STF e a despolitização do Banco Central (ao menos na esfera judicial)
7 de janeiro de 2025, 6h34
Um dos debates mais intensos travados na política recente diz respeito aos métodos que o Banco Central utiliza para indexar os juros no Brasil. Mais uma vez, estão tirando a responsabilidade dos legisladores e gestores públicos de cuidar da economia e jogando-a no colo do Poder Judiciário.
Porém, em um passado não muito distante, o Supremo Tribunal Federal já tinha se adiantado a respeito deste assunto. No julgamento da ADI nº 6.696/2021, do Distrito Federal, o famoso julgamento sobre a autonomia do Banco Central, a Suprema Corte deu vislumbres de que o Poder Judiciário não está escalado para uma discussão técnica e política em que o tema seja a macroeconomia nacional.
Isso, contudo, não impediu que o Partido Democrático Trabalhista (PDT) ingressasse com a ADPF 1.202, com a intenção de que o STF intervenha no Banco Central para revisar a metodologia da autarquia federal em sua tomada de decisão sobre os percentuais da Taxa Selic.
Sob o argumento de que o Banco Central altera o percentual dos juros com métricas que não atendem aos dispositivos presentes na Constituição Federal, pede-se, então, a substituição dessa metodologia por outra que atenda a esses objetivos. Ou melhor, que a legenda pressupõe que atenda, fazendo com que a autarquia assuma um papel que não lhe cabe mais: ser quem socorre o Poder Executivo quando suas políticas econômicas falham, por meio de quaisquer medidas populistas [1].
Ora, quando foi julgada a autonomia do Banco Central, o Supremo Tribunal Federal entendeu que foi uma escolha conjunta dos Poderes Executivo e Legislativo afastá-lo das decisões políticas sobre a economia [2]. Daquele momento em diante, a autarquia seria mais reativa do que interventora, fazendo uma leitura das medidas adotadas pelo governo federal e, a partir delas, tomando decisões, mesmo que contrárias à vontade política do momento.
Além disso, a Suprema Corte entende que também não é seu papel determinar se a autonomia do Banco Central é boa ou ruim, tampouco julgar as medidas tomadas pelo órgão diante da realidade econômica. Afinal, a Constituição não determina qual deve ser o cálculo da taxa de juros — algo impossível para uma lei —, mas apenas que a autarquia deve se balizar pelo artigo 174 da CF/88, empregando esforços para criar um ambiente econômico estável e responsável. Há diversas maneiras de se atingir esse objetivo, sem necessariamente apelar para expansão monetária.
Na verdade, o Supremo Tribunal Federal entende que a opinião técnica — no caso, do grupo de economistas do Banco Central — deve ser respeitada pelo Poder Judiciário [3], evidentemente balizada pelos princípios gerais da Constituição, em especial pelos artigos 170 e 174 da Carta Magna.

Igualmente, o ministro Luís Roberto Barroso [4], ao analisar a constitucionalidade da LC nº 179/2021, manifestou-se favorável à autonomia do Banco Central. Ele entendeu que esse novo posicionamento traria mais responsabilidade fiscal, reduzindo a politização e o populismo econômico. O controle fiscal é uma responsabilidade do presidente da República, não sendo correto recorrer à expansão monetária irresponsável para estancar eventuais políticas econômicas mal-sucedidas.
Como deixado claro pela própria Suprema Corte, não existem caminhos mais ou menos constitucionais para a concretização desses princípios. Existem apenas conduções diferentes da economia [5], sendo vedada pela Constituição a irresponsabilidade fiscal e a tomada de medidas que comprometam o futuro econômico da nação em troca de uma prosperidade temporária, especialmente com finalidade eleitoral.
Esses mesmos valores estavam presentes desde o processo legislativo. Quando analisado pela Comissão de Assuntos Econômicos, o senador Telmário Mota [6] ressaltou que as políticas de indexação de juros praticadas antes da independência do Banco Central não levavam aos objetivos finais da Constituição. Pelo contrário, no longo prazo, mostravam-se extremamente danosas para a economia.
Há assuntos que fogem da alçada do STF
Toda essa reconstrução tem o objetivo de mostrar o avanço econômico e responsável que tivemos ao, pelo menos em parte, despolitizar o dinheiro e tratar as contas públicas com seriedade. Todavia, o PDT pede ao Judiciário que siga na contramão dessa medida, requerendo que um Poder da República, que em outro momento afirmou não ser apto para tratar dessa matéria, faça uma intervenção no Banco Central, com a finalidade de alterar a política de indexação de juros, com base em uma análise constitucional, e não na técnica econômica.
Porém, a justificação interna (da lógica jurídica) não prevalece sobre a justificação externa (consequências políticas e econômicas de uma decisão judicial). Não basta apenas apresentar um argumento constitucional correto; é necessário compreender as consequências dessa intervenção, especialmente no que diz respeito à possibilidade de o Supremo Tribunal Federal determinar a política monetária do país e se essa decisão está submetida ao controle de constitucionalidade.
Por óbvio, o modo correto de revisar as medidas do Banco Central é por meio da política, e não do Direito. Como bem ilustram os ministros da Suprema Corte, existem assuntos que fogem da alçada de um julgador. Decisões cujo impacto atinge não somente a esfera judicial, como também a econômica, transmitem a mensagem errada ao serem tomadas pelo STF. Isso sugere que estamos em um país onde os poderes não dialogam e transferem suas responsabilidades para a Suprema Corte, que, sem embasamento técnico, acaba por tomar medidas que, em um estado de normalidade institucional, caberiam aos Poderes Executivo e Legislativo, devidamente municiados com um arsenal teórico e legitimidade para este fim.
Em 2021, o colegiado do Supremo Tribunal Federal agiu corretamente ao exercer contenção e julgar constitucional a autonomia do Banco Central, entendendo-a como fruto de um diálogo institucional entre os Poderes Executivo e Judiciário. Além disso, ressaltou que não cabe à Suprema Corte assumir o papel de controlador das decisões políticas quando estas são plenamente legítimas.
Devemos resistir à ideia de que as decisões dos Poderes das quais discordamos autorizam a intervenção judicial; de que a intervenção de um ministro é melhor do que o diálogo institucional. Principalmente, devemos entender que existem matérias que a Constituição optou por não regulamentar de forma rígida, e que casos assim estão fora da alçada do Supremo Tribunal Federal. É preciso ter humildade institucional.
[1] Em seu voto, no julgamento da ADI nº 6.696/2021, o min. Luiz Fux manifestou: “A toda evidência, é tempo de racionalização das despesas públicas, tal como preconiza o art. 37, §16. E o processo de reposicionamento do Banco Central há de reverberar positivamente em toda a cadeia do Sistema Financeiro Nacional. Não à toa, a justificação da Lei Complementar 179/2021 enfatizou esse necessário afastamento de medidas “eleitoreiras”, incompatíveis aos objetivos de estabilidade zelados pela autoridade monetária.” (ADI 6696, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 26-08-2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-244 DIVULG 10-12-2021 PUBLIC 13-12-2021)
[2] A min. Cármen Lúcia votou neste sentido, ao reconhecer a constitucionalidade da autonomia do Banco Central: “No ponto específico da conveniência, todavia, a matéria extrapola do aspecto jurídico. A opção por maior ou menor autonomia do Banco Central dá-se no ambiente político, como se deu pelos Poderes legislativo e executivo, tendo sido iniciada a alteração com a Emenda Constitucional n. 40/2003, aperfeiçoando-se com a edição da Lei Complementar n. 179/2021.” (ADI 6696, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 26-08-2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-244 DIVULG 10-12-2021 PUBLIC 13-12-2021)
[3] AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PEDIDO DE INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO. ART. 7º, III E XV, IN FINE, DA LEI Nº 9.782/1999 […] AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA. REGULAÇÃO SETORIAL. FUNÇÃO NORMATIVA DAS AGÊNCIA REGULADORAS. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. CLÁUSULAS CONSTITUCIONAIS DA LIBERDADE DE INICIATIVA E DO DIREITO À SAÚDE. PRODUTOS QUE ENVOLVEM RISCO À SAÚDE. COMPETÊNCIA ESPECÍFICA E QUALIFICADA DA ANVISA. ART. 8º, § 1º, X, DA LEI Nº 9.782/1999. JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL. DEFERÊNCIA ADMINISTRATIVA. RAZOABILIDADE. CONVENÇÃO-QUADRO SOBRE CONTROLE DO USO DO TABACO – CQCT. IMPROCEDÊNCIA. 1. Ao instituir o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, a Lei nº 9.782/1999 delineia o regime jurídico e dimensiona as competências da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, autarquia especial. 2. A função normativa das agências reguladoras não se confunde com a função regulamentadora da Administração (art. 84, IV, da Lei Maior), tampouco com a figura do regulamento autônomo (arts. 84, VI, 103-B, § 4º, I, e 237 da CF). 3. A competência para editar atos normativos visando à organização e à fiscalização das atividades reguladas insere-se no poder geral de polícia da Administração Sanitária. Qualifica-se, a competência normativa da ANVISA, pela edição, no exercício da regulação setorial sanitária, de atos: (i) gerais e abstratos, (ii) de caráter técnico, (iii) necessários à implementação da política nacional de vigilância sanitária e (iv) subordinados à observância dos parâmetros fixados na ordem constitucional e na legislação setorial. Precedentes: ADI 1668/DF-MC, Relator Ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, DJ 16.4.2004; RMS 28487/DF, Relator Ministro Dias Toffoli, 1ª Turma, DJe 14.3.2013; ADI 4954/AC, Relator Ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, DJe 30.10.2014; ADI 4949/RJ, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, DJe 03.10.2014; ADI 4951/PI, Relator Ministro Teori Zavascki, DJe 26.11.2014; ADI 4.093/SP, Relatora Ministra Rosa Weber, Tribunal Pleno, DJe 30.10.2014. […] 9. Definidos na legislação de regência as políticas a serem perseguidas, os objetivos a serem implementados e os objetos de tutela, ainda que ausente pronunciamento direto, preciso e não ambíguo do legislador sobre as medidas específicas a adotar, não cabe ao Poder Judiciário, no exercício do controle jurisdicional da exegese conferida por uma Agência ao seu próprio estatuto legal, simplesmente substituí-la pela sua própria interpretação da lei. Deferência da jurisdição constitucional à interpretação empreendida pelo ente administrativo acerca do diploma definidor das suas próprias competências e atribuições, desde que a solução a que chegou a agência seja devidamente fundamentada e tenha lastro em uma interpretação da lei razoável e compatível com a Constituição. Aplicação da doutrina da deferência administrativa (Chevron U.S.A. v. Natural Res. Def. Council). […] 13. Ação direta de inconstitucionalidade conhecida, e, no mérito, julgados improcedentes os pedidos principais e o pedido sucessivo. Julgamento destituído de efeito vinculante apenas quanto ao pedido sucessivo, porquanto não atingido o quórum para a declaração da constitucionalidade da Resolução da Diretoria Colegiada nº 14/2012 da ANVISA. (ADI 4.874, Rel.Min ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 1º/2/2018)
[4] Em seu voto, no julgamento da ADI nº 6.696/2021, o Min. Luíz Roberto Barroso explicou sobre a malversação da economia para fins políticos: “Responsabilidade fiscal não tem ideologia. Responsabilidade fiscal não é nem de esquerda e nem de direita, não é nem monetarista e nem estruturalista. É apenas um pressuposto das economias saudáveis. O descontrole fiscal traz recessão, desemprego, inflação, desinvestimento e juros altos. Os mais penalizados por esse tipo de conjuntura são os mais pobres, de modo que, no fundo, responsabilidade fiscal é a tese progressista, é a tese que, na ponta final, protege quem mais precisa de uma economia hígida para que tenha emprego, para que não haja inflação e para que não haja juros altos.” (ADI 6696, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 26-08-2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-244 DIVULG 10-12-2021 PUBLIC 13-12-2021)
[5] Como bem explicou o min Dias Toffoli: “Ocorre que a Constituição não prescreve o modo mediante o qual os poderes constituídos devem perseguir esses valores e, tendo em vista a complexidade e o dinamismo das relações econômicas e sociais, nem poderia fazê-lo. Como bem levantado pelo Ministro Roberto Barroso, a questão relativa à autonomia dos bancos centrais como forma de atingir maior estabilidade econômica divide os expertos de todo o mundo, havendo quem seja favorável e havendo quem seja contrário a esse tipo de medida. O fato é que se trata de campo do conhecimento mais afeto à economia e à política do que ao direito propriamente dito, cujos resultados, muitas vezes, retratam a conformação política do Parlamento e do Poder Executivo em dado momento. Com efeito, o que a Constituição Federal exige é que a ordem econômica seja saudável ao meio ambiente e favorável a todos os seus atores, tais como empregados, empregadores, consumidores, empreendedores e a coletividade de modo geral. Porém não é possível afirmar, de antemão, que a adoção dessas medidas pela LC nº 179/2021 esteja a violar a Carta da República ou mesmo que contenha algum grau de antijuridicidade.” (ADI 6696, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 26-08-2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-244 DIVULG 10-12-2021 PUBLIC 13-12-2021)
[6] “Há muitos anos, a literatura acadêmica estabeleceu que bancos centrais não conseguem afetar o crescimento de longo prazo. Isso motivou a prática internacional de atribuir aos bancos centrais o objetivo fundamental de assegurar a estabilidade de preços. Embora a expansão da oferta de moeda e a redução da taxa de juros estimulem o consumo e o crescimento econômico de curto prazo, o crescimento econômico assim induzido não se sustenta a longo prazo e a expansão monetária acaba resultando apenas em mais inflação. Dessa forma, membros do Poder Executivo, com eventual apoio do Poder Legislativo, podem ser incentivados a praticar uma política monetária mais frouxa, para estimular o crescimento de curto prazo e, com isso, facilitar as respectivas reeleições ou a eleição de seus partidários. O resultado de longo prazo dessa política seria mais inflação e menos crescimento econômico. […] Assim sendo, quando um governo concede autonomia a um banco central, ele está abdicando do poder de manipular a política monetária. Com isso, deixa de influenciar no crescimento econômico fugidio de curto prazo, mas ganha credibilidade junto ao público. As pessoas e empresas passam a acreditar que o país terá uma taxa de inflação baixa, deixam de praticar políticas de reajuste defensivo de preços e passam a ver os índices de crescimento econômico como indicadores de crescimento de longo prazo, o que aumenta a confiança e a taxa de investimento das empresas, reforçando o ciclo virtuoso de crescimento econômico.” (Senado Federal. Parecer da Comissão de Assuntos Econômicos sobre o Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 19, de 2019. Relator: Senador Telmário Mota. Brasília, 2019. p. 4-5.)
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