Direito Civil Atual

Direito das Gentes, primeiras lições

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13 de janeiro de 2025, 11h30

A notável extensão da disciplina do primeiro ano impunha ao lente fazer o seu próprio caminho, tal qual o bom andarilho. Daí a vinda à luz do público em 1851 dos Elementos do direito das gentes, segundo as doutrinas dos escritores modernos [1], compostos por Pedro Autran da Matta Albuquerque.

Como um livro inicial, precursor, mas não somente para iniciantes, fixou balizas que permitiram – e ainda permitem – o seu desenvolvimento futuro. Tanto é assim que, em agosto de 1889, foram publicadas as Lições Elementares de Direito das Gentes sobre o compêndio do Sr. Conselheiro Autran [2].  O seu autor, João Silveira de Souza, sucessor de Autran na regência da primeira cadeira no período de 1861-1890, explicitou, no seu prefácio, haver tomado por texto os Elementos do direito das gentes, de 1851, “cujas doutrinas aqui procuramos expor, desenvolver, e corrigir em alguns pontos, já segundo nossas próprias inspirações, já fundados na autoridade de outros autores de nota”.

É preciso assinalar que o livro toma como referência um direito internacional em sua versão clássica, cujos sujeitos são os Estados (inter nationes), tal como característico da época [3].

Parte Autran [4] do conceito de nação, afirmando que o gênero humano está repartido em grupos, reunidos em sua maior parte em associação civil para o fim de sua segurança interna e externa, os quais constituem as diferentes nações da terra. Por sua vez, as nações que têm a propriedade do solo onde habitam se denominam Estados, enquanto que as demais se chamam hordas.

Em seguida, sobrevém uma definição da disciplina a ser investigada, de sorte que o direito das gentes (ou também direito internacional, ou direito público externo) seria “o complexo das regras que a razão deduz como conformes à justiça, ou que se fundam em convenções expressas ou tácitas, e que servem de determinar o procedimento das nações entre si” [5]. É adotada uma bipartição consistente em direito das gentes natural e positivo. Este, por seu turno, estaria dividido em direito pactício (tratados públicos) e consuetudinário (costumes com força obrigatória).

No que concerne ao direito das gentes natural, destacou-se [6] que a sua importância decorria da circunstância de: a) ensinar-nos as regras de justiça que as nações devem adotar entre si, não podendo ser modificadas por convenções; b) servir para preencher as lacunas dos tratados e do costume, promovendo as mudanças que a boa razão requer. Já quanto ao direito das gentes positivo, a sua utilidade residiria em que as nações, para estatuírem seus direitos recíprocos, nem sempre se limitam ao emanado da razão, e, à falta de uma regra geral, recorrem a tratados e aos usos ou costumes.

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Para o autor [7] são idênticos os fundamentos dos direitos das nações e dos indivíduos e seriam estabelecidos em verdades morais, a saber: a) o direito de conservar, aperfeiçoar e promover a sua felicidade; b) a proibição de locupletar-se ou de se avantajar com a lesão do direito do outro; c) a obrigação de reparar por aquele que lesa o direito alheio; d) a vinculação das partes contratantes pelas convenções livremente feitas entre pessoas capazes de contratar, envolvendo objeto lícito [8].

A despeito dessa identidade, disse o autor [9] que havia uma diferença a ser ressaltada entre os direitos dos indivíduos e o das nações: é a de que, na relação dentre estas, não há que se falar dos poderes legislativo, executivo e judicial, razão pela qual, para que “no ânimo dos governos se infunda o sentimento da justiça, e a firme resolução de a guardar fielmente para com os outros” [10], impõe-se uma disposição universal que venha a suprir a falta de um juiz comum.

Categoriza o autor [11] os direitos de todo Estado nas suas relações com os demais, diferenciando-os em primitivos ou absolutos e condicionais ou hipotéticos. Os primeiros, absolutos, pertencem a todos os Estados pelo somente fato de serem pessoas morais, independendo de uma circunstância particular, enquanto os condicionais, diversamente, supõem uma causa de origem especial.

Constituem, os primitivos ou absolutos, o direito de: a) conservação, implicando o direito de empregar todos os meios justos para repelir ofensas injustas; b) independência, habilitando o exercício de todos os seus direitos soberanos, e que envolve a escolha do seu chefe supremo e dos seus poderes; c) igualdade perante os demais Estados soberanos, a despeito de diferenças de território e população.

De destacar-se, no conteúdo do direito de independência, é que as leis aprovadas pelo Poder Legislativo de um Estado alcançam, em regra, todos aqueles que se encontram em seu território, especialmente no que concerne à capacidade civil e aos contratos e os atos jurídicos que se formarem em seu território [12]. Tal cenário não se mostra tão diferenciado nos dias que correm [13].

Igualmente, do direito de independência resulta a competência de um Estado para conhecer dos crimes cometidos no seu território, ressalvadas situações onde se reconheça extraterritorialidade [14]. Sobre o instituto de extradição, aduziu ser convicção geral que depende de uma convenção especial ou da apreciação da conveniência do Estado a quem é requerida, sendo comum nos tratados a estipulação de algumas cláusulas, dentre as de “não se conceder a extradição dos próprios nacionais, nem de pessoas incursas em crimes políticos ou puramente locais, ou em delitos leves, mas dos prófugos unicamente que cometeram crimes graves ou de direito comum, isto é, que as leis de todos os países consideram como puníveis” [15]. O direito pátrio vigente também condiciona a competência de extradição conferida ao presidente da República, constitucional e legislativamente [16].

Quanto aos direitos ditos condicionais, enumera-os o autor [17] como sendo, no estado de paz, os de propriedade, o direito dos tratados ou convenções e os das negociações e, em caso de ofensa ou lesão, o de pedir e tomar satisfação, inclusive por meio de armas.

Desbravador

O livro nos apresenta uma elucidativa abordagem sobre tratados [18], expondo, dentre outros aspectos, sobre o direito de contratar, as suas condições essenciais de sua validade (consentimento recíproco e livre e a possibilidade de sua execução [19]), a impossibilidade de as partes invocarem o instituto da lesão, sua ratificação, produção de efeitos, objeto, tratados de aliança, mediação, protesto, confirmação, renovação e as causas de sua extinção.

À feição de esclarecimento prévio, avivou caber à constituição ou lei fundamental de cada um dos Estados determinar o poder de contratar, evidenciando o vínculo entre o Direito Constitucional interno e o Direito Internacional Público [20]. Procedeu-se ainda à tentativa de sistematização de regras de interpretação para os tratados [21].

Discorreu-se, com minudência, sobre o direito de legação [22], consistente no envio de ministros públicos (representantes diplomáticos) a outros Estados, com os quais se deseja manter relações de paz e de amizade, bem como de os receber, pertencendo à constituição a forma do seu exercício. Destaque recaiu para os privilégios de tais agentes, especialmente a inviolabilidade e a extraterritorialidade, bem como sobre os direitos que provêm desta (imunidade de impostos, imunidade da casa de legação, isenção das leis, da polícia e da jurisdição civil e criminal e o culto doméstico [23]).

A terceira e final parte do livro é dedicada aos direitos dos Estados quanto ao seu relacionamento hostil. Enfoca, dentre outros pontos, o direito de guerra, as convenções militares entre as potências beligerantes, a neutralidade e o direito de paz.

Pode-se, então, perceber a enorme contribuição de Autran para o ensino do Direito Internacional, tal qual um desbravador dum oceano e seus mistérios.

 


[1] ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Elementos do direito das gentes. Recife: Tipografia União, 1851.

[2] SOUZA, João Silveira de. Lições elementares de direito das gentes. Recife: Tipografia Econômica, 1889.

[3] Aponta Starck que, posteriormente à Segunda Guerra Mundial, houve uma sensível mudança no perfil do direito internacional público, sendo de notar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, de 10 de dezembro de 1948, representou a faísca inicial que fez desencadear uma nova posição do indivíduo no direito internacional público (STARCK, Christian. Instituciones y derechos. Santiago de Chile: Ediciones Olejnik, 2022, p. 39).

[4] Elementos do direito das gentes. Recife: Tipografia União, 1851, p. 3.

[5] ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Elementos do direito das gentes. Recife: Tipografia União, 1851, p. 3.

[6] ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Elementos do direito das gentes. Recife: Tipografia União, 1851, p. 4.

[7] ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Elementos do direito das gentes. Recife: Tipografia União, 1851, p. 4.

[8] Gustavo Sousa lança o seguinte comentário sobre as ditas verdades morais: “As “verdades morais” de Albuquerque seriam os preceitos de como as diferentes gentes das nações deveriam se comportar em suas negociações. O princípio benthamiano de “felicidade” levanta em consideração que entre os governos deveria existir o princípio de não intervir nos assuntos dos outros. Em linhas gerais, a primeira regra era um desenrolar para os outros pontos, no qual o enriquecimento pela desgraça do outro e a ruína econômica deveriam ser combatidos na relação entre as gentes e as nações” (SOUZA, Gustavo Pinto de. Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, vol. 9, nº 3, p. 455, setembro-dezembro de 2017).

[9] ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Elementos do direito das gentes. Recife: Tipografia União, 1851, p. 4-5.

[10] ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Elementos do direito das gentes. Recife: Tipografia União, 1851, p. 5.

[11] ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Elementos do direito das gentes. Recife: Tipografia União, 1851, p. 5-51.

[12] Eis a observação do autor: “Em geral, e por consentimento tácito das nações, as leis que regulam a capacidade civil e a capacidade pessoal dos cidadãos, lhes são aplicáveis, ainda que eles residam em país estrangeiro. A lei do lugar, onde os contratos foram feitos, determina também tudo o que diz respeito à forma, intepretação, e obrigações dos mesmos contratos. Enfim, os atos feitos conforme as leis de um país, são válidos noutros países regidos por leis diferentes: locus regit actum (ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Elementos do direito das gentes. Recife: Tipografia União, 1851, p. 7).

[13] A Lei de Introdução ao Direito Brasileiro – LINDB dispõe: “Art. 7o A lei do país em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família. (…) Art. 9o Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem. § 1o Destinando-se a obrigação a ser executada no Brasil e dependendo de forma essencial, será esta observada, admitidas as peculiaridades da lei estrangeira quanto aos requisitos extrínsecos do ato” (disponível em: www.planalto.gov.br).

[14] As situações de extraterritorialidade refletiam as condições da sociedade de então, despertando curiosidade, por uma pitada épica, a pirataria, diante da qual qualquer Estado poderia decretar penas, autorizando os seus navios de guerra a capturá-los para julgamento em seu território (ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Elementos do direito das gentes. Recife: Tipografia União, 1851, p. 9).

[15] ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Elementos do direito das gentes. Recife: Tipografia União, 1851, p. 10.

[16] A Constituição de 1988 (CRFB) veda a extradição de brasileiro, nato ou naturalizado, ressalvado a deste, nos casos de crimes praticados antes da naturalização e em caso de tráfico de entorpecentes (art. 5ª, LI), e, igualmente, proíbe a medida em se tratando de crime político ou de opinião (art. 5ª, LII). Por sua vez, a Lei nº 13.445/2017, no seu art. 82, dispõe que não se fará a entrega do requerido quando: a) o fato que motivar o pedido não for considerado crime no Brasil ou no Estado requerente (inciso II); b) a lei brasileira cominar pena restritiva de liberdade inferior a dois anos (inciso IV).

[17] ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Elementos do direito das gentes. Recife: Tipografia União, 1851, p. 16.

[18] ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Elementos do direito das gentes. Recife: Tipografia União, 1851, p. 22-36.

[19] Alude Autran à santidade dos tratados, consistente “no dever que eles impõem às partes contratantes de os cumprir à risca, enquanto não houver razões legítimas mui poderosas, que as dispensem dessa obrigação”, de modo que as “simples mudanças na constituição do Estado, ou na pessoa do governo, não bastam para as desonerar do cumprimento dos tratados” (ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Elementos do direito das gentes. Recife: Tipografia União, 1851, p. 25).

[20] O aspecto é de intensa atualidade, mencionando Starck que os tratados internacionais devem permanecer dentro do marco da constituição (STARCK, Christian. Instituciones y derechos. Santiago de Chile: Ediciones Olejnik, 2022, p. 42), sem contar que da temática se ocupa a doutrina nacional (CLEMENTINO, Marco Bruno Miranda. Harmonização tributária, integração regional e constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2009, p. 98-118-134). Prova disso a Constituição da República Italiana (art. 10), a Lei Fundamental de Boon de 1949 (art. 25), a Constituição da França de 1958 (artigos 52º a 55º e artigos 88º – 1 a 88º – 5), a Constituição da República Portuguesa (artigo 8º) e a CRFB (art. 5º, §§2º e 3º).

[21]  São enunciadas as seguintes: a) quando há ambiguidade ou equívoco, deve-se considerar as frases e palavras na sua significação comum ou ordinária, em vez da que lhe possam conferir os sábios ou gramáticos; b) à falta de sentido claro e determinado, deve-se indagar qual poderia ser razoavelmente a intenção daquele que fez uma concessão ou contraiu uma obrigação; c) a obrigação para um fim determinado implica obrigação aos meios conducentes ao mesmo fim; d) os tratados nos quais não há prestações recíprocas, os seus termos devem ser explicados favoravelmente a quem concedeu uma vantagem ao outro contratante; e) se há reciprocidade e igualdade de prestação, a interpretação há que ser contrária àquele que expõe as suas palavras dum modo capaz de produzir mudança ou alteração no estado atual das coisas; f) à derradeira, há que ser evitada qualquer interpretação sutil, porque se desprende do que é provável (ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Elementos do direito das gentes. Recife: Tipografia União, 1851, p. 33-34). Para João de Souza, “por interpretação sutil se entende aquela em que se recorre a razões pouco sólidas, sem relação imediata com o assunto”, acrescentando mais duas regras, a saber: a) as partes ou pontos obscuros de um tratado devem ser elucidadas pelas mais claras que com elas se relacionem; b) deve-se atender às circunstâncias em que o tratado foi feito e aos atos referentes à sua celebração ou execução, praticados pelas partes contratantes imediatamente antes ou depois da sua celebração (SOUZA, João Silveira de. Lições elementares de direito das gentes. Recife: Tipografia Econômica, 1889, p. 69).

[22] ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Elementos do direito das gentes. Recife: Tipografia União, 1851, p. 36-51).

[23] Tratava-se do direito de exercer em sua casa o culto de sua religião, mantendo para esse fim uma capela com as pessoas necessárias, prerrogativa concedida aos ministros diplomáticos após o cisma cristão do século XVI. Evaldo Cabral de Mello relata que, nos países do norte da Europa, as dissidências católicas se aproveitavam disso para assistir aos ofícios religiosos sem serem molestadas, sendo as mais frequentadas a capela da embaixada portuguesa em Amsterdã, após a restauração, e, ainda durante o século XVII, a da embaixada de Veneza em Londres (MELLO, Evaldo Cabral de. O negócio do Brasil – Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669. São Paulo: Editora Schwarcz, 2010, p. 86, nota de rodapé 12).

Autores

  • é professor Titular da Faculdade de Direito do Recife (Universidade Federal de Pernambuco), membro do Instituto Internacional de Direito Administrativo (IIDA) e do Instituto de Direito Administrativo Sancionador e desembargador do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.

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