A fixação de valores à dispensa de licitação pelos entes subnacionais
14 de janeiro de 2025, 21h17
A Constituição de 1988, ao consagrar o dever de licitar à administração pública, impôs a observância de procedimentos licitatórios destinados a assegurar a isonomia entre os interessados, a competitividade e a seleção da proposta mais vantajosa. Contudo, a própria ordem constitucional prevê situações excepcionais que autorizam a denominada contratação direta, isto é, a realização de despesas e aquisições sem prévio certame licitatório [1].
Por sua vez, a Lei nº 14.133/2021, que estabelece o regime jurídico geral de licitações e contratos administrativos (LLCA), dedica dispositivos específicos para elencar as hipóteses de contratação direta (gênero), dividindo-as em inexigibilidade e dispensa de licitação [2] (além das situações de licitação dispensada nos casos de alienações). Essa categorização não é meramente formal, pois cada espécie tem pressupostos próprios, ensejando consequências distintas à administração e aos potenciais fornecedores.
A inexigibilidade, como regra, ocorre nas situações em que não há como promover competição efetiva, seja pela natureza do objeto ou pela inviabilidade de disputa (fática ou jurídica). Já a dispensa surge quando, embora seja possível licitar, a lei expressamente autoriza a administração a contratar sem licitação, dada a presença de condições excepcionais que tornam o certame contraproducente ou desnecessário, como é o clássico exemplo da contratação emergencial nos casos de calamidade ou urgência[3], bem como nas aquisições e contratações de “pequeno valor”.
Não obstante sua previsão normativa, a dispensa de licitação é frequentemente objeto de críticas e estigmas. Essa espécie é comumente associada a uma suposta falta de transparência, sendo vinculada a discussões sobre condutas corruptivas [4]. Essa percepção negativa induz a administração pública a optar, de forma recorrente, pelo procedimento licitatório, ainda que a dispensa pudesse se revelar uma alternativa mais célere, eficiente e ajustada às necessidades específicas da situação.
Dispensa e inexigibilidade de licitação
Ainda assim, é preciso dizer que a dispensa e a inexigibilidade resultam em grande volume das contratações realizadas pela administração pública brasileira, como apontado pelos consagrados professores Ana Luiza Jacoby Fernandes, Jorge Ulisses Jacoby Fernandes e Murilo Jacoby Fernandes, em relevante obra sobre “contratação direta na nova lei de licitações e contratos”[5].
Entre os diversos incisos que tratam da dispensa de licitação, ganha relevo a previsão de afastamento do processo licitatório em razão de valor [6], que deve ser mais bem discutida em virtude da sua maior utilização. A Lei nº 14.133/2021 traz, em seu rol taxativo [7], parâmetros monetários que buscam viabilizar aquisições imediatas de bens e serviços com custos reduzidos, evitando onerar a máquina administrativa com procedimentos licitatórios complexos em contratações de menor expressão financeira.

Felipe Dalenogare Alves
Para impedir que esses valores percam sua função com o passar dos anos, o legislador estabeleceu mecanismos de atualização periódica, possibilitando a manutenção do poder de compra da administração e a preservação do sentido prático da dispensa de licitação para compras de baixo valor. Esses limites devem ser atualizados anualmente pelo Poder Executivo, com base no Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo Especial (IPCA-E), conforme estabelece o artigo 182 da LLC, estando atualmente nos seguintes patamares: R$ 125.451,15 para obras e serviços de engenharia ou de serviços de manutenção de veículos automotores e R$ 62.725,59 no caso de outros serviços e compras [8].
Surgem, então, as seguintes perguntas que este artigo pretende respoder: esses valores, concebidos em norma geral [9], podem ser flexibilizados — para menos — pelos estados, Distrito Federal e municípios, de modo a respeitar as realidades orçamentárias diversas? Essa redução demandaria lei (em sentido estrito) ou poderia ocorrer por ato infralegal? Por fim, caso fixado um limite menor pelos entes subnacionais, é obrigatória a atualização desses valores nos âmbitos locais, considerando o comando previsto no artigo 182 da Lei nº 14.133/2021, que atribui ao Poder Executivo federal a competência para editar regulamento nacional [10]?
Valores-limite à dispensa de licitação
Para chegarmos a uma posição equilibrada nesse debate sobre a fixação de valores-limite à dispensa de licitação, faz-se necessário avaliar, de maneira integrada, as diversas questões que cercam a contratação direta, sobretudo no que tange aos custos processuais e aos riscos envolvidos. Essa análise deve considerar a perspectiva de cada Ente federativo, uma vez que as realidades orçamentárias e estruturais variam significativamente entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios.
A análise dos valores de dispensa de licitação não pode desconsiderar essas diferenças entre os entes federativos, tampouco o princípio da economicidade, que reclama a compatibilização entre o custo do procedimento licitatório e o benefício advindo da competição [11]. Nesse sentido, a Lei nº 14.133/2021 e a doutrina ressaltam que os incisos I e II do artigo 75 visam justamente a evitar um paradoxo: o dispêndio de recursos com licitação em valores tão baixos, o que acarretaria prejuízo ou, ao menos, ineficiência à administração [12]–[13].
Sob esse prisma, contratações de baixo valor podem perfeitamente ser conduzidas por dispensa de licitação, pois a pequena relevância econômica da contratação não justifica gastos com uma licitação comum [14]. Ademais, o custo administrativo de um processo licitatório pode ser consideravelmente elevado quando comparado ao valor a ser contratado, oscilando de acordo com o custo da estrutura estatal de cada ente federativo — remuneração dos servidores, presença ou não de procuradoria pública, plataformas próprias para realização de certames licitatórios, etc.
Enquanto a União conta com maior estrutura burocrática, número mais elevado de servidores, com remuneração geralmente maior, e plataformas específicas à realização de certames, um pequeno município pode operar com custos administrativos e remuneratórios significativamente inferiores, além de procedimentos mais enxutos. Assim, o custo operacional de um processo licitatório tende a variar conforme a capacidade instalada, a quantidade de pessoal envolvido e os meios tecnológicos disponíveis, levando, por conseguinte, a cenários bastante distintos quando se compara a esfera federal com realidades subnacionais.
Gestão de risco nas contratações públicas
Outro ponto relevante é a gestão de riscos nas contratações públicas [15]. Ao passo que a União conta com um sistema de controle interno e externo mais robusto, com maior número de recursos humanos e processos consolidados de verificação, um município ou mesmo determinados estados podem enfrentar limitações orçamentárias, menor disponibilidade de pessoal técnico especializado e controles internos menos estruturados.
Essa disparidade influencia diretamente os parâmetros de risco a que cada ente subnacional está exposto. Em organizações maiores, ainda que haja maior complexidade nos procedimentos, a existência de setores específicos de compliance, auditoria interna e procuradorias estruturadas pode ampliar a capacidade de detecção e mitigação de eventuais falhas ou irregularidades. Já, em entes de menor porte, a carência de pessoal e de ferramentas tecnológicas, bem como a concentração de atribuições em um número reduzido de agentes, pode dificultar tanto a fiscalização quanto a implementação de boas práticas de governança. Em razão desse contexto, a definição de estratégias de controle e de limites de dispensa de licitação precisa levar em conta a realidade de cada ente, de modo a calibrar procedimentos de forma proporcional ao seu grau de vulnerabilidade [16].
A Lei nº 14.133/2021, ao estabelecer normas gerais e específicas, é considerada lei nacional e lei federal simultaneamente [17], o que facilita sua aplicação à União, mas não aos demais entes subnacionais, que precisam verificar as situações às quais caiba margem para adequações. Assim, entendemos que, embora o valor máximo para que se dispense a licitação esteja claramente previsto nessa lei, e não possa ser alterado para mais, não há impedimento jurídico para que os entes subnacionais, dentro de sua margem de apreciação legislativa, fixem limites de dispensa em valores inferiores aos previstos naquela.
Valor menor para conceito de “grande vulto”
A discussão travada no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 1.410.340/SP, de relatoria do ministro Dias Toffoli, no Supremo Tribunal Federal (STF), acrescenta mais um elemento relevante ao debate sobre a possibilidade de os entes subnacionais estabelecerem parâmetros distintos — menores — para exigências legais relacionadas às contratações públicas.
No caso analisado pelo STF, o município de São José do Rio Preto/SP instituiu, por lei de iniciativa parlamentar, um valor menor para o conceito de “grande vulto” (diferente daquele estabelecido na Lei nº 14.133/2021), o que incidiu diretamente na obrigatoriedade da implementação do programa de integridade para obras, serviços e fornecimento enquadrados nesse conceito, conforme determinado pelo art. 25, § 4º, dessa Lei. Restou ao Tribunal verificar se a iniciativa municipal violou ou não a competência legislativa privativa da União para estabelecer normas gerais de licitação e contratos administrativos [18].
O entendimento foi pela validade da lei local, destacando que a União fixa diretrizes gerais — inclusive referências sobre o valor de “grande vulto” — sem, contudo, impedir que cada ente federado ajuste esses limiares às suas realidades financeiro-orçamentárias, desde que não extrapolem os valores-limites fixados na norma geral.
Isso permite a adoção de critérios mais restritivos — seja exigindo um nível adicional de transparência e integridade, seja estabelecendo valores de dispensa de licitação inferiores aos do padrão federal. Nesse cenário, não há violação ao pacto federativo nem usurpação da competência legislativa da União, mas mera adequação às particularidades locais, reforçando o objetivo de melhor atender ao interesse público e à economicidade nas contratações.
Lei local ou ato infralegal
Compreendemos que essa redução nos valores poderá ocorrer por meio de lei local (estadual ou distrital com alcance a toda administração direta e indireta dos estados e do DF; municipal com aplicação a toda administração municipal) ou ato infralegal (com escantilhão limitado ao âmbito do respectivo Poder ou órgão independente — a exemplo do Ministério Público e dos Tribunais de Contas).
No que tange à lei local, conforme decidido pelo STF no recurso citado acima, a iniciativa não é privativa do chefe do Executivo, podendo nascer do parlamento. Já, tratando-se de ato infralegal, este decorre dos poderes hierárquico e regulamentar do respectivo chefe da administração. Assim, se a Lei nº 14.133/2021 estabelece um teto à dispensa de licitação, no âmbito da sua administração, esse chefe poderá estabelecer um limite menor, via decreto ou outro ato regulamentar.
Finalmente, no que tange à atualização anual dos valores à dispensa de licitação prevista no artigo 182 da Lei nº 14.133/2021, entendemos que ela visa manter o poder de compra da administração e adequar os limites da contratação direta à realidade do mercado, evitando que se tornem defasados ao longo do tempo.
Essa providência, no entanto, não pode ficar restrita ao âmbito federal. estados e municípios, se adotarem valores-limites diferentes àqueles da LLCA, também devem proceder à atualização, utilizando-se o IPCA-E, para preservar a competitividade nas compras públicas. Desatualizar os valores de dispensa provoca a abertura de licitações para objetos de valor menor, que acarretam custos administrativos desproporcionais e solapam o benefício esperado da competição. Assim é que manter a indexação anual evita o esvaziamento prático da dispensa e coíbe o desequilíbrio entre a realidade do mercado e as contratações rotineiras.
Em sede conclusiva, afirmamos que, a par de a União deter competência para estabelecer normas gerais em matéria de licitações e contratos, os demais entes federativos possuem legitimidade para, dentro de sua margem de apreciação legislativa, adequar disposições federais a sua realidade orçamentária, quando se tratar de fixação de valores para dispensa de licitação. Isso poderá ocorrer por meio de lei local ou ato infralegal, com alcance restrito ao ente ou à respectiva administração, devendo, se assim o ente proceder, promover a atualização anual prevista no artigo 182 da Lei nº 14.133/2021.
[1] Vide art. 37, XXI, da CRFB.
[2] Vide, respectivamente, arts. 74 e 75 da Lei nº 14.133/2021.
[3] Em virtude da rigidez do procedimento licitatório, certas situações demandam ajustes processuais compatíveis com a realidade e necessidade da Administração Pública. É possível citar, por exemplo, a Lei nº 14.981/2024, que dispõe sobre medidas excepcionais para contratações públicas destinadas ao enfrentamento de impactos decorrentes de estado de calamidade pública.
[4] VITAL, L. P. S.; ZUCATTO, L. C. Novidades Da Lei 14.133/2021: Discussões Acerca Da Dispensa De Licitação Tradicional e Eletrônica. Revista da AGU. Disponível em: https://revistaagu.agu.gov.br/index.php/AGU/article/view/3254/2246. Acesso em 08 jan. 2025.
[5]“[…] no Brasil, a metade ou, em alguns anos, até mais da metade das contratações se faz sem licitação.” FERNANDES, A. L. J.; FERNANDES, U. J.; FERNANDES M. J. Contratação direta sem licitação na nova Lei de Licitações, Lei nº 14.133/2021. Belo Horizonte: Fórum, 2023.
[6] “Art. 75. É dispensável a licitação: I – para contratação que envolva valores inferiores a R$ 100.000,00 (cem mil reais), no caso de obras e serviços de engenharia ou de serviços de manutenção de veículos automotores; II – para contratação que envolva valores inferiores a R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), no caso de outros serviços e compras;” Lei nº 14.133/2021.
[7] Rol taxativo é uma expressão que se refere a uma lista que não abrange nada além do que está definido ou regulamentado. Ou seja, não pode ser realizado fora daquelas hipóteses legais.
[8] Valores atualizados pelo Decreto nº 12.343, de 30 de dezembro de 2024, com vigência a partir de 1º de janeiro de 2025.
Atualiza os valores estabelecidos na Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021
[9] Vide art. 22, XXVII, da CRFB.
[10] Compreendemos ser regulamento nacional, decorrente do princípio da degradação do grau hierárquico (deslegalização). Significa dizer que o legislador geral (da União), para não editar uma lei a cada ano, delegou essa atribuição ao Poder Executivo Federal. Esse princípio, trabalhado pelo professor português José Joaquim Gomes Canotilho, refere-se à transferência de competências normativas de uma autoridade legislativa para outra administrativa. Esse fenômeno ocorre quando o legislador delega a responsabilidade de criar normas específicas a outros órgãos ou entidades, que não são o Poder Legislativo, para complementar ou detalhar a legislação existente. Canotilho argumenta que essa delegação é necessária para lidar com questões de alta complexidade técnica, às quais especialistas e técnicos podem fornecer regulamentações mais apropriadas, bem como contribuir à celeridade do processo, eis que abrevia todo o rito do processo legislativo (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2000, p. 837).
[11] Não podemos perder de vista que o processo de contratação pública deve ser balizado pelos princípios constitucionais e infraconstitucionais, como os elencados no art. 5º da LLCA.
[12] FERNANDES, A. L. J.; FERNANDES, U. J.; FERNANDES M. J. Contratação direta sem licitação na nova Lei de Licitações, Lei nº 14.133/2021. Belo Horizonte: Fórum, 2023, p. 176.
[13] JUSTEN FILHO, M. Comentários à Lei de licitações e contratações administrativas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 1010.
[14] Ibidem.
[15] A gestão de riscos é essencial para garantir que a Administração Pública atinja seus objetivos, diante de incertezas e desafios. Esse processo envolve a aplicação de políticas e práticas que integram a identificação, análise, avaliação, tratamento, monitoramento e comunicação de riscos. Para mais, vide: ABNT. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. ABNT NBR ISSO 31000:2018. Gestão de riscos: diretrizes. 2 ed. Rio de Janeiro: ABNT, 2018.
[16] “Art. 14. O trabalho administrativo será racionalizado mediante simplificação de processos e supressão de controles que se evidenciarem como puramente formais ou cujo custo seja evidentemente superior ao risco.” BRASIL. Decreto-Lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967. Dispõe sobre a organização da Administração Federal, estabelece diretrizes para a Reforma Administrativa e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 27 fev. 1967. Disponível em: http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/DEL%20200-1967?OpenDocument. Acesso em: 08 jan. 2025.
[17] “a) lei nacional – veicula normas gerais, é produto legislativo do Estado federal, transcende à esfera de qualquer pessoa política; b) lei federal – vincula todo aparelho administrativo da União e todas as pessoas que a ela estejam subordinadas ou relacionadas”. CARMONA, Paulo Afonso Cavichioli. Das normas gerais: alcance e extensão da competência legislativa concorrente. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 61
[18] Vide art. 22, XXVII, da CRFB.
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