Senso Incomum

Um encontro sobre garantismo em um sábado à tarde. Sem coach

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27 de fevereiro de 2025, 8h00

O grupo de WhatsApp Garantismo Jurídico, comandado pelo advogado Carlos Augusto Passos, convidou-me, junto da professora Ana Claudia Pinho, para uma charla sobre Garantismo e Ferrajoli. Sábado à tarde.

Excelente ideia. Ótimo tema. Quem se interessa por isso? Primeiro problema nesses encontros virtuais: não cobrar ingresso. Se não cobra, não valorizam. Segundo: tem de ter um coach para abertura. E um influencer no encerramento. Se não tem, fracassa. Hoje em dia é assim. Tem de fazer tik tok. É o Zeitgeist – o espírito do tempo.

Ironias à parte, os poucos interessados puderam ouvir a brilhante Ana Claudia. É especialista em Ferrajoli. Diria que ela, André Karam Trindade e Alfredo Coppeti são os melhores sobre o mestre de Firenze. E Sérgio Cademartori, de cuja banca doutoral participei, foi um dos pioneiros. E Juarez Tavares na aplicação cotidiana.

Ana Cláudia falou sobre o positivismo diferente e diferenciado de Ferrajoli. Sim, é bem peculiar. Há pitadas de empirismo lógico em Ferrajoli, herança kelseniana presente no Principia Iuris, livro que é uma espécie de Língua da Lei, resposta ao problema da falta de decisão nos diversos positivismos.

Meu trabalho ficou facilitado pela abertura feita por Ana Cláudia. Show da Ana. Com isso pude fazer, tranquilamente, outro tipo de abordagem: meus pontos em que concordo e discordo de Ferrajoli (estão delineados no livro  Garantismo, Hermenêutica e (Neo)constitucionalismo, 2ª Ed, com intenso debate com Ferrajoli – editora Tirant). Concordo com a defesa da legalidade constitucional – vigência é uma coisa, validade é outra; também estou de acordo com a crítica ao principialismo (que eu chamo de pamprincipiologismo e Ferrajoli cita em um de seus textos); e igualmente concordo com a crítica ao paleojuspositivismo, o ingênuo textualismo praticado por quem não entendeu Ferrajoli e nem o conceito de positivismo pós-Hart.

Relatadas minhas convergências (claro que ainda há outras), contei, na quentíssima tarde de sábado ainda sem almoçar, que divirjo de Ferrajoli, entre outros pontos, (1) acerca da defesa dele da discricionariedade judicial (texto no ConJur aqui) – para ele, inevitável —, (2) divirjo da defesa (ou admissão, pessimista) da livre apreciação da prova ao mesmo tempo em que defende, a exemplo de Taruffo e Guzman, Ferrer, Tuzet e Badaró, entre outros, a concepção de verdade como sendo “adequatio intelectum et rei (verdade correspondencial), circunstância que considero contraditória, porque envolve dois paradigmas filosóficos inconciliáveis; e (3) discordo da defesa do positivismo que ele faz, mesmo que busque resolver o problema da decisão por meio de axiomas e fórmulas que alcancem uma linguagem precisa (teoria da língua legal).

Minhas concepções sobre essas questões estão desenvolvidas na Crítica Hermenêutica do Direito, ao largo de vários livros, como o mais recente Ensino Jurídico e(m) Crise – Ensaio Sobre a Simplificação.

Spacca

De todo modo, aproveitei para falar sobre algumas lendas urbanas e mitos (no Brasil, é o mito que explica o logos) sobre o garantismo e coisas afins, que permeiam o imaginário jurídico. As principais lendas e mitos são:

(1) o conceito de positivismo, que ainda está calcado na tese textualista e no contraponto ao jusnaturalismo; alunos, professores, advogados e lidadores jurídicos em geral ainda pensam que positivismo é o juiz boa da lei e que “positivismo trás segurança jurídica” e coisas assim.

(2) o meme “livre convencimento superou a prova tarifada”, fenômeno ocorrido há dois séculos e que, incrivelmente, ainda rende “frutos” dogmáticos com baixa densidade teórica, justificando todo tipo de arbitrariedade interpretativa;

(3) a vulgata acerca de Kelsen defender a aplicação da letra (fria!) da lei;

(4) as armadilhas não percebidas do criterialismo, que faz com que a doutrina, de forma convencionalista, substitua o próprio direito, fazendo um mundo de ficções (explico isso detalhadamente no verbete “criterialismo” no Ensino Jurídico em Crise);

(5) o mau uso da ponderação, como foi possível perceber no julgamento da prisão imediata do júri recentemente (demonstrei isso em texto aqui na ConJur) [1];

(6) a vulgata da tese de que precedentes podem ser feitos para o futuro e a baixa compreensão acerca de que isso é, de fato, uma jurisprudencialização do direito – o que impressiona, nisso, é a adesão acrítica de grande parcela da comunidade jurídica; o TST chega a se auto denominar Tribunal de Teses, o que por si só já demonstra o tamanho e a dimensão do problema.

(7) o problema do conceito de princípio, que inundou – epidemicamente – o sistema com pamprincipios usurpadores do estatuto epistemológico do direito legislado;

(8) a proliferação de um conceito vulgarizado de epistemologia, usado como discurso de primeiro nível – explico esse problema no recente livro Ensino Jurídico – e mais outras lendas de menor ou maior alcance e relevância.

Foi, efetivamente, uma bela tarde. Jovens tardes de sábado. Como na canção de Roberto Carlos. Faltaram as canções e os carrões.

Mundo complicado. Quem se interessa em ouvir coisas sobre teoria do direito, conceitos jurídicos complexos, garantismo e Ferrajoli no sábado à tarde? Quem são esses poucos? De onde vêm? De que se alimentam? Como se reproduzem? Como vivem esses espécimes raros?

 


[1] Interessante é que a maioria dos advogados sofre com a aplicação da “ponderação abrasileirada” contra si e não consegue se dar conta do problema. Há quantos anos tentos demonstrar isso?  Mesmo quando demonstro isso, ninguém pergunta: “poxa, como é isso, mesmo? Pode mostrar? Como se faz para contestar o mau uso da ponderação?”.

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