecho. Trad. Juan M. Semon. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1962, p. 39-54 e WACH, Adolf. Manual de derecho procesal civil. Volumen I. trad. Tomás A. Banzhaf. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1977, p. 34-49.
[8] CHIOVENDA, Giuseppe. L’azione nel sistema dei diritti. Saggi di diritto processuale civile (1894-1937). Volume primo. Milano: Giuffrè editore, 1993, passim.
[9] LIEBMAN, Enrico Tullio. L’azione nella teoria del processo civile. Riv. Trim. Dir. Proc. Civ., 1950, p. 61-66 e passim.
[10] CALAMANDREI, Piero. La relativita’ del concetto d’azione.Opere Giuridiche. Volume 1. Problemi generali del diritto e del processo. Roma: Roma Ter-Press, 2019, p. 427-449, especialmente p. 431.
[11] Na linha do que será dito em rodapé posterior neste escrito, a reflexão aqui feita inevitavelmente se inspirou na fala de Nieva-Fenoll sobre os autores cuja citação já permite compreender o mais importante do debate. Na sua visão, eis a lista, que, de certa forma, também pode ser aproveitada na presente exposição, como se um roteiro fosse: “Savigny, Windscheid, Muther, Plósz, Degenkolb, Wach, Chiovenda, Carnelutti, Calamandrei, Satta o Guasp” (Op. cit, p. 4).
[12] Para uma lista de alguns exemplos, cf. NERY, Rodrigo. Repensando a ação e a jurisdição. Londrina: Thoth, 2025, p. 37, rodapé nº 10.
[13] No contexto estrangeiro, as críticas de Jordi Nieva-Fenoll sobre o conceito de ação merecem ser reverberadas. Muitas delas influenciaram as ideias aqui trazidas, algo que é evidente até mesmo das perguntas feitas no parágrafo em que se encontra este rodapé. Para uma consulta do posicionamento desse autor, conferir: NIEVA-FENOLL, Jordi. Imprecisiones privatistas de la ciencia jurisdiccional. Revista de Processo. vol. 220/2013, p. 113-156, junho de 2013, p. 4-8.
[14] CHIOVENDA, Giuseppe. Principii di diritto processuale civile. Le azioni. Il processo di gognizione. 2ª edizione reveduta e notevolmente aumentata. Napoli: Casa Tipofrafico – Editrice n. Jovene E. C., 1923, p. 44, rodapé n. 1.
[15] PEKELIS, Alessandro. Azione (teoria moderna). Novissimo Digesto italiano. II. AZARA, Antonio (et. al.) (dir.). Torino: Vnione Tipografico – Editrice Torinese, 1957, p. 32, 42, passim.
[16] CALAMANDREI, Piero. La relativita’ del concetto d’azione.Opere Giuridiche. Volume 1. Problemi generali del diritto e del processo. Roma: Roma Ter-Press, 2019, p. 427-449, especialmente p. 431.
[17] ORESTANO, Riccardo. Azione. L’azione in generale.Storia del Problema. Enciclopedia del diritto. IV. Milano: Giuffrè, 1959, p. 817.
[18] GUILLÉN, Víctor Fairén. Estudios de derecho procesal. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1955, p. 61.
[19] Referindo-se a uma parcela da doutrina, possivelmente a europeia, Enrico Redenti denuncia a dificuldade de lidar com o conceito de ação, seja pela multiplicidade de sentidos, seja pela longa tradição histórica e pela variação de compreensões a depender do ordenamento jurídico estudado (REDENTI, Enrico. Diritto processuale civile. I. Nozien e regole generali. Milano: Giuffrè, 1957, p. 45-46).
[20] Basta comparar a noção dos seguintes autores (i) Goldschimidt, da ação como um direito justicial material (GOLDSCHMIDT, James. Derecho procesal civil. trad. da 2ª ed.: Leonardo Prietro Castro. Com add. De Niceto Alcalá-Zamora Castillo. Barcelona: Editorial Labor, 1936, p. 96-97); (ii) Cipriano Gómez Lara, da ação como uma instancia proyetiva (LARA, Cipriano Gómez. Teoría general del proceso. 9ª ed. DF: Oxford University Press, 2001, p. 112); (iii) Benedicto de Siqueira Ferreira, numa perspectiva da ação como relação jurídica processual (FERREIRA, Benedicto de Siqueira. Da natureza jurídica da ação. Exposição e crítica. São Paulo: Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais”, 1940, p. 229).
[21] O que fica claro quando se percebem as discrepâncias teóricas entre autores do início do século XX e os posteriores, especialmente no âmbito do Brasil. A título de exemplo, basta conferir as seguintes obras de juristas do começo do século passado (alguns até do final do século retrasado) para ver uma perspectiva notadamente infraconstitucional: BAPTISTA, Francisco de Paula. Compendio de Theoria e Pratica do Processo Civil para uso das faculdades de direito do Imperio. Recife: Typhographia Universal, 1855, p. 1-2; MONTEIRO, João. Direito das acções. São Paulo: Typographia Duprat & comp., 1905, p. 10-17; DINIZ, Almachio. Theoria Geral do Processo ou Theoria das Acções segundo o Código Civil de 1916. Livraria Francisco Alves: Rio de Janeiro, 1917, p. 13. Já quanto a autores mais próximos do final do século XX, é possível ver um maior diálogo de suas noções com a Constituição, conforme é apontado no livro.
[22] NERY, Rodrigo. Repensando a ação e a jurisdição. Londrina: Thoth, 2025, p. 35-44.
[23] Ibidem, p. 45-55.
[24] Ibidem, 91-97.
[25] Ibidem, p. 89-102.
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