É hora de repensar a Lei nº 8.038 e as normas processuais penais do RISTF?
1 de julho de 2025, 16h21
Hoje, parece tranquilo dizer que, bem ou mal, cada vez mais o STF tem avocado para si responsabilidades no âmbito processual penal, em especial no processamento originário de inquéritos a ações penais.

Dois exemplos claros, relevantes e recentes: primeiro, a instauração do Inq. 4.781 (“inquérito das fake news”) em março de 2019, com base em norma regimental, com relatoria escolhida pelo presidente da Corte e sem sorteio, que desde então tem atraído — ainda hoje — para o STF e para a relatoria, por conexão, a competência sobre dezenas de outras investigações e ações penais originárias.
Segundo, a recente (mais uma) alteração no entendimento sobre a prevalência do foro especial por prerrogativa de função mesmo após a saída do cargo [1], que, positiva ou negativamente, não apenas desaguará em novos processos penais na Corte, mas também tem justificado a avocação de processos antes declinados.
E também parece tranquilo dizer que a tramitação desses processos no STF tem despertado diversas críticas, sejam elas acertadas ou não, sobre a incompatibilidade do rito adotado no Supremo com a legislação processual geral, em especial alterações recentes, como a do chamado “pacote anticrime” (vedação da iniciativa do juiz na fase de investigação, substituição probatória do órgão de acusação, proibição de decretação de cautelares pessoais de ofício etc.), do direito de sustentação oral em agravos (Lei nº 14.365/2022) ou não tão recentes como a instituição do sistema de inquirição direta e perguntas apenas complementares pelo juiz na instrução da ação penal (artigo 212 do CPP, alterado ainda em 2008).
Processo penal modernizado
Notadamente, a aplicabilidade dessas e outras normas processuais penais gerais, que modernizaram o processo penal brasileiro, tem sido afastada nos inquéritos e ações penais originários do STF pelo argumento de uma suposta especialidade ou da Lei nº 8.038 de 1990 ou, ainda mais frequentemente, das normas processuais-penais do Regimento Interno do STF.
A Lei nº 8.038/90, como se sabe, institui normas procedimentais, processuais, para o rito e julgamento de determinadas ações e recursos perante o STJ e o STF, como a ação penal originária, recursos ordinários em habeas corpus e em mandado segurança etc. No que diz com as ações penais, a sua disciplina é estendida para os Tribunais de Justiça e Federais locais (Lei nº 8.658/93).

De fato, a suposta especialidade dessa lei é a razão pela qual o STF deixa de aplicar, nos inquéritos e ações penais que tramitam perante a Corte, a modernização da legislação processual penal promovida pela Lei nº 13.964/19, em especial o “juiz das garantias” criado pelos novos artigos 3º-A e seguintes do CPP, considerado constitucional em sua maior parte para as instâncias inferiores, mas não aplicável aos tribunais pela tal especialidade da Lei nº 8.038 (cf. ADI nº 6.298, p. 461 do inteiro teor do acórdão, voto do ministro Dias Toffoli).
A suposta especialidade da Lei nº 8.038/90 não existe, pois ela só trata do rito da ação penal (o seu primeiro capítulo trata, já, da “ação penal originária”), não da tramitação do inquérito, de modo que não existe regra mais específica sobre isto na Lei e as regras do juiz das garantias deveriam se aplicar sim, no que couber, ao trâmite de inquéritos e ações penais perante os tribunais.
Regimento mais específico
Além disso, o STF também tem decidido que RI-STF seria mais específico do que as inovações em leis processuais e por isso prevaleceria. Por exemplo, a 1ª Turma nega o direito de sustentação oral em agravos, incluído no artigo 7º, § 2º-B, da Lei nº 8.906 pela recente Lei Federal nº 14.365 de 2022, dizendo ser mais específico o artigo 131, § 2º, do Regimento Interno, de 1980, que veda a sustentação [2].
Na prática, então, o argumento da especialidade tem sido utilizado para afastar inovações que modernizaram o direito processual, em especial o penal, em favor de Lei de 1990 que nada dispõe sobre os importantes marcos alcançados com a Lei nº 13.964 quanto à tramitação do inquérito policial, como a vedação da iniciativa do juiz na fase da investigação e a substituição probatória do órgão de acusação (artigo 3º-A, CPP), reserva de jurisdição para decisão sobre requerimentos de acesso a informações sigilosas e outros meios de prova que atinjam direitos fundamentais (artigo 3º-B, XI) etc.
Ou, quando não isso, renuncia-se às inovações em favor de normas regimentais antigas, de 1980, que têm força de lei processual apenas em razão de excepcional poder que a Constituição de 1969 dava ao STF para estabelecer regimentalmente normas processuais (artigo 119, § 3º, ‘c’ da CF/69) — poder este que não foi mantido pela Constituição de 1988, a qual determina que os tribunais, inclusive o STF, devem elaborar seus regimentos internos “com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes” (artigo 96, I, ‘a’, CR/88).
Repensar a lei
Então, se a suposta especialidade de leis e normas regimentais antigas (têm mais de 30 anos), concebidas em outro contexto normativo, tem afastado as alterações que modernizaram o processo penal — com adição de limitações defendidas há muito pela melhor literatura, como, além das já citadas acima, a separação do juízo do inquérito do juízo da ação penal (artigo 3º-C, CPP) etc. —, talvez seja hora de repensar a lei que trata do processamento de ações penais nos tribunais para incorporar nela, expressamente, os mesmos institutos e regras que, para as instâncias inferiores, já atualizaram a legislação processual penal, bem como a disciplina do inquérito policial.
Não há qualquer impedimento para isso; na verdade, parece natural a necessidade de revisão dessas normas antigas, em especial as editadas com poder excepcional concedido pela Constituição de 1969 que não foi mantido pela Constituição de 1988, para compatibilização com aquilo que já foi considerado positivo e constitucional pelo STF para as instâncias inferiores.
A Lei nº 8.038 pode perfeitamente ser mantida em seus aspectos positivos, com a incorporação das alterações já consagradas e respeitadas pelas demais instâncias, para aprimoramento e modernização: inclusão da disciplina do inquérito policial nas Cortes Superiores, com o juiz das garantias, vedação da iniciativa do juiz na investigação e da substituição probatória da acusação, separação dos juízos do inquérito e da ação penal, vedação da decretação de cautelares pessoais de ofício, direito de sustentação oral em agravos, do sistema inquirição direta das testemunhas pelas partes e perguntas apenas supletivas pelo juiz etc.
E o plenário do STF, no 26º Agravo Regimental na Ação Penal nº 470, já decidiu que, ainda que as normas processuais-regimentais do RISTF tenham força de lei processual, dado que quando editadas a Constituição de 1969 dava ao STF esse poder (artigo 119, § 3º, ‘c’, CR/69), a edição posterior de normas processuais pelo Congresso revoga essas normas-regimentais processuais contrárias:
Relator ministro Joaquim Barbosa: “com o advento da Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal perdeu essa atribuição normativa extraordinária, passando a submeter-se à lei votada pelo Congresso Nacional para efeito da disciplina do processo e julgamento dos feitos da sua competência originária e recursal (CF, artigo 22, I)” e “como ocorre com todas as espécies normativas, o RISTF, evidentemente, também pode ser alterado, total ou parcialmente, e mesmo tacitamente, quando norma posterior dispuser de forma diversa ou regular inteiramente a matéria de que ele tratava (artigo 2º, § 2º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro)” (AP 470, 26º AgRg, p. 11 do inteiro teor).
Ministro Ricardo Lewandowski: “ficou assentado naquele julgamento que o advento de lei incompatível com matéria idêntica regulada no Regimento Interno do Supremo sobrepõe-se a esta. E não poderia ser diferente, tendo em vista a competência privativa da União para legislar sobre processo, a ela assegurada na Constituição de 1988” (p. 157 do inteiro teor).
Ministro Roberto Barroso: “é fora de dúvida que as previsões do Regimento consideram-se mantidas, desde que haja compatibilidade material com a nova Constituição e não venham a ser revogadas por ato posterior” (idem, p. 37 do inteiro teor).
Ministra Rosa Weber: “Diante dessa premissa incontestável — a de que o RISTF foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988 com status de lei ordinária —, assento desde logo, à demasia — talvez até acacianamente —, que tal em absoluto significa detenha o preceito regimental foros de perenidade, ou esteja blindado ou imune a mudanças. Significa apenas que alterações no seu objeto, ou sua revogação — no que lei, em sentido material, disciplinadora do processo —, hão de se fazer por lei ordinária, e não mais pelo Supremo Tribunal Federal” (p. 93 do inteiro teor).
Em especial, no voto de minerva do ministro Celso de Mello: “em virtude desse novo contexto jurídico, essencialmente fundado na Constituição da República (1988) – que não reeditou regra com o mesmo conteúdo daquele preceito inscrito no art. 119, § 3º, “c”, da Carta Política de 1969 –, veio o Congresso Nacional, mesmo tratando-se de causas sujeitas à competência do Supremo Tribunal Federal, a dispor, uma vez mais, em plenitude, do poder que historicamente sempre lhe coube, qual seja, o de legislar, amplamente, sobre normas de direito Processual” (p. 249 do inteiro teor).
Daí a pergunta que inspira o título do texto: não é hora de repensar a Lei nº 8.038 e as normas processuais penais do RI-STF?
A seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/SP) anunciou, recentemente, a inauguração de comissão para propor reforma do Judiciário [3] e o grupo, composto por dois ex-presidentes do Supremo Tribunal Federal, dois ex-Ministros da Justiça, representantes da academia além, claro, de especial representação da Advocacia nas pessoas de dois ex-presidentes da OAB, tem qualificação destacada para impulsionar a discussão de forma séria e técnica.
[1] Revista Consultor Jurídico: “STF conclui julgamento e decide que foro especial se mantém após saída do cargo”. Por José Higídio. Disponível aqui.
[2] Revista Consultor Jurídico: “Ainda sobre a sustentação oral em agravos no STF”. Por Alberto Zacharias Toron e Neuler Mendes Jr. Disponível aqui.
[3] Revista Consultor Jurídico: “OAB-SP inaugura comissão para propor reforma do Judiciário”. Por Rafael Neves. Disponível aqui.
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