Opinião

O risco oculto e negligenciado da rejeição das contas: o programa de compliance

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17 de janeiro de 2025, 11h16

Os tribunais de contas são órgãos que possuem competência constitucional para, mediante controle externo, exercer a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União, estados, DF e municípios (e de seus respectivos órgãos e entidades da administração direta e indireta), quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas.

Por força do princípio republicano, a magna carta impõe o dever de accountability a qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União, os estados, o DF e os municípios respondam, ou que, em nome destes, assuma obrigações de natureza pecuniária, cabendo-lhe prestar contas.

A Carta de Outubro atribui aos tribunais de contas a competência para julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo poder público federal, estadual, distrital ou municipal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público.

E tais contas submetidas ao escrutínio dos tribunais de contas não decorrem apenas das prestações de contas ordinárias decorrentes do dever de accountability podendo também ser decorrentes de inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial.

Em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, os jurisdicionados dos tribunais de contas – que, relembrando são (1) administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos e (2) aqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público – estarão sujeitos (via de regra [1]) a multas; imputação de débito para ressarcimento do dano causado ao erário e declaração de inidoneidade que inabilita para o exercício de cargo em comissão ou função de confiança, bem como para contratar com a administração pública.

Mas, apenas e tão somente a rejeição das contas por irregularidade – tenha ela ocorrido em sede de prestação de contas ou de, por exemplo, auditoria especial – por si só, já traz consequências jurídicas ao jurisdicionado do tribunal de contas.

Algumas vezes negligenciada por ser compreendida como bem menos grave que, por exemplo a multa e a imputação para devolução de valores aos cofres públicos, a rejeição das contas não é propriamente uma penalidade, mas possui sim o condão de restringir direitos como se uma penalidade fosse.

O mais evidente (e preocupante) efeito da rejeição das contas por parte dos tribunais de contas é o de tornar, à luz da Lei Complementar nº 64/1990, inelegíveis para qualquer cargo os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos oito anos seguintes, contados a partir da data da decisão [2].

Contudo, como exposto no título deste artigo, há um risco oculto e negligenciado na rejeição das contas, qual seja: o programa de compliance.

E o que é compliance?

Segundo Fernanda Santos Schramm [3] o termo compliance designa “o conjunto de ações destinadas à observância do ‘dever de cumprir, de estar em conformidade e fazer cumprir leis, diretrizes, regulamentos internos e externos, buscando mitigar o risco atrelado à reputação do risco legal/regulatório’”.

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Além do conceito de o compliance, cumpre entender a sua função protetiva.

Para tanto, nos socorremos da visão de Ricardo Villas Bôas Cueva [4] que afirma que “os programas de compliance são hoje reconhecidos como elementos fundamentais da organização empresarial, não apenas como instrumentos de governança corporativa, que se prestam à administração dos diversos fatores de risco, mas também como instrumento de proteção da empresa, dos administradores e dos empregados. (…) Com a adoção de um programa de conformidade, a responsabilidade dos membros da administração das empresas deixa de se limitar apenas ao dever de prevenir infrações, mas passa também a compreender o dever de evitar que seus subordinados cometam infrações”.

Assim, considerando ainda que os “programas de compliance não podem ser tratados apenas como instrumentos de gestão das empresas, mas têm o propósito de oferecer a todos aqueles que realizam negócios ou subscrevem contratos com as empresas uma garantia de transparência e de que as suas afirmações sejam verazes e aferíveis [5]” é preciso ter em mente que a decretação da irregularidade das contas (ou do objeto de uma auditoria especial) por parte de um tribunal pode sim ter o condão de impedir que uma pessoa física integre os quadros de uma empresa e até mesmo também vedar a realização de negócios com determinada pessoa jurídica, tudo a depender a política de integridade que venha a ser adotada.

A repercussão da rejeição das contas nos programas de compliance

Bom, se para Antonio Bar Cendón [6] a ação fiscalizadora sobre as contas do chefe do Poder Executivo é uma forma de accountability administrativo, que tem como finalidade verificar se prefeitos, governadores e presidente atuam em conformidade com as regras e procedimentos legais, programas de compliance replicam, de uma certa forma, esse accountability administrativo com o objetivo de impedir o ingresso em seus quadros (ou mesmo de expurgar indivíduos que já os integram) de pessoas físicas que, segundo determinado tribunal de contas, atuaram em desconformidade com determinadas regras e procedimentos legais.

Sigamos.

Na lição de Antonio Sergio Altieri de Moraes Pitombo [7], o Foreign Corrupt Pratices Act (FCPA) norte-americano de 1977 e a Convenção de Viena de 1988 levou à criação de departamentos de compliance que, mais do que apenas impor o cumprimento de regras, destinavam-se (e até hoje ainda se destinam) a observar com cuidado as condutas de funcionários e clientes, com o fim de minimizar o risco de ocorrências de ilícitos.

Em tal cenário, é óbvio que os melhores programas de compliance tendem a ver com maus olhos contratar alguém ou manter no quadro funcional alguém que teve suas contas rejeitadas por uma instituição como o tribunal de contas, pois se a medida é a da prevenção e a da precaução, alguém que teve suas contas rejeitadas traz consigo uma pecha de inadequação que certamente eleva o risco das condutas que os programas de compliance procuram evitar.

Na medida em que os programas de compliance têm como função principal “garantir o cumprimento das normas e processos internos, prevenindo e controlando os riscos envolvidos na administração da própria empresa e, como prevenção de riscos externos, o cumprimento da legislação vigente e das normas regulamentares oficiais de cada ramo de atividade empresarial [8]” cumpre levar em consideração que “quanto maior for a capacidade de identificar as incertezas do negócio, melhor será a gestão dos riscos [9]”.

É fundamental destacar que tal fato é intensificado, ainda mais, com a tendência geral de que as organizações privadas adotem procedimentos mais robustos de know your employee (conheça seu colaborador). Tal procedimento, consiste, de maneira objetiva, na realização programada e sistemática de pesquisas sobre os dados do candidato, como o seu histórico, reputação etc.

Sendo assim, na checagem de informações (background check) de um possível candidato que tenha tido atuação pregressa na administração pública e que, também, tenha cometido irregularidades que desencadearam a rejeição das contas pelo tribunal de contas, certamente tais riscos serão sopesados no momento da contratação.

Portanto, neste particular, desconsiderar a rejeição das contas por um tribunal de contas quando da contratação ou manutenção de um indivíduo nos quadros da empresa não é uma medida consentânea com a gestão de risco empreendida ou decorrente dos programas de compliance.

Ou seja, ao fim e ao cabo, é pouquíssimo provável que um programa de compliance bem estruturado ignore uma situação de rejeição das contas por parte de um tribunal de contas.

O erro de negligenciar uma rejeição de contas

Ao longo das lições aqui espraiadas, nos parece óbvio que os jurisdicionados dos tribunais contas que negligenciam eventuais decisões de rejeição de contas por entender que elas são menos graves que multas ou imputações para devolução de valores ao erário, podem sofrer graves consequências por tal negligência, vez que a possibilidade de se tornarem um risco a ser evitado ou extirpado por programas de compliance é quase que certo.

 


[1] Não há uniformidade nas leis orgânicas dos 33 tribunais de contas do Brasil acerca das penalidades cabíveis aos seus jurisdicionados, sendo a multa uma unanimidade em razão da sua expressa previsão no texto constitucional.

[2] Todavia, registre-se que, tal inelegibilidade, conforme preconiza a Lei Complementar nº 64/1990, não se aplica aos responsáveis que tenham tido suas contas julgadas irregulares sem imputação de débito e sancionados exclusivamente com o pagamento de multa.

[3] Schramm, Fernanda Santos, Compliance nas contratações públicas: Atualizado conforme a Nova Lei de Lici­tações (Lei Federal nº 14.133/2021) e a ISO 37301:2021, 2ª ed., Belo Horizonte: Fórum, 2021, pág. 156 Apud Coimbra, Marcelo de Aguiar; Manzi, Vanessa Alessi. Manual de compliance: preservando a boa governança e a integridade das organizações, São Paulo: Atlas, 2010, pág. 02.

[4] Cueva, Ricardo Villas Bôas, Funções e finalidades dos programas de compliance, in: Cueva, Ricardo Villas Bôas, Frazão, Ana (Coord.), Compliance: perspectivas e desafios dos programas de conformidade, Belo Horizonte: Fórum, 2018, págs. 58/59.

[5] Moro, Luís Carlos, Compliance trabalhista, in: Cueva, Ricardo Villas Bôas, Frazão, Ana (Coord.), Compliance: perspectivas e desafios dos programas de conformidade, Belo Horizonte: Fórum, 2018, pág. 433.

[6] Cendón, A. B. (2000). Accountability and public administration: concepts, dimensions, developments. Openness and Transparency in Governance: Challenges and Opportunities, 22– 61.

[7] Pitombo, Antonio Sergio Altieri, Compliance: a perspectiva externa, CONJUR, 19.02.2021. Disponível na internet: https://www.conjur.com.br/2021-fev-19/antonio-pitombo-compliance-perspectiva-externa/. Acesso em 02.12.2024.

[8] Benedetti, Carla Rahal, Criminal Compliance, São Paulo: Quartier latin, 2014, pág. 83 Apud Marchioni, Guilherme Lobo, Gestão de riscos criminais é instrumento de proteção ao valor das empresas, Migalhas, 24.04.2019. Disponível na internet: https://www.migalhas.com.br/depeso/300886/gestao-de-riscos-criminais-e-instrumento-de-protecao-ao-valor-das-empresas. Acesso em 02.12.2024.

[9] Castro, Rodrigo Pironti; Gonçalves, Francine Silva, Compliance e gestão de riscos nas empresas estatais. Belo Horizonte: Fórum, 2018. pág. 48, Apud Marchioni, Guilherme Lobo, Gestão de riscos criminais é instrumento de proteção ao valor das empresas, Migalhas, 24.04.2019. Disponível na internet: https://www.migalhas.com.br/depeso/300886/gestao-de-riscos-criminais-e-instrumento-de-protecao-ao-valor-das-empresas. Acesso em 02.12.2024.

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