A relevância da ciência geográfica na estruturação do Estado de Direito e na formulação de políticas públicas
11 de janeiro de 2025, 9h16
A célebre frase de Yves Lacoste, em seu clássico La Géographie, ça sert, d’abord, à faire la guerre (“A Geografia, isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra”), sintetiza a profunda relevância estratégica da ciência geográfica (1). Embora originalmente voltada para o planejamento militar, a geografia transcende essa aplicação, sendo essencial para a leitura técnica e cartográfica, a análise dos processos que compõem e interagem com o meio físico e a compreensão das dinâmicas sociais que moldam o território. Trata-se de uma ciência que conecta as relações entre humanos e o ambiente — fauna, flora e recursos naturais — e entre os próprios indivíduos no espaço, fornecendo os fundamentos para a organização social e política (2).
No contexto moderno, a geografia assume um papel indispensável para a estruturação do Estado e a formulação de políticas públicas (3). É a partir da análise geográfica que se identificam as particularidades do território, suas potencialidades e desafios, oferecendo uma base sólida para o planejamento governamental. Essa ciência, ao descrever o ambiente natural e analisar as interações humanas, torna-se fundamental para compreender as realidades que moldam as organizações sociais. Por sua vez, a organização social dá origem à estruturação política e econômica, que se apoia sobre os pilares territoriais estabelecidos. Nesse sentido, a geografia, com sua visão integrada, fornece subsídios empíricos e científicos indispensáveis para a governança (3).
Um exemplo notável da importância da geografia para o Estado é o papel desempenhado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Este órgão, com base na ciência geográfica, coleta, organiza e analisa dados que revelam a realidade territorial brasileira. Por meio de censos demográficos e estatísticas detalhadas, o IBGE identifica as características socioeconômicas, os fluxos migratórios, as desigualdades regionais e as demandas específicas de cada localidade (4). A relevância dessas informações é evidente na formulação de políticas públicas, permitindo ao governo direcionar recursos e esforços para enfrentar problemas como o desemprego, o analfabetismo, a pobreza e as lacunas em infraestrutura.
Ademais, o IBGE também reúne informações sobre a geografia física do Brasil, como relevo, clima, hidrografia e cobertura vegetal. Esses dados são cruciais para questões estratégicas, como a gestão de recursos naturais, o planejamento urbano, a mitigação de riscos ambientais e a formulação de políticas de defesa nacional. A geografia física, combinada com o conhecimento das dinâmicas humanas, constitui a base para estratégias integradas de desenvolvimento e proteção da soberania territorial (4).
Novas possibilidades
A relação entre geografia e direito é profunda e histórica (3). Desde a demarcação de fronteiras e limites territoriais até a regulação das interações sociais e ambientais, o direito depende de uma compreensão geográfica precisa. Apesar disso, ao longo do tempo, a especialização excessiva e a fragmentação do conhecimento levaram a um certo distanciamento entre essas áreas. No entanto, é impossível ignorar que o direito se materializa em um território, regulando as relações humanas e as interações com o meio ambiente. Qualquer tentativa de separar o direito da geografia enfraquece a capacidade de lidar com desafios complexos, como a urbanização desordenada, as mudanças climáticas e a gestão de recursos hídricos.
A necessidade de reintegrar essas áreas torna-se ainda mais evidente com o surgimento de novas abordagens, como o “direito administrativo geográfico” e o “geodireito”. Esses ramos emergentes refletem a importância de integrar ferramentas da geografia, como os sistemas de informações geográficas (SIG) e o sensoriamento remoto, ao arcabouço jurídico. Essa integração permite uma gestão mais eficaz do território e uma governança pública que responda às particularidades de cada região (5).
O avanço das geotecnologias e da inteligência artificial abre novas possibilidades para a relação entre geografia e Direito. Hoje, é possível mapear, modelar e simular cenários futuros com uma precisão impressionante, permitindo que políticas públicas sejam baseadas em dados robustos e projeções confiáveis. A análise de grandes volumes de dados geográficos, combinada com algoritmos inteligentes, facilita a identificação de padrões e tendências, tornando a gestão pública mais eficiente e adaptativa (6).
Por exemplo, ferramentas como o sensoriamento remoto e os SIG podem ser empregadas para monitorar o desmatamento, identificar áreas de risco ambiental e planejar a expansão urbana de forma sustentável. Já a inteligência artificial pode ser usada para analisar os impactos de diferentes políticas sobre o território e suas populações, auxiliando na tomada de decisões mais informadas.
A ciência geográfica é, sem dúvida, um pilar estratégico para a governança no século 21. Sua capacidade de fornecer uma compreensão integrada do território, aliada às ferramentas tecnológicas contemporâneas, torna-a essencial para a formulação de políticas públicas que promovam o bem-estar social, a justiça territorial e a sustentabilidade ambiental. A integração entre geografia e direito não é apenas desejável, mas indispensável para enfrentar os desafios globais e locais de forma eficaz (3).
Ao resgatar e aprofundar a relação entre essas áreas, o Brasil e outras nações podem construir soluções inovadoras e inclusivas, que respeitem as especificidades de cada região e promovam o desenvolvimento equilibrado. Afinal, como já nos ensinou Yves Lacoste, a geografia, mais do que uma ciência descritiva, é uma ferramenta estratégica, capaz de moldar o futuro das sociedades e dos territórios em que habitamos (1).
Referências bibliográficas
(1) LACOSTE, Yves. A Geografia: isso serve, em primeiro lugar para fazer guerra. Tradução Maria Cecília França. Campinas, SP: Papirus,1988;
(2) SANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova: da crítica da Geografia a uma Geografia crítica. 6 ed. São Paulo: Edusp, 2004;
(3) SILVA, Carlos Sérgio Gurgel da. Contribuições da ciência geográfica ao estudo do direito. Disponível em: <https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2022/3/2022_03_0201_0233.pdf>. Acesso em 07 de janeiro de 2025;
(4) OLIVEIRA, Luiz Antônio Pinto de; SIMÕES, Celso Cardoso da Silva. O IBGE e as pesquisas populacionais. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rbepop/a/VCdB6mfFsmm5Wjd4LmydTrD/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em 07 de janeiro de 2025;
(5) UGEDA, Luiz. Direito administrativo geográfico: fundamentos na geografia e na cartografia oficial do Brasil. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/371219832_Direito_administrativo_geografico_fundamentos_na_geografia_e_na_cartografia_oficial_do_Brasil>. Acesso em 07 de janeiro de 2025;
(6) CASTRO, Luiz Eduardo de; OLIVEIRA, Tayna de Souza; FERREIRA, Daniela da Silva; SOUZA, Sebastião Perez; LIMA, Wendell Teles de; SIQUEIRA, Thomaz Décio Abdalla. O entendimento da inteligência artificial e o ensinamento do espaço geográfico. Disponível em: <file:///C:/Users/Carlos%20S%C3%A9rgio%20Gurgel/Downloads/O+ENTENDIMENTO+DA+INTELIG%C3%8ANCIA+ARTIFICIAL+E+O+ENSINAMENTO+DO+ESPA%C3%87O+GEOGR%C3%81FICO.pdf>. Acesso em 07 de janeiro de 2025.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!