Liberdade de expressão e liberdade religiosa: tensões, limites e harmonização constitucional
1 de julho de 2025, 13h22
A liberdade de expressão e a liberdade religiosa figuram entre os direitos fundamentais mais relevantes da Constituição de 1988, sendo pilares do Estado democrático de Direito e do pluralismo social. Entretanto, na prática, esses direitos frequentemente colidem, exigindo do intérprete jurídico a tarefa de compatibilizá-los sem sacrificar nenhum deles de forma desproporcional.

Em uma sociedade brasileira marcada por enorme diversidade cultural e religiosa, esse conflito adquire contornos complexos, pois de um lado está o legítimo direito de criticar dogmas e práticas religiosas, inclusive de forma contundente, e de outro a necessidade de proteger a dignidade de comunidades religiosas, sobretudo minoritárias, contra discursos de ódio e discriminação. O crescimento das redes sociais agravou ainda mais tais tensões, permitindo a rápida propagação de manifestações que ultrapassam limites aceitáveis e se transformam em ofensas e incitação ao ódio.
Nesse contexto, o papel do Estado laico assume especial relevância. Laicidade não significa hostilidade à fé, mas neutralidade ativa, garantindo a liberdade de crença a todos, sem privilegiar ou perseguir grupos específicos. Omissões estatais diante de discursos de ódio motivados por religião podem violar a igualdade e a dignidade constitucionalmente asseguradas; por outro lado, intervenções excessivas podem restringir de forma indevida liberdades essenciais ao debate democrático. Assim, é necessário analisar cuidadosamente o núcleo essencial protegido de cada direito, estabelecendo limites claros e legítimos, a fim de evitar tanto a censura prévia quanto a tolerância com manifestações intoleráveis.
Discutir esses conflitos não se resume a um exercício acadêmico, mas envolve um problema jurídico e social concreto, que impacta milhões de brasileiros e ameaça a qualidade do debate público e a paz social. A Constituição, ao vedar a adoção de religião oficial e proibir discriminação por crença, impõe ao Estado o dever de proteger minorias vulneráveis, como praticantes de religiões afro-brasileiras e tradições indígenas, frequentemente alvo de preconceito. Mas a mesma Constituição reconhece a liberdade de expressão como indispensável para a democracia, pois sem a possibilidade de crítica — inclusive dirigida a convicções religiosas — não há debate autêntico nem pluralismo efetivo. Restrições desmedidas podem sufocar ideias e comprometer o avanço moral e jurídico da sociedade.
Por isso, a teoria constitucional contemporânea ensina que direitos fundamentais não são absolutos, mas coexistem em tensão e devem ser ponderados. A liberdade de expressão e a liberdade religiosa têm ambas proteção robusta, mas podem colidir quando o exercício de uma ameaça a outra. A crítica teológica, ainda que dura, integra o núcleo da liberdade de expressão e deve ser preservada, enquanto a liberdade religiosa protege a consciência individual e a prática de cultos, resguardando a dignidade humana e o pluralismo democrático. O desafio é garantir que essas liberdades possam conviver no mesmo espaço público, sem que uma seja instrumentalizada para anular a outra, construindo assim um ambiente democrático verdadeiramente plural e respeitoso.
Visão panorâmica nacional e internacional
A doutrina nacional vem se dedicando a estabelecer critérios para harmonizar direitos fundamentais em tensão, partindo do princípio de que nenhum deles é absoluto. Barroso (2017) sustenta que todos os direitos encontram limites na proteção de outros valores constitucionais de igual dignidade, sendo a ponderação de princípios a via para compatibilizá-los sem hierarquias rígidas, sempre preservando seus núcleos essenciais.
Sarlet (2015) reforça que a dignidade da pessoa humana, prevista no artigo 1º, III, da Constituição, atua como fundamento do Estado democrático de Direito e serve de parâmetro interpretativo e limite material, especialmente para coibir manifestações que atentem contra minorias religiosas. Mendes, Coelho e Gonet (2021) destacam que o Supremo Tribunal Federal vem aplicando reiteradamente o princípio da proporcionalidade como método de resolução de colisões, evitando restrições arbitrárias e prevenindo abusos que prejudiquem a convivência democrática.
No plano estrangeiro, destaca-se a influência do direito constitucional alemão, com Robert Alexy (2010) tratando os direitos fundamentais como princípios jurídicos — mandamentos de otimização que devem ser concretizados na maior medida possível. Para ele, quando princípios colidem, não se elimina um em favor do outro, mas se aplica a técnica da ponderação em três etapas: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, sempre orientada por um raciocínio racional e justificável. Dworkin (2002) também valoriza a liberdade de expressão como elemento vital do autogoverno democrático, permitindo restrições somente em situações de incitação à violência ou discriminação. Da mesma forma, Sunstein (2000) defende ampla liberdade crítica e plural, desde que não se transforme em incentivo ao ódio ou à exclusão de grupos vulneráveis.
A aplicação prática desses referenciais teóricos se reflete na jurisprudência nacional, que consolidou o princípio da proporcionalidade como critério central para compatibilizar liberdades fundamentais. No caso Ellwanger (HC 82.424/RS), o STF negou habeas corpus a autor condenado por racismo, firmando que a liberdade de expressão não abrange discursos de ódio e negacionismo histórico. Na ADI 4273/DF, considerou legítimo o ensino religioso confessional facultativo, desde que plural e sem imposição estatal, equilibrando a liberdade religiosa com o dever de laicidade do Estado. No ARE 958.252/MG, reafirmou que a liberdade religiosa, ainda que essencial, comporta restrições proporcionais para proteger outros direitos e a ordem pública.
O Superior Tribunal de Justiça também fortaleceu esse entendimento. No REsp 1.584.194/SP, reconheceu o dano moral coletivo em razão de postagens ofensivas contra religiões de matriz africana, enfatizando que a liberdade de expressão não legitima discurso de ódio. Já no REsp 1.365.364/RJ, estabeleceu que o direito ao culto não pode se sobrepor ao direito ao sossego público, ao tratar de poluição sonora em templos. Esses julgados evidenciam que a dignidade da pessoa humana funciona como limite material objetivo para todas as liberdades, impedindo tanto censura excessiva quanto abusos intoleráveis, e garantindo que a convivência plural e democrática seja sempre preservada.
Desafios práticos e caminhos de harmonização
No cotidiano brasileiro, para além dos julgados já consolidados, persistem práticas de discriminação religiosa impulsionadas por discursos de ódio, muitas vezes travestidos de pregação moral. É recorrente que líderes religiosos, em programas de rádio e TV, classifiquem religiões de matriz africana como “demoníacas”, alimentando estigmas históricos.
Também proliferam postagens em redes sociais que taxam os praticantes dessas religiões de “feiticeiros” ou “adoradores do diabo”, o que amplia a violência simbólica e estimula ataques diretos, incluindo agressões físicas e incêndios a terreiros. Há ainda discursos que rotulam ateus ou outras minorias religiosas como “inimigos de Deus” ou “amaldiçoados”, legitimando perseguições e hostilidade.
Diante desse cenário, torna-se essencial distinguir a crítica teológica legítima — como discordar de dogmas — de manifestações que incitam ódio ou violência, pois estas extrapolam a proteção constitucional. Expressões do tipo “fechem seus terreiros” ou “eles merecem punição” não são exercício legítimo de liberdade, mas discursos de ódio que ferem a dignidade humana. Cabe, portanto, fomentar um debate público qualificado e promover respostas jurídicas firmes, para que a liberdade religiosa não seja utilizada como escudo para legitimar a intolerância.
A técnica de ponderação tem se mostrado um instrumento valioso para lidar com tais colisões. Ao identificar o núcleo essencial de cada direito — a liberdade crítica, de um lado, e a prática religiosa sem medo de perseguição, de outro — o jurista deve verificar se eventuais restrições são adequadas, necessárias e proporcionais, sempre buscando meios menos gravosos e equilibrando valores constitucionais. Essa metodologia, consolidada na jurisprudência do STF e do STJ, tem permitido soluções harmônicas, preservando a dignidade da pessoa humana e a convivência democrática.
Nesse contexto, a função do Estado laico é decisiva. Laicidade não se confunde com hostilidade, mas implica neutralidade ativa, assegurando a liberdade de todas as crenças — inclusive de quem não professa nenhuma — sem adotar religião oficial nem privilegiar grupos específicos. O Estado deve proteger minorias vulneráveis contra discriminações motivadas por fé, promover tolerância e garantir um espaço de debate plural e respeitoso, onde críticas legítimas possam conviver com a dignidade de todos. Assim, cumpre seu papel de impedir abusos e assegurar que as liberdades fundamentais se exerçam em condições de igualdade e respeito mútuo.
Conclusão
A análise confirma que não há solução simples para os conflitos entre liberdade de expressão e liberdade religiosa em sociedades democráticas. Ambas são fundamentais para a dignidade da pessoa humana e para o pluralismo político, pilares do Estado democrático de Direito.
A Constituição de 1988 garante a liberdade de pensamento (artigo 5º, IV), de expressão (artigo 5º, IX) e de crença (artigo 5º, VI), assegurando o livre exercício de cultos e a proteção dos seus espaços. Esses direitos se reforçam mutuamente, mas podem colidir quando uma manifestação ameaça o exercício da outra.
Doutrina e jurisprudência indicam que nenhum direito fundamental é absoluto. Todos convivem em harmonia, devendo ser ponderados para que o exercício de um não anule o núcleo essencial do outro.
A crítica teológica, ainda que incômoda, deve ser protegida, mas não pode se transformar em discurso de ódio ou violência contra grupos religiosos.
A proporcionalidade, com seus subprincípios de adequação, necessidade e proporcionalidade estrita, oferece parâmetros sólidos para compatibilizar valores constitucionais, sem recorrer à censura nem tolerar abusos.
Cabe ao Estado, além de garantir a aplicação desses princípios, investir em políticas de educação para a tolerância religiosa e fortalecer canais de denúncia e responsabilização contra discursos discriminatórios. À sociedade civil, compete cultivar uma cultura de respeito e crítica construtiva.
Somente assim será possível garantir um espaço público plural, democrático e respeitoso da dignidade de todos.
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Referências
BRASIL. Constituição Federal de 1988.
BRASIL. Lei nº 7.716/1989 (crimes de preconceito racial).
BRASIL. Código Civil (Lei nº 10.406/2002).
STF. HC 82.424/RS (Ellwanger), Rel. Min. Maurício Corrêa, 2003.
STF. ADI 4273/DF, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, 2017.
STF. ARE 958.252/MG, Rel. Min. Alexandre de Moraes, 2019.
STF. ADI 4439/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, 2017.
STJ. REsp 1.584.194/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, 2017.
STJ. REsp 1.365.364/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, 2014.
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo.
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FERRAJOLI, Luigi. Direitos e garantias: a tutela dos direitos fundamentais.
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FERRAZ JR., Sérgio. “Laicidade e Religião no Direito Constitucional Brasileiro”, Revista Brasileira de Estudos Constitucionais, v. 1, n. 2, 2012.
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ONU. Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação baseadas em religião ou crença (Res. 36/55, 1981).
OEA. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica).
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