Gato de Schrödinger no mundo jurídico: nova era da computação quântica e seus desafios
28 de fevereiro de 2025, 6h05
A computação quântica, simbolizada pela recente inovação da Microsoft com o lançamento do chip Majorana 1, representa um marco tecnológico que promete redefinir não apenas os limites da ciência e da engenharia, mas também os fundamentos do Direito. Essa nova era da computação, que ultrapassa as capacidades dos sistemas clássicos, traz consigo uma série de desafios jurídicos e éticos que exigem uma abordagem inovadora por parte dos profissionais do Direito.

O conceito da superposição quântica, frequentemente ilustrado pelo famoso experimento mental do gato de Schrödinger, oferece uma metáfora provocadora para entender as implicações dessa tecnologia nas práticas jurídicas, especialmente no que se refere à proteção de dados, governança e responsabilidade legal.
Computação quântica: superposição, entrelaçamento e implicações jurídicas
Em sua essência, a computação quântica desafia os princípios da computação tradicional. Enquanto os bits em sistemas clássicos podem assumir apenas dois estados (0 ou 1), os qubits operam sob o fenômeno da superposição, o que lhes permite estar simultaneamente em múltiplos estados. Para ilustrar, o gato de Schrödinger, dentro de uma caixa, é simultaneamente vivo e morto até ser observado — uma metáfora que, embora abstrata, captura a essência da superposição quântica. Outra forma de explicar a sobreposição é uma moeda. Além das possibilidades tradicionais que seriam cara ou coroa, a quântica teria um terceiro estado, que é o da moeda girando no ar em um estado indefinido. No campo jurídico, isso pode ser comparado à ideia de que certos processos legais, documentos e decisões podem estar em “estados múltiplos” de interpretação até que um juízo final seja proferido, o que exige uma nova abordagem para a interpretação legal.
Além disso, o entrelaçamento quântico propõe que partículas podem estar instantaneamente correlacionadas, independentemente da distância entre elas. Esse fenômeno sugere uma nova perspectiva sobre conexões e interações dentro de sistemas jurídicos complexos, como jurisdições transnacionais, contratos internacionais e proteção de dados. Em um ambiente onde as decisões jurídicas podem ser impactadas por cálculos exponencialmente mais rápidos e precisos, o direito precisará se adaptar para garantir que tais avanços não coloquem em risco os direitos fundamentais dos cidadãos.
Desafio da proteção de dados e necessidade de novas regulações
Com a evolução da computação quântica, surge uma questão para o direito: a segurança dos dados. O poder de processamento quântico pode ameaçar a eficácia dos sistemas de criptografia que atualmente protegem dados sensíveis, como os regulados pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no Brasil e o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) na União Europeia. Os métodos de criptografia convencionais, baseados em algoritmos matemáticos que são seguros para computadores clássicos, podem ser facilmente quebrados por algoritmos quânticos.
A governança quântica, portanto, se torna um imperativo. A implementação de sistemas de segurança post-quantum, ou quantum resistent, — criptografia resistente a ataques quânticos — exigirá uma reformulação urgente das normas legais e regulamentares que estão em vigor e em trâmite de aprovação, assim como as normas técnicas sobre segurança cibernética (a exemplo da ABNT NBR ISO/IEC 27002).
Do mesmo modo, as autoridades regulatórias precisarão estar à frente, estabelecendo diretrizes claras sobre a utilização responsável dessa nova tecnologia, assim como as empresas que dão tratamento aos dados precisarão rever seus procedimentos internos de governança e compliance, de modo a garantir e demonstrar às autoridades e ao mercado que são capazes de proteger a privacidade dos indivíduos, evitando o uso indevido de dados sensíveis.

Um exemplo de tecnologia que é resistente aos computadores quânticos atuais é o Bitcoin. Segundo o que tem sido divulgado, seria necessário um computador quântico com milhões de qubits estáveis e livres de erro para quebrar a criptografia atual do Bitcoin, algo que ainda está distante das capacidades tecnológicas atuais. E mesmo com o advento de tais computadores, bastaria que fossem realizados hard forks ou soft forks no Bitcoin para inserir algoritmos criptográficos resistentes à computação quântica, bem como adotar um mecanismo de hashing mais seguro contra-ataques quânticos.
Inteligência generativa e desafios éticos no Direito
Por outro lado, a inteligência generativa, já em uso no campo jurídico para a criação de documentos e pareceres automatizados, encontrará na computação quântica um grande aliado, capaz de impulsionar sua eficiência e complexidade. Algoritmos quânticos podem processar enormes volumes de dados com precisão nunca antes imaginada, gerando resultados mais rápidos e, em muitos casos, mais complexos, o que amplia as possibilidades de automação nas práticas jurídicas.
Contudo, esse avanço levanta questões éticas e legais sobre responsabilidade e transparência. Em um contexto em que decisões jurídicas podem ser automatizadas com o auxílio de inteligência artificial e algoritmos, será necessário garantir que essas ferramentas sejam usadas de maneira justa e imparcial. O conceito de responsabilidade algorítmica terá de ser abordado, para que as decisões baseadas em IA, potencializadas pela computação quântica, não reproduzam vieses discriminatórios ou prejudiquem a equidade das decisões judiciais.
Apesar da Autoridade Nacional de Proteção de Dados ter enfatizado a importância de uma abordagem centralizada para a regulamentação da IA em sua Nota Técnica nº 16/2023/CGTP/ANPD, o Conselho Nacional de Justiça já vem fazendo um esforço nesse sentido no âmbito do Poder Judiciário, desde a edição da Resolução CNJ nº 332/2020, que foi agora alterada por meio do Ato Normativo 0000563-47.2025.2.00.0000 (aprovado no início de 2025), e que contemplou inclusive recomendações do Conselho Federal da OAB justamente para garantir a proteção dos direitos fundamentais dos jurisdicionados.
A propósito, objetivo declarado dessa iniciativa do Conselho Nacional de Justiça é o de promover a governança das soluções de inteligência artificial que vierem a ser adotadas pelos tribunais, permitindo a inovação, mas observando os padrões de auditoria, monitoramento e transparência definidos pelo CNJ. No entanto, o advento da computação quântica faz com que todo este esforço deva necessariamente seguir sendo aperfeiçoado.
Nova governança quântica: princípios e desafios
Diante dos riscos e da promessa de transformação trazidos pela computação quântica, o Fórum Econômico Mundial (WEF) introduziu os Princípios de Governança Quântica, oferecendo um quadro ético para a utilização dessa tecnologia. Entre os princípios mais relevantes para o campo jurídico estão:
– Responsabilidade: A implementação de computação quântica deve ser acompanhada por uma clara definição de responsabilidades, especialmente no que se refere ao impacto de decisões automatizadas ou ao uso de dados sensíveis.
– Não maleficência: Garantir que a tecnologia não seja utilizada para causar danos irreparáveis, seja na violação de privacidade, seja na manipulação de sistemas legais e contratuais.
– Transparência e Acessibilidade: O uso de algoritmos quânticos e inteligência generativa no Direito precisa ser transparente, para que todas as partes envolvidas compreendam como as decisões são tomadas e quais são os critérios utilizados.
A implementação desses princípios será fundamental para garantir que os avanços tecnológicos no campo da computação quântica não resultem em desequilíbrios de poder ou em violação dos direitos fundamentais.
Impacto no Data-Driven Law: transformações e desafios
O conceito de Data-Driven Law — o direito baseado em dados — já está em pleno crescimento. A computação quântica permitirá uma análise muito mais profunda e rápida de grandes volumes de dados, o que impactará diretamente a formulação de políticas públicas, a prática judicial e até a criação de novas normas legais. A análise de padrões nas decisões judiciais, por exemplo, poderá ser realizada de forma muito mais precisa, permitindo que juízes e advogados tenham acesso a informações mais detalhadas e fundamentadas.
No entanto, a capacidade de processar dados em uma escala quântica também exige uma regulação cuidadosa. O uso de grandes volumes de dados para prever decisões legais ou elaborar novas leis levanta questões sobre privacidade, autonomia individual e controle. A automatização excessiva das decisões jurídicas poderá resultar em uma diminuição da discricionariedade judicial e da intervenção humana, com implicações éticas significativas sobre o papel do juiz no processo judicial.
Não é por outro motivo, por exemplo, que o Conselho Nacional de Justiça estabeleceu como princípios, no Ato Normativo 0000563-47.2025.2.00.0000 (que alterou a Resolução CNJ nº 332/2020), a prevenção, a precaução e a adoção de medidas eficazes para a mitigação de riscos derivados do uso intencional ou não-intencional da inteligência artificial, assim como a supervisão humana efetiva, periódica e adequada durante a adoção das soluções de inteligência artificial, o que se torna ainda mais essencial diante do advento da computação quântica.
Coexistência de ambas tecnologias
A computação clássica e a computação quântica têm características distintas, mas complementares, e, por isso, ambas coexistirão de forma a atender a diferentes necessidades tecnológicas. A computação clássica é extremamente eficiente para a maioria das operações do dia a dia. Ela lida bem com tarefas como processamento de texto, execução de cálculos simples e gerenciamento de grandes volumes de dados em sistemas estruturados, como análise de jurisprudência e contratos. Algoritmos de inteligência artificial (IA) clássica, por exemplo, já são amplamente usados para pesquisar e classificar documentos legais, identificar padrões em decisões judiciais e otimizar tarefas repetitivas e estruturadas.
Por outro lado, a computação quântica oferece um potencial significativamente diferente. Como os qubits podem estar em múltiplos estados ao mesmo tempo, isso permite que a computação quântica realize cálculos de forma paralela e exponencialmente mais rápida, o que é particularmente vantajoso para a solução de problemas complexos, como simulação de moléculas, otimização de sistemas e até mesmo quebra de criptografia avançada, como já mencionado acima. A computação quântica pode processar informações de forma simultânea em múltiplas dimensões, o que a torna extremamente poderosa para resolver problemas onde há uma grande quantidade de variáveis interligadas e complexas, como na previsão de desfechos legais ou análise de grandes volumes de dados desestruturados.
No campo do Direito, a computação clássica continuará sendo fundamental para muitas tarefas cotidianas. A IA clássica já é eficiente para a busca de jurisprudência, classificação de documentos legais e análise de contratos, onde as informações são bem definidas e estruturadas. Porém, a computação quântica pode oferecer um grande diferencial quando o problema envolve uma enorme complexidade ou um volume imenso de dados que precisam ser processados simultaneamente. Por exemplo, ela poderia otimizar a análise de contratos inteligentes, simular cenários jurídicos complexos e até prever resultados de processos com base em uma infinidade de variáveis ao mesmo tempo, algo que seria muito difícil ou demorado para um computador clássico.
Além disso, a criptografia quântica pode oferecer um nível de segurança muito superior, garantindo que as informações jurídicas, como dados de clientes e transações financeiras, sejam protegidas de maneira inviolável, algo que a criptografia clássica não pode oferecer com o mesmo nível de segurança. Isso abriria novas possibilidades para contratos e acordos mais seguros e automatizados.
Portanto, as duas formas de computação coexistirão porque têm capacidades diferentes que atendem a necessidades distintas. A computação clássica será a base para a maior parte das operações do dia a dia, como a análise de dados estruturados e tarefas simples, enquanto a computação quântica será utilizada para resolver problemas mais complexos, de maior escala e com maior número de variáveis, que exigem um processamento em paralelo mais avançado. Em conjunto, essas duas abordagens irão se complementar, permitindo que a tecnologia no setor jurídico se torne mais eficiente, segura e capaz de lidar com desafios cada vez mais complexos, oferecendo novas soluções para análise e otimização de processos jurídicos.
Conclusão
O avanço da computação quântica, exemplificado pelo chip Majorana 1 da Microsoft, inaugura uma nova era não apenas para a ciência e a indústria, mas também para o Direito. Com o potencial de redefinir a segurança cibernética, a proteção de dados e a própria prática jurídica, essa tecnologia impõe desafios significativos, exigindo que os profissionais do Direito se adaptem a uma realidade em que conceitos como superposição, entrelaçamento quântico e inteligência generativa desempenharão um papel central.
No entanto, é importante destacar que a computação quântica não substituirá a computação clássica, mas a complementará. Assim como uma nave espacial expande as possibilidades de transporte sem tornar carros e aviões obsoletos, os computadores quânticos resolverão problemas específicos que estão além das capacidades dos computadores convencionais, mas não os substituirão nas tarefas do dia a dia. Esse cenário híbrido exigirá novas abordagens regulatórias e jurídicas para integrar essas tecnologias de forma segura e eficiente.
Embora os desafios sejam complexos, os benefícios potenciais são igualmente imensos. O ordenamento jurídico precisará evoluir para acompanhar essa revolução tecnológica, estabelecendo novas normas, regulamentações e mecanismos de governança que assegurem o uso ético, responsável e equitativo dessas inovações. Em última instância, o desafio jurídico imposto pela computação quântica será encontrar um equilíbrio dinâmico entre a promoção da inovação e a proteção dos direitos fundamentais.
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