Acordo de leniência e controle de legalidade: justificação e legitimidade do MP
3 de janeiro de 2025, 6h33
É na dogmática jurídica que se pretende dar conta da mais adequada positivação do Direito, no sentido de se lhes fixar os contornos de interpretação das normas, a partir da insuperável premissa da segurança jurídica. Ou, para usarmos modelos teóricos mais atuais, para a construção da identidade normativa, tal como identificada no sistema penal de Gunther Jakobs. E essa identidade normativa não é mais — e nem menos — que a convergência geral acerca dos sentidos e dos significados das normas que regulam a coexistência social.

Nesse contexto, e no curtíssimo espaço desta publicação, o que se pretende examinar é (i) a relação entre as consequências dos acordos de colaboração premiada, no âmbito penal, e da leniência em matéria de direito sancionador administrativo, e (ii) a eventual necessidade de vinculação material entre ambas as responsabilidades, e, por fim, (iii) a singular posição do Ministério Público, constitucionalmente autorizado a defender a ordem jurídica, o que significa também o exercício do controle de legalidade (artigo 127, CR). Mais ainda, de promover a ação civil e a penal para a proteção de direitos e interesses coletivos e difusos (artigo 129, I e III, CR), e de zelar pela observância dos direitos individuais assegurados na Constituição (artigo 129, II, CR).
Dispensando-nos do óbvio, porque já conhecidos os conteúdos essenciais das normas relativas ao acordo de colaboração premiada, esse, destinado às pessoas físicas sob responsabilização penal, e ao acordo de leniência, dirigido às pessoas jurídicas, passíveis de sanções pecuniárias e operacionais, cumpre apontar o ponto imediatamente comum a ambas as legislações, (Lei 12.850/13 e Lei 12.846/13), isto é, a confissão dos fatos (artigo 3-C, §3º, e artigo 16º, §1º, I, respectivamente) e cooperação nas investigações.
Nesse passo, parece-nos, a separação entre a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica e a subjetiva da pessoa natural não consegue escamotear a realidade factual: salvo raríssimas exceções, são os administradores e gestores da pessoa jurídica que responderão pela ilicitude penal geradora de atos lesivos à Administração Pública. E daí resulta que serão eles os sujeitos da colaboração premiada, desde que satisfeitos os requisitos legais, dentre os quais avulta a indispensável confissão da prática dos atos.
Certo é, então, que, confessadas e comprovadas a autoria e a materialidade dos ilícitos, com a necessária entrega de provas dos ilícitos e indicações de outras fontes acessíveis, estará irremediavelmente exaurido também o conteúdo do ajuste a ser feito pela pessoa jurídica, no campo do acordo de leniência. Para além de contraditória, seria risível a tentativa de resistência e negação dos atos pela pessoa jurídica no âmbito administrativo, sobretudo porque a responsabilização prevista na Lei 12.846/13 é objetiva, vinculada, nesse sentido, unicamente à ocorrência do dano.
Esse o ponto: ao Ministério Público cabe, privativamente, a titularidade da ação penal. Só ele, e mais nenhum outro órgão, poderá aquilatar a presença dos requisitos legais para o acordo de colaboração premiada. À margem: a discutível legitimidade da autoridade policial não ocupa posição de relevo na hipótese a ser considerada.
Dito isso, cumpre destacar as consequências concretas da colaboração, no que toca à posição da pessoa jurídica representada pelos colaboradores (via de regra), para se chegar à inevitável conclusão de que ambos os ajustes deveriam ser feitos em conjunto, e, de preferência, junto a um único órgão, para que todos os efeitos jurídicos extrapenais sejam considerados na assunção de responsabilidade penal. E isso inclui, evidentemente, o acordo de não persecução civil, no que se refere às sanções por improbidade administrativa (LIA).
Por isso, o que se vê no dia a dia forense é a insuspeita preferência pela solução penal, o que confere ao acordo de colaboração premiada a primazia na confissão dos fatos, e faz do Ministério Público o agente legal legitimado à responsabilização das pessoas naturais, e até das pessoas jurídicas no âmbito da improbidade. Assim, por que não se atribuir a ele também a legitimidade para o acordo de leniência?
A resistência a essa conclusão não procede [1]
Primeiro, porque, sendo o MP o legitimado a compor, tanto a solução penal — ANPP e colaboração premiada- quanto a da improbidade, caberá a ele a avaliação de todas as consequências que resultarão da confissão dos fatos nos dois âmbitos. Nesse passo, a amplitude das sanções a serem negociadas será inevitavelmente impactada pelas sanções a serem impostas à pessoa jurídica. Obviamente!
E é exatamente por isso que nenhum colaborador premiado se arriscará a fechar sua colaboração sem o concomitante ajustamento das sanções impostas à empresa. Daí a legitimação do MP para o acordo de leniência não é só conveniente, mas necessária.
Segundo, porque, cabendo a ele zelar pelo respeito à ordem jurídica, parece-nos inadmissível a tentativa de lhe solapar a atribuição para atuar em matéria rigorosamente vinculada aos seus deveres e prerrogativas constitucionais. Nem seria preciso o recurso à teoria dos poderes implícitos, tamanha a identidade de objeto em que se apura a autoria e materialidade dos fatos.
E, por fim, também porque a privatividade da CGU na Lei 12.846/13 se impõe unicamente ao âmbito do Poder Executivo, não atingindo o núcleo constitucional das atribuições do MP.
No entanto, a legitimidade do MP não lhe confere imunidade revisional, isto é, não impede a revisão dos termos ajustados, sempre que se demonstrar a ilegalidade na fixação dos critérios de multa previstos na Lei 12.846/13. A aceitação do acordo não constitui óbice ao controle posterior de sua legalidade. E isso porque a voluntariedade do ato nem sempre traduz a manifestação de uma vontade inteiramente livre. Mas, o que deve ser acentuado é o controle de legalidade nos critérios de sanção escolhidas (artigo 16, 10º e artigo 6º da Lei 12.846/13).
Tudo considerado, encerra-se assim: (i) uma vez realizado o acordo de leniência pelo MP, não tem a CGU poderes para questionar a validade do ato e nem para rever a discricionariedade ali manifestada; (ii) qualquer acordo de leniência poderá ser judicialmente revisado, sempre que se puder demonstrar a ilegalidade do ajuste, tal é o caso, por exemplo, da não observância dos critérios de fixação da multa prevista no artigo 6º e no artigo 16, §10º, Lei 12.846/13; (iii) nada impede a Administração Pública — CGU e Tribunal de Contas — de reconhecer e rever ato manifestamente ilegal no âmbito de matéria a ela também reservada.
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[1] Cf. Pet. n.º 11.972/DF, p. 62, deferimento do pedido iii, que “autoriza a requerente promover, perante a Procuradoria-Geral da República, a Controladoria Geral da União e a Advocacia-Geral da União, a reavaliação dos termos dos Acordos de Leniência entabulados, possibilitando-se a correção das ilicitudes e dos abusos identificados, praticados pelas autoridades do sistema de Justiça”. Disponível em aqui.
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