Opinião

Liberdade e Direito à saúde: o HC no contexto do cultivo de cannabis com fins medicinais

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  • é graduando em Direito pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) gestor para elaboração de Planos Estaduais e Municipais sobre Drogas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) integrante do Grupo de Pesquisa Grupo Interdisciplinar de Trabalho e Estudos Criminais-Penitenciários (Gitep) da Universidade Católica de Pelotas (UCPel) e do Grupo de Pesquisa em Direito Penal Contemporâneo e Teoria do Crime pela PUC-RS.

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21 de janeiro de 2025, 7h17

Enquanto diversos países caminham para a regulamentação do auto- cultivo de cannabis [1], o Brasil ainda debate a questão do autocultivo medicinal no âmbito do Poder Judiciário. A omissão legislativa trazida pelo artigo 2° da Lei de Drogas representa uma barreira para a efetivação do direito à saúde, pois, embora a União possa autorizar o plantio, cultura e colheitas dos vegetais referidos no caput, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, inexiste regulamentação sobre o tema.

O resultado dessa falta de regulamentação específica é demonstrado pela alta exponencial nos pedidos que chegam às cortes superiores. Somente no Superior Tribunal de Justiça, os pedidos de Habeas Corpus tiveram um aumento de 168.4% do ano de 2022 para 2023 [2]. O remédio heroico, para além de proteger a liberdade de locomoção do paciente, assegura a efetivação do direito à saúde, uma vez que o primeiro objeto de proteção – liberdade – garante, inicialmente, que o paciente não sofra eventual persecução criminal, situação que assegura a manutenção do tratamento de saúde.

Por isso, a questão deve ser analisada sob essa dupla perspectiva: liberdade de locomoção e direito à saúde. Fato é que o debate sobre a via adequada para a proteção à liberdade de locomoção de pacientes que cultivam cannabis com fins medicinais remonta há certo tempo, de forma que ainda que existisse dúvidas se o Habeas Corpus era a via adequada (REsp 1.972.092/SP), a questão sempre se orientou pela necessidade e prescrição médica que justificasse a concessão do Habeas Corpus.

Desta forma, a única saída para afastar um possível constrangimento ilegal por partes das autoridades coatoras responsáveis pela fiscalização ocorre única e exclusivamente pela via do Habeas Corpus. Evitar a ameaça de violência ou coação ilegal é fundamental para a continuidade e manutenção do tratamento de saúde daqueles que cultivam cannabis com fins medicinais. Isso porque, em casos de eventuais averiguações ou em caso de uma denúncia anônima mal-intencionada, existe a possibilidade de apreensão das plantas de cannabis, o que obstaculiza o acesso ao tratamento.

Sob a ótica do direito à saúde, assegurado pelos artigos 6º e 196 da Constituição, é imperativo reconhecer que o autocultivo de cannabis medicinal se insere no rol de práticas que garantem ao indivíduo o acesso a tratamentos eficazes e personalizados, especialmente diante da ineficácia ou inacessibilidade de medicamentos convencionais. O princípio da autodeterminação, amplamente amparado pelo direito à privacidade e à intimidade, assegura ao paciente o poder de decidir sobre seu próprio corpo e tratamento, sem interferências arbitrárias do Estado, sobretudo quando mais onerosas ou menos eficazes.

Spacca

Nesse contexto, a limitação ao autocultivo, justificada pela presunção de ilicitude, não apenas restringe a liberdade individual, como também viola o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição. O impedimento dessa prática, além de prejudicar o direito à saúde, impõe uma restrição indevida ao exercício da liberdade pessoal e da autonomia privada, fundamentais em uma sociedade que preza pela liberdade e pela não intervenção estatal em escolhas íntimas, desde que não lesivas ao interesse coletivo.

Como explicita Nicolás González-Cuéllar Serrano [3], o princípio da proporcionalidade é construído pelo pressuposto formal e justificação teleológica. O pressuposto formal corresponde ao princípio da legalidade. A justificação teleológica determina que toda intervenção Estatal no âmbito de direitos fundamentais para ser constitucionalmente admissível deve corresponder a uma finalidade legítima.

A finalidade legítima que aduz Serrano pode ser aqui compreendida como uma finalidade ou intenção que justifique a intervenção estatal, de modo que essa restrição à direitos fundamentais deve corresponder a um “fim maior”. Exemplo disso ocorre com a ideia de proteção à saúde pública nos crimes da Lei de Drogas, o que poderia, em tese, justificar a inferência estatal no âmbito de direitos fundamentais. No entanto, a conduta do autocultivo quando embasada por profissional de saúde, situa-se na promoção da saúde individual. Assim, sopesando o princípio da proporcionalidade, deve-se, por consequência não admitir a incidência do tipo penal incriminador.

Óbice para a efetivação do direito à saúde

Conforme aduz o ministro Sebastião Reis Junior, a norma incriminadora mira “o uso recreativo, a destinação para terceiros e o lucro”. Assim, estando-se diante da finalidade do uso medicinal, não há se falar em conduta típica, pois se estaria desconsiderando a motivação e a finalidade.

Marcelo Semer, discorrendo acerca de supostas agressões a direitos coletivos sob o risco de inviabilizar direitos individuais, infere que:

“É exatamente por isso que se torna inviável a utilização de cláusulas de proporcionalidade com o intuito de evitar o exercício de direitos individuais, com base em supostas agressões a direitos coletivos. Como o próprio Dworkin ressalta, no âmbito da proporcionalidade, só direitos individuais e concretos podem ser sopesados para a ponderação com outros direitos individuais, não servindo para isso cláusulas genéricas do direito da sociedade. Compreender em sentido diverso significa abrir mão dos direitos individuais, o que é inadmissível na democracia” [4]

Nesse sentido, o princípio da proporcionalidade oferece um importante ponto de reflexão para os casos de autocultivo de cannabis medicinal. É dizer que a intervenção do Direito Penal deve ser mitigada nesses casos, pois assim como já consolidado na jurisprudência, o autocultivo de cannabis com fins medicinais é uma conduta atípica. Mas não somente, a ideia de ultima ratio do Direito Penal impõe a moderação para a incidências das normas.

Nesse contexto, a falta de regulamentação do autocultivo de cannabis medicinal representa verdadeiro óbice para a efetivação do direito à saúde. A insegurança jurídica nesses tipos de demanda fica evidente diante do aumento do número de pedidos de Habeas Corpus nas cortes superiores. Além disso, a autodeterminação e o princípio da dignidade da pessoa humana reforçam a necessidade de respeito a escolha do paciente sobre seu próprio tratamento, sobretudo sem a intervenção estatal indevida, para não prejudicar interesses individuais em nome de supostos interesses coletivos.

 


1 Na Alemanha, a primeira reforma legislativa da cannabis para uso medicinal ocorreu em 2017. Desde então, é permitido cultivar, vender e importar cannabis para uso medicinal na Alemanha. a discussão sociopolítica também se concentrou cada vez mais na legalização da cannabis para fins recreativos. Este debate chegou agora a uma conclusão preliminar com o CanG. Desde abril de 2024, a Lei de Cannabis do Consumidor (Konsum-Cannabis Gesetz, KCanG) está em vigor na Alemanha. Além disso, a lei aprovada pela coligação tripartidária do chanceler Olaf Scholz legaliza o cultivo de até três plantas para consumo privado e a posse de até 25 gramas de cannabis.  Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/alemanha-aprova-projeto-que-legaliza-uso- recreativo-da-maconha/  e https://cms.law/en/int/expert-guides/cms-expert-guide-to-a- legal-roadmap-to-cannabis/germany

No mesmo sentido, exemplificam-se diversos outros países que regulamentaram o auto- cultivo de cannabis medicinal: Uruguai, Canadá, México e alguns estados nos EUA.

2 DUARTE, Melissa. Cannabis medicinal: pedidos de HCs no STJ sobem 168,4% em um ano. 2023.

Disponível em: https://www.jota.info/tributos-e-empresas/saude/cannabis-medicinal-pedidos-de-hcs- no-stj-sobem-1684-em-um-ano

3 SERRANO, Nicolás González-Cuéllar. El principio de proporcionalidade em el Derecho procesal español. Cuadernos de Derecho Público, núm. 5 (septiembre-diciembre), 1998.

4 SEMER, Marcelo. Princípios penais no Estado Democrático de Direito: anotado com alterações da Lei n° 13.964/19. 2.ed. – São Paulo: Tirant lo Blanch, 2022, p. 35.

Autores

  • Advogado criminalista. Formado em Direito pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pós-Graduando em Ciências Penais pela PUC/RS e Pós-Graduando em Advocacia Criminal. Gestor para Elaboração de Planos Estaduais e Municipais Sobre Drogas (UFSC). Curso sobre Políticas de Drogas e Sociedade: perspectivas e discussões atuais (UFSC).

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