Opinião

Ruídos hermenêuticos

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  • é desembargador do TJ-PA (presidente no biênio 2005/2007) ex-membro do Conselho Nacional de Justiça (biênio 2009/2011) ex-presidente do Colégio de Presidentes dos Tribunais de Justiça do Brasil (biênio 2013/2015) e professor emérito da Universidade da Amazônia (Unama).

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21 de janeiro de 2025, 21h16

Tempos estranhos, afirmou o ministro Marco Aurélio, pouco antes de deixar a cadeira que honradamente ocupou no Supremo Tribunal Federal, referindo-se ao panorama jurídico atual. Hoje creio que podemos repetir o dito pela falecida rainha da Inglaterra, Tempus Horribilis, para expressar as angústias hermenêuticas/epistemológicas enfrentadas pelos estudantes do Direito no Brasil.

Com efeito, para dar um primeiro exemplo, o Conselho Nacional de Justiça, órgão administrativo do Poder Judiciário brasileiro, encarregado do controle de sua atuação administrativa e financeira e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, por força do disposto no § 4º do artigo 103-B da Constituição da República, podendo apenas expedir atos regulamentares (§ 4º, I), passou também a exercer, com aplauso do STF, o poder de inovar o ordenamento jurídico nacional, ou seja, em conclusão, legislar através de suas resoluções.

O aresto que abriu caminho para esse poder de um órgão administrativo foi proferido na ADC 12, de relatoria do ministro Carlos Ayres Britto, julgando a validade da Resolução nº 07, editada pelo CNJ com o fito de coibir o nepotismo.

Quanto ao grande equívoco cometido pelo STF nessa decisão, creio ser dispensável qualquer comentário e remeto os interessados à leitura das lições publicadas em 2006, por Lenio Streck, Clémerson Clève e Ingo Sarlet [1]. E, a respeito da afirmativa de que foi a ouverture causadora de uma grande inquietação hermenêutica dos estudantes de Direito, por firmar o entendimento de que órgão administrativo possa, no exercício de competência regulamentar, editar textos normativos com força de lei, sugiro também seja lida a coluna Senso Incomum, editada nesta ConJur, pelo professor Lenio no último dia 12 de dezembro de 2024 [2].

Quanto à reiteração da prática da edição pelo CNJ de atos regulamentares inovadores do ordenamento jurídico pátrio e, portanto, indiscutivelmente inconstitucionais, o professor Lenio Streck, na coluna antes referida, tratando da Resolução nº 591/24, chega a ser enfático, em trecho negritado: “Qualquer resolução que signifique inovação será, pois, inconstitucional. E não se diga que o poder regulamentar (transformado em “poder de legislar”) advém da própria EC 45. Ou outra lei posterior”.

Atenção críticos de plantão: não indico a decisão da Suprema Corte na ADC  12 como precedente (no conceito sério) que abriu espaço ao incorreto entendimento de que se possa extrair diretamente da Constituição da República autorização para que órgãos administrativos inovem o ordenamento jurídico nacional, legislem, por defender o nepotismo (ou qualquer outro tipo de afilhadismo) e nem por algum vezo positivista, mas, simplesmente, pelos mesmos fundamentos expostos pelos doutrinadores acima referenciados.

Spacca

Mas não paro por aí no que penso causar inquietações e ruídos hermenêuticos. Impressiona mais ainda, por certo, o fato de o Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Poder Judiciário Nacional, com abonação de alguns doutrinadores, ter passado a não mais apenas interpretar/aplicar os textos normativos elaborados pelo Poder Constituinte originário e derivado ou construir soluções fundadas em princípios consistentes extraídos desses textos, mas a verdadeiramente criar o que neles não se contém, sob o fundamento de ter ocorrido vácuo constitucional, e até mesmo exercendo uma espécie de poder moderador (ou seria modelador, com perdão pelo trocadilho), este especialmente que não é compatível com o modelo de Estado de direito estruturado pela Constituição de 1988.

É certo que o Supremo tem o dever de julgar por último dizendo, in fine, o que a Constituição diz e quer dizer. Todavia, esse dever não é absoluto, de modo a autorizar que possa ditar o que nem as regras e nem os princípios nela contidos dizem ou têm o alcance de dizer.

Os fundamentos normativos que impõem o dever de julgar aos juízes e tribunais, vedando-lhes o non liquet (CR: artigo 5º, XXXV; CPC: artigo 140 e Lindb: artigo 4º), têm alcance e significação diferentes quando especialmente no âmbito dos tribunais superiores, nos quais há estreitamento dos efeitos devolutivos recursais e mesmo nos casos de competência originária.

O Supremo Tribunal Federal, no desempenho de sua competência de corte constitucional, não recebeu da Constituição em vigor mandato absoluto para dizer o que bem entender que ela diz, exercendo uma discricionariedade ilimitada. Ao contrário, isto sim, a sua integridade, impõe-lhe o dever de autocontrole, em especial, por exemplo, em questões de natureza estritamente política de competência do Poder Executivo ou interna corporis do Legislativo que possam, com a interferência do Judiciário, perturbar o princípio fundamental da independência e harmonia dos Poderes (CR: artigo 2º).

No Estado democrático de Direito desenhado pela Constituição, não há Poder sem limites.

Por outro lado, o pretexto de existir vácuo e até mesmo mutação, associado ao objetivo de criar precedentes, geradores de normas de cumprimento obrigatório para o futuro (mais uma das nossas jabuticabas), contribui para prejudicar a coerência, a integridade e a segurança jurídicas, dando a parecer para sociedade que a justiça é uma donna mobile.

Enfim, já temos ruídos e inquietações demais a prejudicar a paz social. Portanto, com todo respeito aos que pensem em contrário e elevada consideração aos membros da Corte Suprema, a hora exige menos teses e mais jurisprudência.

 


[1] https://www.migalhas.com.br/depeso/20381, acesso em 19.12.2024.

[2] https://www.conjur.com.br, acesso em 12,12.2024.

Autores

  • é desembargador aposentado, ex-presidente do TJ-PA, ex-membro do CNJ (biênio 2009/2011) e membro da Academia Brasileira de Direito.

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