Transações imobiliárias no Cade: um passo em direção à segurança
28 de fevereiro de 2025, 21h51
Quem está habituado a acompanhar o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) assistiu, nos últimos anos, ao crescimento do protagonismo das transações imobiliárias entre os atos de concentração notificados à autarquia. Diante de uma jurisprudência ainda em construção e de critérios que não ofereciam certeza suficiente para as empresas, estas optaram por levar ao conhecimento do Cade inúmeras operações envolvendo imóveis. Recentemente o Tribunal do Cade (Consulta nº 08700.007814/2024-75) divulgou um direcionamento que pode ser capaz de modificar essa tendência, trazendo maior segurança para a definição dos casos em que uma aprovação concorrencial não é exigida pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Transações imobiliárias podem incluir a compra e venda de ativos imobiliários, como terrenos, galpões, armazéns logísticos e outros empreendimentos imobiliários. Mas também podem abarcar aquisição de participação societária em empresa proprietária de imóveis, constituição de SPEs para o desenvolvimento de empreendimentos imobiliários, operações de sale and leaseback, arrendamento de ativos imobiliários, execuções de garantias imobiliárias etc.
A decisão recente do Cade procura deixar claro que uma compra de imóvel que não envolva aquisição de participação societária ou contrato associativo só precisa ser notificada ao Cade em algumas hipóteses: (1) caso se trate de alienação de um estabelecimento comercial, (2) se houver venda de estabelecimento ativo ou com capacidade produtiva instalada ou (3) o imóvel em questão puder ser caracterizado como um bem essencial — ou seja, sem substitutos e indispensável para a entrada no mercado. Nesses casos, se os grupos econômicos envolvidos faturarem mais de R$ 750 milhões e R$ 75 milhões por ano, a operação deve ser notificada ao Cade.
Examinar cuidadosamente os critérios apresentados pelo Cade constitui passo importante para uma maior segurança jurídica do ponto de vista concorrencial para empresas que realizam transações imobiliárias. É o que passaremos a fazer, após verificarmos as premissas da decisão.
Recente consulta do supermercado nordestino: premissas
Na consulta mencionada, uma rede varejista com atuação na região Nordeste do país informou que uma empresa atuante em Salvador intencionava adquirir imóvel de sua propriedade. A potencial adquirente atua no ramo de compra e venda de imóveis e incorporação imobiliária, além de outras atividades.
O voto condutor adota algumas premissas relevantes:
– Previsibilidade e segurança jurídica são essenciais para uma política antitruste consistente;
– A jurisprudência, na esfera administrativa, serve como fonte de Direito para os tutelados;
– A necessidade de submissão de operações ao Cade gera nos administrados certo desestímulo, podendo levá-los a considerar soluções alternativas à aquisição do imóvel, menos custosas;
– Há interesse público em reintegrar à economia ativos que estejam paralisados, permitindo que sejam explorados em seu pleno potencial econômico;
– Nos casos em que não exista um risco concorrencial, nem mesmo em tese, deve-se privilegiar a liberdade econômica e a possibilidade de realização de negócios jurídicos;
– Apenas ativos produtivos operacionais são capazes de criar ou reforçar uma posição dominante ou resultar na dominação de mercado relevante de bens ou serviços (artigo 88, §5º da Lei 12.529/11);
– As transferências de ativos não operacionais são simples transferências patrimoniais, sem capacidade de alterar diretamente a posição de mercado de um eventual comprador;
– Assim, não faz sentido que autoridades concorrenciais analisem operações que, nem mesmo em tese, possam prejudicar a estrutura do mercado ou o bem-estar do consumidor;
– A transação referida na consulta é mera compra e venda de um imóvel no qual não há qualquer atividade empresarial sendo desenvolvida.
Com base nessas premissas, o voto passa a discorrer sobre critérios relevantes para a avaliação quanto à necessidade de notificação de uma aquisição de imóvel.
Quando notificar uma transação imobiliária?
O Tribunal do Cade estabeleceu três critérios para a avaliação da necessidade de notificação de uma transação imobiliária. Segundo a autarquia, basta a presença de um desses critérios para que a operação seja de notificação obrigatória (preenchidos os requisitos de faturamento).
Primeiro critério: alienação de um estabelecimento comercial
Na consulta sob análise, o Tribunal do Cade estabeleceu, em mais de um voto, a diferença entre a mera venda de imóvel e a compra de uma parte de empresa ou ativo produtivo. A operação pode ter de ser notificada se, além do imóvel, houver transferência de máquinas, equipamentos, insumos, estoques, armazéns, fundo de comércio, pessoal, patente, marca, nome empresarial, direitos ou outros bens incorpóreos.
É preciso que as partes envolvidas na transação analisem, no caso concreto, elementos como o valor da operação, descrição do conjunto de bens transferidos, transferência de obrigações fiscais, responsabilidades assumidas pelo adquirente e cláusulas de não competição. A análise do conjunto desses fatores permitirá concluir se estamos diante da transferência de mero imóvel ou do estabelecimento, quando pode ser necessária a notificação ao Cade.
Segundo critério: estabelecimento ativo ou com capacidade produtiva instalada
A transação pode ter de ser notificada ao Cade se o estabelecimento em questão se encontrar ativo. Para essa avaliação, é importante analisar se o estabelecimento gera receita, se há empregados contratados, contratos celebrados, maquinário ou estruturas com efetiva capacidade produtiva.
Ressalte-se que o exercício parcial da atividade empresarial ou a existência de capacidade produtiva potencial já são suficientes para ensejar a necessidade de notificação. Assim, a operação deve ser notificada se houver capacidade produtiva que exceda à estrutura do imóvel e suas benfeitorias, podendo ser aproveitada pelo comprador de forma tempestiva para reforçar sua posição no mercado.
Por exemplo, é de notificação obrigatória a aquisição de uma fábrica cuja linha de produção esteja devidamente organizada, mas momentaneamente suspensa, desde que o adquirente venha a atribuir ao bem finalidade que implique o aproveitamento da capacidade produtiva anteriormente instalada.
O Tribunal do Cade foi claro ao determinar, contudo, que o estabelecimento comercial deve ser considerado operacional na hipótese de a suspensão de suas atividades se dar entre o início das tratativas e a consumação da operação. Ou seja, para que a transação não seja de notificação obrigatória, o estabelecimento deve estar inativo antes do início das tratativas, assinatura de contrato, protocolo de entendimentos não vinculante ou divulgação da operação.
Terceiro critério: bem essencial
Mesmo que o imóvel não possua qualquer capacidade produtiva, a sua aquisição pode ter de ser notificada ao Cade, se estivermos diante de um ativo essencial. Entende-se por essencial o imóvel que não tenha substitutos dentro do mercado relevante geográfico e seja indispensável para viabilizar a entrada de um potencial concorrente. Por exemplo, espaços em aeroportos e portos, escassos por motivos regulatórios, como restrições relativas à ocupação do solo — vide AC nº 08700.001197/2022-32 (Cattalini / União Vopak).
Diante da ausência de todos os critérios acima, o Cade concluiu, no caso concreto, haver mera transferência voluntária rotineira de bem, parte da atividade econômica orgânica das empresas envolvidas. Essa transferência não teria o condão de ampliar a concentração das participantes do mercado relevante ou de aumentar seu poder de mercado. Isso porque os bens são disponíveis, facilmente obtidos no mercado e plenamente substituíveis. É digno de nota que essa conclusão se aplica mesmo que a empresa interessada na aquisição opere no mercado imobiliário, pois, segundo voto do conselheiro Gustavo Augusto na Consulta nº 08700.007814/2024-75, “um imóvel é apenas um insumo, se não houver a devida incorporação imobiliária, incluindo-se todas as aprovações e o ‘habite-se’”.
Reflexões sobre o alcance do precedente
Nos últimos anos, o Cade vinha, por meio de seu corpo técnico, analisando transações imobiliárias sob o prisma de quatro critérios: operacionalidade do ativo, destinação específica para a atividade econômica a ser desempenhada pelo comprador, essencialidade e aumento de capacidade produtiva do comprador. Como a experiência decisória deixou claro, esses são termos que não possuem uma interpretação unívoca.
Além disso, há precedentes sinalizando que essas características não precisariam estar concomitantemente presentes — vide AC nº 08700.002060/2022-03 (Santos Brasil Participações S.A. e Petróleo Sabbá S.A.) e AC nº 08700.001513/2023-57 (Companhia Siderúrgica Nacional e São José Desenvolvimento Imobiliário 121 Ltda.) — ou teriam sido parcialmente superadas — vide AC nº 08700.000735/2024-33 (Itajaí/WMS), entendendo que o requisito da operacionalidade do ativo já havia sido “relevado”.

Não é de espantar que esse estado de coisas tenha gerado insegurança jurídica para as empresas potencialmente participantes de operações imobiliárias. Nesse sentido, a recente orientação do Cade é bem-vinda: não porque tenha abandonado totalmente os critérios anteriores, mas porque conseguiu delinear com maior clareza o seu significado e sinalizar com segurança os elementos que devem ser analisados para a sua verificação. Além disso, a decisão procura deixar claro que, para ensejar a necessidade de notificação, basta a verificação de um dos critérios acima (caracterização como estabelecimento comercial, atividade/capacidade produtiva instalada ou essencialidade do bem).
Seria ingenuidade imaginar, contudo, que essa decisão será suficiente para eliminar quaisquer dúvidas interpretativas. Os critérios apresentados são suficientemente abrangentes para que pensemos o contrário. A pendência de qualquer contrato referente ao imóvel em questão bastaria para identificá-lo como “ativo” e, portanto, de notificação obrigatória? Provavelmente não é o caso, sob pena de se ir de encontro às próprias premissas da decisão acima expostas.
Um segundo equívoco seria assimilar que a decisão teria aberto a possibilidade de uma análise substantiva dos efeitos de qualquer operação para fins de decidir se esta deve ou não ser notificada ao Cade. Não é este o recado do Tribunal do Cade, como deixou claro o voto vogal da conselheira Camila Cabral Pires Alves na Consulta nº 08700.007814/2024-75. Apesar das premissas do Voto Condutor, a análise sobre a necessidade ou não de notificação obrigatória de uma operação segue sendo, na maior medida possível, uma análise objetiva, e não uma antecipação sobre a “capacidade de criar ou reforçar uma posição dominante ou resultar na dominação de mercado relevante de bens ou serviços”.
Por fim, o próprio Cade alertou para uma delimitação do escopo do precedente: a decisão não se aplica à notificação de operações de compra e venda de terrenos e de bens imóveis entre empresas concorrentes do setor imobiliário. O Cade entendeu que essa hipótese pode conter especificidades que não foram objeto da Consulta formulada.
Como afirma o conselheiro relator Gustavo Augusto, na Consulta nº 08700.007814/2024-75:
“Tal operação em nada se distingue de um supermercado que compre ovos de uma fazenda, ou de uma locadora que adquira veículos novos para o reforço da sua frota. Embora haja ativos sendo transferidos entre empresas, essas operações não podem ser consideradas como um ato de concentração”.
De fato, o Cade não pode se tornar um guichê de avaliação burocrática de transações equiparáveis à compra de ovos de uma fazenda. Seu mandato é muito relevante para a economia nacional, e seu corpo de funcionários demasiado qualificado para que recursos sejam dedicados a essa tarefa. Dessa forma, a sociedade brasileira agradece cada esforço no sentido de conferir maior clareza a critérios decisórios que precisam ser avaliados, em primeira mão, pelas próprias empresas e seus advogados, quando se veem diante de uma possível operação. Embora uma única decisão não possa ser vista como panaceia, a orientação do Tribunal do Cade analisada no presente texto certamente contribui para um melhor ambiente de negócios no país.
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