As aduanas e o 'protecionismo verde' em 'tempos difíceis'
1 de julho de 2025, 14h49
‘Aduanas verdes’
Em 14/5/2024, dedicamos esta coluna Território Aduaneiro a um tópico que assume cada vez mais relevância no comércio internacional: as aduanas verdes [1], tema presente, no âmbito da Organização Mundial das Aduanas (OMA), em Plano de Ação debatido na 88ª Sessão da Comissão de Política e na 141ª/142ª Sessões do Conselho, originando documento dinâmico (“Green Customs Action Plan”) [2], com medidas que as administrações aduaneiras devem adotar ou desenvolver para reduzir a sua própria pegada ecológica (“Ser”), para proteger o meio ambiente e facilitar o comércio verde (“Fazer”) e para implementar ideias transformadoras rumo à excelência em sustentabilidade (“Inovar”), e, ao fazer isso, impulsionar o progresso relacionado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas [3].
Naquela ocasião, apresentamos, de forma sintética, como cada um desses verbos (“Ser”, “Fazer” e “Inovar”) se manifesta em ações, destacando o caráter prioritário das “Aduanas Verdes” no Planejamento Estratégico 2022-2025 da OMA [4], demandando ações imediatas e aprimoramentos essenciais para lidar com as ameaças e oportunidades identificadas inicialmente no Customs Environmental Scan, documento de 2021, que, após a redação da coluna, recebeu atualização, em julho de 2024 [5]. E chamamos a atenção para a importância do Brasil nesse contexto, seja pelo fato de seu bioma ser um dos maiores responsáveis pelo equilíbrio climático do planeta, abrigando, v.g., a maior parte da Amazônia [6], ou ainda pela riqueza de espécies de plantas e animais, lamentavelmente sob frequente ameaça.
Tratamos ainda da criação, no âmbito da Aduana brasileira, do “Grupo Curupira” (“Grupo Nacional de Combate ao Tráfico de Fauna e Flora na RFB”), iniciativa alinhada com “Green Customs”, e que já começa a produzir resultados [7].
‘Protecionismo verde’
O multilateralismo, no comércio internacional, busca conter os ímpetos protecionistas discriminatórios dos Estados, por meio de tratados internacionais, calcados em uma “nave-mãe” — o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (Gatt) —, que tem como fundamentos a “Nação mais Favorecida” (NMF), artigo I, e o “Tratamento Nacional” (TN), artigo III. A NMF impede que os Estados estabeleçam benefícios apenas a determinados parceiros, de forma discriminatória, e o TN veda a discriminação entre mercadorias estrangeiras e nacionais, por mecanismos que não a “tarifa” [8].
Com as sucessivas rodadas de negociações tarifárias pós Gatt/1947 (mormente nas décadas de 50 e 60 do século passado), o protecionismo, contudo, acabou ganhando contornos não tarifários, disfarçados. Surgia, assim, um “neoprotecionismo”, que tocava temas como barreiras técnicas, sanitárias, licenças, dumping e subsídios, demandando nova regulação, que acabou sendo efetuada principalmente na Rodada Uruguai de Negociações Comerciais [9].
A consolidação de uma agenda aduaneira orientada à sustentabilidade global passa a exigir atenção à complexa interseção entre justiça climática, desenvolvimento sustentável e os riscos emergentes de um novíssimo protecionismo ambiental disfarçado. A justiça climática parte do reconhecimento de que os efeitos das mudanças climáticas são distribuídos de forma desigual, afetando com maior severidade as populações vulneráveis e os Estados historicamente menos emissores. Por sua vez, a sustentabilidade, em sua acepção ampla, implica a integração equilibrada das dimensões ambiental, social e econômica no processo de desenvolvimento. Em contraste, o protecionismo envolve práticas destinadas a restringir a concorrência internacional, por meio de barreiras, sendo frequentemente criticado por sua capacidade de distorcer o comércio global sob justificativas ambientais.

Ganha relevância, nesse cenário, o chamado “protecionismo verde” (“green protectionism”) [10], que consiste em políticas ambientais unilaterais instrumentalizadas como barreiras comerciais disfarçadas.
Recorde-se que medidas formalmente justificadas por objetivos ambientais podem, na prática, às vezes, favorecer produtores domésticos em detrimento de exportadores estrangeiros, sobretudo daqueles oriundos de países em desenvolvimento e de menor desenvolvimento relativo, que enfrentam maiores dificuldades para se adaptar a exigências regulatórias complexas.
Exemplo em debate: CBAM/UE
O Mecanismo de Ajuste de Carbono na Fronteira — Carbon Border Adjustment Mechanism (CBAM) — é uma política da União Europeia, disciplinada pelo Regulamento (UE) 956, de 2.023 [11], para dar resposta às emissões de gases com efeito de estufa incorporadas em determinadas mercadorias, na sua importação para o território aduaneiro da União, a fim de evitar o risco de fuga de carbono, reduzindo as emissões globais de carbono, por meio de criação de incentivos à redução das emissões pelos operadores de países terceiros.
Na Solução de Controvérsias 639 (DS 639) [12], atualmente em tramitação na OMC, a Federação Russa solicitou consultas (em 12/5/2025), para verificar se a União Europeia teria adotado disposições inconsistentes com o Gatt (tratamento discriminatório), com o Acordo sobre Licenças de Importação e com o Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias, entre outros protocolos, ao estabelecer exigências ambientais, entre elas a referente a rastreabilidade e certificações socioambientais exigidas para a importação de produtos agrícolas [13].
Em 22/05/2025, a União Europeia declinou da solicitação da Federação Russa para iniciar consultas, indicando que seriam infrutíferas e não levariam a uma solução mutuamente satisfatória para a questão, esclarecendo ainda que tal decisão não prejudicaria os direitos e a participação da União Europeia em quaisquer futuros processos judiciais ao abrigo do Memorando de Entendimento sobre a questão em causa [14].
A questão, longe de ser resolvida facilmente e/ou em definitivo (tendo em conta, entre outros fatores, a crise no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC), ganha contornos mais complexos, tendo em conta o princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas — Common but Differentiated Responsibilities (CBDR) —, consagrado na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (CQNUMC) [15].
O CBDR [16] reconhece que a proteção do meio ambiente é uma responsabilidade compartilhada por todos os Estados, mas que deve ser assumida de forma diferenciada, em função das capacidades econômicas e dos históricos de emissão de cada país. Com base nesse princípio, os países desenvolvidos, que contribuíram de forma mais significativa para o aquecimento global, devem assumir compromissos climáticos mais ambiciosos e oferecer apoio financeiro e tecnológico às nações em desenvolvimento. A adoção de medidas unilaterais de cunho ambiental, quando desprovidas de sensibilidade a essa assimetria histórica e estrutural, desrespeita o espírito do CBDR e enfraquece os esforços multilaterais de mitigação e adaptação climática no plano global.
No próprio contexto do Gatt se tomou em conta, desde a década de 1960 do século passado, por força de importantes debates que culminaram no nascimento da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), a diferença entre os graus de desenvolvimento dos países, com tratamentos diferenciados e favorecidos (em geral, prazos maiores), fenômeno que se acentuou recentemente, na Rodada Doha (por exemplo, no Acordo sobre a Facilitação do Comércio, no qual as “categorias de implementação” apontam não só para dilação de prazos – categoria “B”, mas necessidades de assistência – categoria “C”). Da mesma forma, em relação ao meio ambiente, fundos como o Fundo Verde para o Clima (GCF – Green Climate Fund) e o Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF – Global Environment Facility) são fundamentais para assegurar uma transição justa, que não exclua os países com menor capacidade institucional.
‘Protecionismo verde’ em ‘tempos difíceis’
A humanidade sempre viveu “tempos difíceis”, de um ou outro modo. Quando Charles Dickens escreveu “Hard Times” [17], em 1854, como uma crítica sarcástica à política industrial britânica, promotora de desigualdades e poluição urbana, recheada de lideranças desonestas e de um utilitarismo mitigador de emoções, os tempos pareciam, de fato, bem difíceis, para alguém que, como Dickens, teve que viver na casa de parentes (após a prisão do pai), e trabalhar desde os doze anos, colando rótulos em potes de graxa. Mas esses tempos difíceis construíram um homem forte, vencedor.
Eram tempos difíceis, assim como outros, identificados e superados, na nossa história. Tempos difíceis como os recentes, de pandemia, de guerras e conflitos, de desigualdade, de destruição do meio ambiente (e, por consequência, da própria vida). Tempo de repensar.
Tempos em que o nacionalismo econômico, refletido na “lei do mais forte” e em medidas unilaterais que desafiam os princípios de comércio construídos pactuados no último século, apropriam-se até de bandeiras justas e modernas, como a do meio ambiente, para excluir, discriminar, segregar, sem tomar em conta as diferenças entre os países, aplicando medidas desproporcionais ou que ignorem as limitações estruturais dos países em desenvolvimento, contribuindo para aprofundar desigualdades históricas e comprometer os esforços globais de cooperação para uma transição verde justa e inclusiva.
O papel das aduanas, nesse cenário, pode ser um fator atenuante ou agravante da tensão. Daí a importância de o debate sobre “Aduanas verdes” não ignorar que a realidade atual do comércio internacional pode estar escondendo medidas unilaterais inconsistentes com o Gatt sob o manto de medidas em prol do meio ambiente.
O Brasil consolida seu protagonismo internacional na área ambiental e climática, ao sediar, em novembro próximo, a COP 30 (30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas), em plena Amazônia, em Belém. Ainda que estejamos em “tempos difíceis”, será uma excelente oportunidade para debater o tema, buscando soluções que ponderem os interesses e as realidades dos distintos países. Que os líderes dos estados participantes da Conferência sejam fortes, para que tenhamos tempos mais fáceis.
Como assevera a famosa frase atribuída a um provérbio oriental: “Tempos difíceis criam homens fortes; homens fortes criam tempos fáceis; tempos fáceis criam homens fracos; e homens fracos criam tempos difíceis”.
[1] TREVISAN, Rosaldo; OLIVEIRA, Dihego Antônio Santana de. Aduanas Verdes e ‘uma verdade inconveniente’. Revista Eletrônica Conjur, 14 mai.2024, disponível aqui.
[2] WCO. Green Customs Action Plan. Versão aberta ao público, disponível aqui.
[3] Os 17 ODS das Nações Unidas, que sucedem os 8 Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (2000/2015), começaram a ser desenhados na Conferência Rio+20, em 2012, tendo sido designado grupo de trabalho específico (com 30 membros) em 2013, com resultados apresentados em 2015, culminando na Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável, com os 17 ODS que podem ser graficamente visualizados aqui.
[4] WCO. Strategic Plan 2022-2025. Disponível aqui.
[5] WCO. Environmental Scan (July 2024 update). Disponível aqui.
[6] A Amazônia se espalha por oito países sul-americanos (Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela), que decidiram criar, em conjunto, criar, a “Organização do Tratado de Cooperação Amazônica” (OTCA), com o objetivo de promover o desenvolvimento harmônico dos territórios amazônicos, de maneira que as ações conjuntas gerem resultados equitativos e mutuamente benéficos para alcançar o desenvolvimento sustentável da região. Mias informações sobre a OTCA aqui.
[7] A Amazônia se espalha por oito países sul-americanos (Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela), que decidiram criar, em conjunto, criar, a “Organização do Tratado de Cooperação Amazônica” (OTCA), com o objetivo de promover o desenvolvimento harmônico dos territórios amazônicos, de maneira que as ações conjuntas gerem resultados equitativos e mutuamente benéficos para alcançar o desenvolvimento sustentável da região. Mais informações sobre a OTCA aqui.
[8] Por exemplo, na apreensão de 230 Kg de barbatanas de tubarão que seriam exportadas ilegalmente para a China, efetuada em 17/09/2024, cf. informação disponível aqui), e a apreensão de 15 Toneladas de pirarucu (Arapaima gigas), destinadas a Singapura (conforme veiculado aqui).
[9] Sobre esse “neoprotecionismo”, no Brasil, ver: PRAZERES, Tatiana. Comércio internacional e protecionismo: as barreiras técnicas na OMC. São Paulo: Aduaneiras, 2003. p. 66; e BARRAL, Welber. Protecionismo e neoprotecionismo no comércio internacional. In: BARRAL, Welber (Org.). O Brasil e o protecionismo. São Paulo: Aduaneiras, 2002. p. 13-38.
[10] Ver, v.g., DARNAL, Aude, et al. Great Power Competition and Green Protectionism The Impact of the US-China Trade War on Global South Countries: Exploring how U.S. and Chinese green protectionist policies impact economies and industries in the Global South. Disponível aqui.
[12] WTO. DS 639. EU – CBAM (Russia). Disponível aqui.
[13] Destaque-se que o CBAM contempla commodities como cimento, aço, ferro, alumínio, fertilizante, eletricidade e hidrogênio, cabendo ainda, sobre produtos agrícolas, aplicação do Regulamento sobre desflorestação UE 1.115/2023, que abrange bovinos, cacau, café, óleo de palma, soja, borracha e madeira.
[14] WTO. DS 639. Documents. Disponível aqui.
[15] No Brasil, promulgada pelo Decreto 2.652/1998.
[16] Sobre o contexto da CBDR, em diversos tratados internacionais, ver: HEY, Helen. The Principle of Common but Differentiated Responsibilities. Disponível aqui.
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