Efeitos da legislação sobre dieta hospitalar: dignidade humana alimentar nas compras públicas
1 de julho de 2025, 9h23
A alimentação hospitalar é um dos pilares fundamentais para o tratamento e a recuperação de pacientes em ambientes clínicos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece a nutrição adequada como um determinante direto de prognóstico em enfermidades crônicas e agudas. No entanto, no Brasil, a gestão da alimentação hospitalar pública nem sempre é efetiva como deveria, visto que é atravessada por uma questão de difícil resolução, o processo licitatório.

No primeiro semestre de 2025, foi elaborado relatório intitulado “Dieta hospitalar e Compras Públicas: Como garantir a nutrição dos acamados nos hospitais públicos do Brasil? Intersecções entre as realidades mineira e amazonense” dentro do Laboratório de Inovação em Práticas Legislativas, Legislab vinculado à UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e com a participação de estudantes da UEA (Universidade do Estado do Amazonas).
O problema é multifatorial, abrangendo as áreas da saúde em geral, nutrição, gestão de recursos públicos, planejamento orçamentário e licitação. Assim, o recorte de abordagem escolhido foi a garantia da nutrição dos acamados em hospitais da rede pública a partir do uso de contratações públicas.
De acordo com a Lei nº 14.133/2021, a licitação deve assegurar a proposta mais vantajosa para a administração pública, respeitando princípios como isonomia, eficiência e interesse público. Todavia, a aplicação mecânica desse instrumento no âmbito da alimentação hospitalar vem demonstrando limitações quanto ao prazo de entrega dos alimentos, o respeito à cultura alimentar do paciente e à demora nas compras públicas.
Os casos de atraso na entrega, fornecimento de produtos vencidos ou mal acondicionados, e cardápios desbalanceados são recorrentes promovendo o agravo do quadro dos paciente e em alguns casos levando-o ao óbito. A autonomia da pessoa acamada relativa às suas escolhas alimentares, à alimentação “via sonda” (nutrição enteral) é outra perspectiva relevante. A correlacão entre vida ( biológica/historiográfica), saude, nutricão, acesso ao alimento demonstram a centralidade da questão alimentar para a compreensão da dignidade humana.
Em entrevistas e seminários com especialistas, identificou-se o desrespeito à cultura alimentar, alimentos de baixo valor nutricional ou em quantidades insuficientes. Ainda que os objetivos da lei de licitações mirem a efetividade de direitos, a falta de capacitação das equipes técnicas de compras licitatórias ao elaborar o Estudo Técnico Preliminar (ETP) vulnerabilizam as condições para efetividade do direito à alimentação de pessoas hospitalizadas. As equipes ao elaborarem esse documento tendem a inserir dados insuficientes quanto à necessidade da compra. O objetivo do ETP é justificar a necessidade de licitação, a escolha da modalidade, o tipo de alimento, as condições para a aquisição e as quantidades.
Assim, o ETP essencial ao funcionamento das compras públicas e distribuição de alimentação de qualidade é preenchido como um documento “pro forma” sem a devida cautela e que dialoga pouco com as políticas de produção alimentar, de saúde pública.
Para garantir a efetividade da compra pública é necessária a colaboração entre a área técnica (demandante) e a área de compras. Essa interação é essencial, pois a área de compras não consegue conduzir o processo sozinha e precisa do conhecimento técnico, fase necessária para o planejamento, começando com o levantamento de demanda e suas especificidades no estudo técnico preliminar. Este estudo deve identificar o público atendido, suas características (idade, cultura, etc.) e histórico de uso, o que subsidia a definição do que, como e quanto comprar.
O estudo técnico preliminar define o objeto da contratação e a solução a ser aplicada antes da elaboração do Termo de Referência, por isso seu devido preenchimento é essencial à disponibilização de alimentos. O ETP é uma das condições para assegurar que os efeitos da lei de licitação possam ser alcançados considerando a realizabilidade das ações governamentais que propiciem o acesso ao alimento adequado e cumpra a sua função social.
A realização de audiências públicas permite a inclusão de insumos informacionais que tragam dados da realidade sobre a oferta. Esse contato com o setor de produção e venda pode, por meio de um processo informado, reduzir a compra insuficiente de alimentos, a baixa qualidade, atrasos na entrega e demais questões que tornam a compra pública deficiente para garantir a alimentação hospitalar.
Ainda, a análise retrospectiva de processos anteriores (problemas, ressalvas jurídicas, pedidos de esclarecimento, impugnações, recursos, anulações) é uma fonte importante de melhoria para futuras contratações, além de indicadores sobre a real efetividade da lei.
A centralização de compras públicas é outro ponto de destaque pois melhoraria o ganho processual e potencial economia de escala. A centralização permitiria que o órgão comprador desenvolvesse a especialização e a proximidade com a produção, aumentando a participação e reduzindo a deserção/fracasso nas licitações. Um desafio da centralização é a necessidade de alinhamento com as áreas técnicas dos diversos órgãos participantes, já que a central não dispõe de todos os técnicos especializados.
Nesta ótica, a compra centralizada uniformizaria e otimizaria os processos de contratação de diversas entidades governamentais que contrataram de forma unificada ao fortalecer a confiança do mercado no órgão centralizador, incentivando maior participação e menor deserção em licitações.
O risco de desabastecimento nos hospitais decorre da ineficiência de compras públicas, situação grave que potencializa o agravamento dos quadros dos pacientes, poderia ser minimizada com marketplaces face a flutuação dos preços dos alimentos e insumos, (havendo influência, inclusive, das mudanças climáticas).
Um credenciamento amplo de fornecedores, via marketplace, permitiria a contratação daquele que ofereça o melhor preço, em regime de maior competição, no momento da necessidade pública. A experiência bem-sucedida de prefeituras com obras usando esse modelo indica ser possível a aplicação para as compras públicas de alimentos e insumos hospitalares destinados à alimentação enteral.
No entanto, é preciso uma regulamentação que reconheça a importância da alimentação como questão de saúde pública. Assim, a participação dos hospitais e prefeituras seria orientada por um procedimento compromissado com a alimentação adequada de pessoas acamadas.
Pessoas vulnerabilizadas pela doença, sem voz, necessitam do cuidado promovido pelo dever público de buscar escolhas eficientes, sobretudo quando tratam de direitos fundamentais, cuja violação, causada pela má alimentação (ausência, insuficiência, ou qualidade). A questão do acesso e da produção são dimensões transversais que se consideradas podem abrir espaço para uma maior qualidade nas compras públicas de alimentos.
Marketplace para alimentos
A criação de um marketplace para alimentos e insumos hospitalares exige a atuação coordenada de diversas esferas. O Poder Legislativo teria um papel primordial na criação do marco legal e regulatório necessário para a implementação e operação do marketplace, explorando os mecanismos da Lei nº 14.133/2021, como o credenciamento e as margens de preferência.
A prefeitura, os setores de compras e os hospitais públicos, exemplificados pela boa prática da Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão (Seplag) em Minas Gerais, seriam os gestores da implementação e gestão da plataforma. Por fim, os órgãos de controle, como os Tribunais de Contas, no âmbito das suas competências seriam responsáveis pela fiscalização e auditoria, garantindo a legalidade, transparência e eficiência das operações do marketplace.
A importância de uma dieta alimentícia na qual as pessoas se sintam representadas culturalmente e obtenham satisfação e bem-estar inclui a esfera ecológica. A alimentação em Minas Gerais enfrenta o desafio da adequação cultural e nutricional, evidenciado por “desertos” e “pântanos” alimentares, sendo os desertos às regiões em que falta comida e os pântanos as localidades em que faltam alimentos nutricionalmente adequados, apesar de não faltarem alimentos de menor qualidade.
A culinária mineira, por exemplo, culturalmente rica, possui modos de fazer com frituras e gorduras, gerando debates entre nutricionistas e produtores sobre sua saudabilidade. Nesse contexto, a política de segurança alimentar e nutricional busca equilibrar o caráter regional com a minimização da ingestão dos ultraprocessados um desafio para dietas como a enteral, que podem exigir algum processamento. Na sua dimensão terapêutica, e novamente nas escolhas, regramentos que considerem a autonomia da vontade para a comida “afetiva”, sobretudo, de doentes terminais, provocam outros desafios jurídico-normativos.
Assim, o direito à alimentação se concretiza nas normativas que expressam cardápios. Sua elaboração necessita considerar as múltiplas áreas do conhecimento. O relatório apontou como alternativa, a médio prazo, a elaboração de cardápios nos hospitais por equipe multidisciplinar que deverá considerar as especificidades clínicas e as necessidades psicossociais dos pacientes, garantindo que a dieta seja terapêutica e humanizada.
O sucesso dessas iniciativas dependerá, em última análise, da capacidade de vencer a burocracia e a inércia institucional. A nova Lei de Licitações oferece ferramentas poderosas, mas a verdadeira transformação reside na vontade política e na colaboração efetiva entre todos os atores: gestores, profissionais de saúde, fornecedores para que os pacientes e suas famílias, sejam cuidados.
Ao dar voz aos acamados por meio de pesquisas de satisfação e ao otimizar a cadeia de suprimentos com tecnologia e planejamento, é possível incrementar a efetividade da alimentação como cura, pois a nutrição hospitalar pode ser sinônimo de cuidado integral, respeito à dignidade humana e recuperação efetiva. Este é um investimento não apenas na saúde individual, mas na vitalidade e na equidade de todo o sistema de saúde público brasileiro. Favas contadas, é possível a melhoria da qualidade do gasto em saúde, por meio da adequada alimentação.
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