A crise do ato administrativo vinculado na Lei nº 14.133/2021
28 de fevereiro de 2025, 12h18
O excesso de texto contido na Lei nº 14.133/2021, impetuosamente regulamentar, ditando, em pormenores, a universalidade de toda sorte de palavras e vocábulos mentalmente conjecturados pelo legislador, escancara, fidedignamente, a crise pela qual passa o ato administrativo vinculado.
A invasão do Poder Legislativo no exercício da função administrativa é tão significativa a ponto de esvaziar o pouco — ou quase nenhum — espaço de decisão aos agentes encarregados por tal função. Excessivamente largo, o texto torna-se, invariavelmente, confuso e, até mesmo, autofágico.
Os intermináveis, imprecisos e pouco satisfatórios conceitos que constam do artigo 6º — com 60 incisos, intercalados por alíneas —, somados à previsão de dezenas de regulamentos, além de invadir tarefa (conceituar) usualmente deferida à doutrina e à academia, dizem muito sobre a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
Lúcia Valle Figueiredo [1], escorada em Philippo Satta, já apontava que o colapso reside mais no conceito de vinculação do que no de discricionariedade, como exclusão da efetiva e operante participação intelectual da administração nos juízos necessários para cada agir. Exclusão que se funda sobre o pressuposto inexato de que as normas possam, em certos casos, ter e, em outros, serem privadas de um conteúdo determinado. Logo, há sempre uma precisa vontade do legislador, autorizando a administração concretizar.
Robotização
A ideia de que mesmo sobre os atos vinculados paira a necessidade de interpretação e, por vezes, subsiste um mínimo de avaliação técnica para se aferir se se está ou não diante da hipótese descrita pela norma, com as minudências de detalhes, apreciações e regulamentos, acaba por tolher toda margem de liberdade, transformando o exercício da função administrativa em agir autômato robotizado, tendente a criar uma vastidão de tecnocratas ou, ainda, um cenário mais danoso – o domínio absoluto da inteligência artificial, porém, autorizado por lei.
É o bastante cada ente federativo (União, 27 estados-membros e mais de cinco mil e quinhentos municípios) e todas as demais entidades que se submetem à Lei nº 14.133/2021 expedirem as dezenas de regulamentos nela previstos para que se possa aferir o arsenal quantitativo de textos normativos aptos a distintas — e difusas — aplicações.
O tempo comprova que os agentes públicos se veem obrigados a tomar medidas com os olhos voltados para os órgãos de controle e, só secundariamente, com a esperada serventia ao interesse público (primário). Na dúvida, não decidem, tampouco executam os mais simplórios atos administrativos.

Neste cenário fático, cada agente público deseja, em mãos (preferencialmente, envelopado), um texto legal que lhe permita operar, evitando algum tipo de responsabilização pela prática de atos administrativos imprevistos em normas (genéricas ou pormenorizadamente detalhadas).
Fatos recentes comprovam a conjuntura de abstinência da função administrativa. Como exemplo, nas contratações decorrentes da crise sanitária provocada pela Covid-19, bem como nas enchentes do estado do Rio Grande do Sul, nenhum agente público de primeiro escalão do governo federal ousou atuar sem uma medida provisória que lhe fornecesse segurança, independentemente da precariedade do receituário normativo formulado.
As particularidades da NLLC e seus regulamentos acabam, na maioria das vezes, com todo e qualquer juízo, inteligência ou hermenêutica dos agentes públicos, transformando-os em meros operadores materiais de atos administrativos. A burocracia tecnocrata aplaude a ousadia extensiva burramente dimensionada pelo legislador.
A crise do ato administrativo vinculado não nasceu com a NLLC, mas tem nela seu mais nítido reflexo. Insegurança jurídica gera o apego ao excesso de normas, cria a necessidade de um batalhão de agentes públicos para a prática de atos singelos, demanda justificativas desnecessárias, desembocando no “desvio de poder por excesso de motivação”. De tal modo, transforma o certame licitatório num fim em si mesmo.
É intolerável que o exercício de competência vinculada seja tão extremo a ponto de aniquilar a capacidade de avaliação dos exercentes da função administrativa. A formalidade normativa vinculante não é o antídoto para a mais desejada eficiência administrativa, cuja cura está na criação, nem sempre comprada em pacotes de textos normativos.
[1] Curso de Direito Administrativo, 9ª ed., Malheiros, São Paulo, 2008, p. 220.
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