Criptofraudes e poder: o perigoso envolvimento de autoridades com memecoins
27 de fevereiro de 2025, 17h17
Nos últimos meses, o universo dos ativos digitais tem sido palco de um novo e complexo fenômeno: o rug pull em memecoins. Trata-se de uma fraude no mercado de criptoativos que se repete em diferentes países, afetando milhares de investidores ao redor do mundo. Esses golpes tornam-se ainda mais preocupantes quando os principais idealizadores ou responsáveis pela recomendação do projeto são autoridades públicas — especialmente aquelas no exercício do cargo —, o que contribui significativamente para transmitir uma falsa confiabilidade ao token e atrair milhares de investidores desavisados, que rapidamente se tornam vítimas de prejuízos financeiros exorbitantes.

O recente escândalo na vizinha Argentina envolvendo a memecoin $Libra, divulgada e recomendada publicamente pelo presidente Javier Milei em sua rede social X, pode ser um exemplo claro desse tipo de fraude. Em sua publicação, Milei afirmou: “A Argentina liberal está crescendo!!! Este projeto privado será dedicado a incentivar o crescimento da economia argentina por meio do financiamento de pequenas empresas e startups argentinas. O mundo quer investir na Argentina. $LIBRA. Viva a Liberdade, caramba”. Após seu lançamento, a $Libra passou por uma valorização artificial, seguida de um colapso que deixou uma legião de investidores no prejuízo, fazendo evaporar milhões de dólares em poucas horas.
O caso argentino não é o primeiro nem o único dessa natureza. Nos Estados Unidos, poucos dias antes da cerimônia de posse, o presidente eleito Donald Trump anunciou o lançamento da memecoin $Trump por meio de sua conta oficial também na rede social X. A primeira-dama, Melania Trump, por sua vez criou a memecoin $Melania, um dia antes da posse presidencial, seguindo o mesmo modus operandi de seu esposo. Em ambos os casos, as memecoins experimentaram um rápido crescimento de preço, atingindo um valor de mercado que ultrapassou 10 bilhões de dólares. No entanto, em seguida, sofreram uma queda vertiginosa, deixando milhares de investidores defraudados.
No Brasil, a memecoin $Patriota, criada por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro e endossada por seu filho Eduardo Bolsonaro em seu perfil na rede social X, seguiu o mesmo método dos norte-americanos na tentativa de replicar o “sucesso”: marketing agressivo, explosão momentânea de preço e, logo em seguida, a retirada súbita da liquidez do ativo virtual, causando prejuízos de milhares de dólares para a grande maioria dos investidores.
Outro exemplo com características semelhantes aos casos anteriores é a memecoin $CAR, lançada em fevereiro de 2025 pelo presidente da República Centro-Africana, Faustin-Archange Touadéra. Segundo seu idealizador, a memecoin seria um “experimento de algo que pode unir as pessoas, apoiar o desenvolvimento nacional e colocar o país no cenário mundial de uma forma única”. Embora não haja confirmação de que se trata de um rug pull, após seu lançamento, o valor da $CAR atingiu um pico significativo, mas rapidamente despencou cerca de 90%, causando prejuízos profundos a grande parte de seus investidores.
O termo rug pull, traduzido livremente como “puxar o tapete”, refere-se a uma prática fraudulenta no mercado de ativos digitais na qual os desenvolvedores promovem um token, atraem investidores, elevam artificialmente seu preço e, de forma repentina, retiram toda a liquidez, fazendo com que o valor do ativo despenque e os investidores fiquem impossibilitados de recuperar seu dinheiro. Essa estratégia pode assumir diferentes formas, desde a manipulação de mercado até a criação deliberada de projetos fraudulentos sem qualquer intenção real de desenvolvimento.
A principal consequência desses golpes é a destruição do patrimônio dos investidores, muitos dos quais são atraídos pela expectativa de uma valorização rápida das memecoins. O impacto financeiro normalmente é devastador: em alguns casos, centenas de milhões de dólares desaparecem em questão de minutos, impedindo que os investidores consigam vender os tokens ou forçando-os a fazê-lo com prejuízos consideráveis.
No entanto, os danos não são apenas econômicos. Esse tipo de golpe também tem o potencial de minar a confiança no ecossistema dos ativos digitais, afastando investidores sérios e dificultando a expansão da adoção de tecnologias baseadas em blockchain e em finanças descentralizadas (DeFi).
Em um cenário ideal, a compreensão do alto risco desse mercado seria evidente, uma vez que as memecoins são ativos digitais baseados principalmente em memes e piadas da internet, criados sem um projeto econômico sólido que lhes dê sustentação. Elas não possuem valor intrínseco, são extremamente voláteis e têm seu preço determinado exclusivamente pela especulação e pelo entusiasmo da comunidade.
Há quem diga, ainda, que as memecoins são uma espécie de “brincadeira”, algo semelhante a uma “loteria”, e que a prática de rug pulls é normal nesse universo hiperespeculativo, visto que tais tokens não prometem nada a seus investidores e que lucros ou prejuízos exorbitantes fazem parte do negócio — ou melhor, do jogo.
Do ponto de vista jurídico, a análise dessas questões desperta algumas inquietações. A primeira delas é se o Estado deveria tutelar algo que foi criado justamente para não estar sujeito a nenhum tipo de controle estatal. Outra, igualmente insólita, refere-se à criação, ao apoio ou ao desenvolvimento de ativos digitais por agentes públicos com altíssima influência social, sobretudo políticos no exercício do cargo.

Para ilustrar essa segunda observação, faz-se necessária a seguinte pergunta: um presidente da República pode promover (ou divulgar) um ativo virtual? Se a resposta for positiva, então também poderia promover (ou divulgar) o famoso “jogo do bicho”, o cassino e a roleta ou o popular “jogo do tigrinho” (fortune tiger)?
O cenário torna-se ainda mais nebuloso quando o projeto do ativo digital, estreitamente vinculado a autoridades públicas, comete fraude ao “puxar o tapete” dos investidores (rug pull), distribuindo lucros exorbitantes a uns poucos previamente escolhidos e repassando grandes prejuízos aos demais. Tudo isso faz mesmo parte do jogo?
Aproximando-se ligeiramente da questão, tais condutas não parecem ser facilmente aceitáveis. Para além de questionáveis sob uma perspectiva ética, elas, a priori, seriam passíveis de alguma responsabilização.
Delitos, violação da impessoalidade e responsabilização política
No âmbito penal, por exemplo, embora não exista um delito específico que criminalize essas práticas em nosso ordenamento jurídico, elas podem se enquadrar em alguns tipos penais já existentes. O estelionato (artigo 171 do Código Penal) é uma das principais tipificações possíveis, uma vez que esses golpes, em tese, envolvem a manipulação fraudulenta de informações para enganar conscientemente os investidores. Também seria possível a incidência nos crimes contra a economia popular (artigo 2º, IX, da Lei nº 1.521, de 1951), na medida em que tais práticas visam à obtenção de ganhos ilícitos em detrimento de pessoas indeterminadas. Casos mais complexos podem, ainda, caracterizar associação ou organização criminosa, e lavagem de dinheiro, sobretudo quando os fundos de proveniência ilícita são pulverizados em milhares de endereços pseudônimos e ocultados ou dissimulados por meio de mecanismos sofisticados.
Se essas condutas forem praticadas por personalidades políticas, como o caso de presidentes da República, além dos delitos supracitados, poderíamos estar diante, pensando em nosso ordenamento jurídico, de crimes de responsabilidade, em razão da provável violação ao princípio da impessoalidade (artigo 37 da CF/88), bem como por afronta à probidade na administração, nos termos do artigo 85, V, da CF/88 e do artigo 9º da Lei nº 1.079/1950, e por ofensa à Lei Orçamentária (artigo 85, VI, da CF/88 e artigo 10 da Lei nº 1.079/1950), desde que comprovado que o agente sabia — ou deveria saber — que o projeto era fraudulento, assim como seu envolvimento na operação. Também não se descarta a possibilidade de responsabilização política, que pode culminar em impeachment — algo que, inclusive, vem sendo solicitado pela oposição de Javier Milei na Argentina.
“Viva la libertad, carajo!”, disse o presidente argentino. Pero, é preciso sempre repetir que essa liberdade não é um salvo-conduto para cometer crimes. A ausência de regulamentação específica para rug pulls e outras fraudes envolvendo ativos digitais ainda permite que agentes mal-intencionados atuem com relativa impunidade, aproveitando-se do entusiasmo dos investidores menos experientes e da falta de fiscalização efetiva. Os casos mencionados aqui são apenas alguns exemplos recentes de um fenômeno que, se não for devidamente contido, fragilizará a imagem do mercado de criptoativos e continuará gerando prejuízos extremos a seus investidores.
Fazem-se, então, dois alertas. Às autoridades públicas, é preciso cautela nesse cenário de inovações, assim como uma reflexão sobre as consequências práticas de um envolvimento direto com esse tipo de projeto, que, além de altamente volátil, é ontologicamente arriscado, sob pena de responsabilização pessoal. Aos investidores desse mercado, por ora, vale a máxima: don’t trust, verify!
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