Stablecoins: o dinheiro embaixo do seu colchão virtual
26 de fevereiro de 2025, 11h15
Stablecoins são instrumentos cruciais da criptoeconomia, oferecendo uma ponte entre os voláteis ativos digitais e as moedas fiduciárias.
Neste artigo, procuro explicar como as stablecoins funcionam, seus benefícios, riscos e sua diferença com relação às Moedas Digitais de Bancos Centrais (Central Bank Digital Currencies — CBDCs). Ainda, examino os dois maiores atores desse mercado — Tether e Circle — e procuro apontar os principais pontos da agenda regulatória sobre o tema e os possíveis desdobramentos futuros.
Para comprar criptoativos, você precisa converter moeda fiduciária em Bitcoin ou Ethereum, por exemplo. Esse processo, conhecido como “on-ramp”, envolve a conexão de uma conta bancária tradicional a uma exchange, que após receber a transferência, realiza um crédito na sua carteira.
Para retornar ao sistema financeiro tradicional, os usuários devem passar pelo “off-ramp”, uma operação que é visível às autoridades estatais, que exigem a declaração da origem dos recursos e o pagamento impostos sobre ganhos de capital e outros tributos.
Stablecoins entram em cena
Para endereçar as inconveniências relativas à conversão direta entre moedas fiduciárias e criptoativos, as stablecoins são idealizadas para manter um valor estável, atrelando-os a moedas tradicionais, mais comumente o dólar. Essa estabilidade permite que você mantenha um equivalente digital da moeda fiduciária, como dinheiro sob seu “colchão virtual no metaverso”.
Assim, diante da volatilidade no mercado de criptoativos, as stablecoins oferecem uma reserva de valor mais previsível, permitindo que você “realize” ganhos temporários mediante a permuta com um ativo com retornos mais previsíveis. Note que os preços das stablecoins não são estáveis, mas sim menos voláteis e mais previsíveis, dada a natureza dos ativos que as respaldam. A “estabilidade” vem da paridade esperada com os preços dos ativos subjacentes.
As stablecoins também podem facilitar transações internacionais, reduzindo o tempo e os custos associados aos sistemas bancários tradicionais, permitindo transferências quase instantâneas, sem a necessidade de intermediários.
Riscos
O Banco de Compensações Internacionais (BIS) tem analisado ativamente e fornecido orientações sobre a regulação, supervisão e fiscalização dos arranjos de stablecoins, especialmente aqueles com potencial de adoção generalizada em várias jurisdições, denominadas “stablecoins globais” (GSCs).
Dentre outras estratégias regulatórias, o BIS recomenda que os emissores de stablecoins mantenham reservas suficientes e implementem direitos de resgate transparentes para sustentar o valor e a estabilidade da moeda. Ou seja, não se alavanquem como fazem os bancos.
Terra (UST) era uma stablecoin algorítmica que visava manter sua paridade com o dólar americano por meio de um mecanismo complexo envolvendo seu token irmão, LUNA. Em maio de 2022, a UST perdeu sua paridade, levando a um colapso dramático em seu valor e causando turbulência significativa no mercado de criptomoedas em geral. Este evento destacou os riscos associados às stablecoins algorítmicas que carecem de suporte de garantias suficientes.
Além dos requisitos de reserva destinados a mitigar os riscos prudenciais, o Regulamento de Mercados em Criptoativos (MiCA) na União Europeia introduz obrigações rigorosas para os emissores de stablecoins, particularmente em relação aos direitos de resgate, transparência e conformidade com a prevenção à lavagem de dinheiro.
Um ponto crucial desse debate é se stablecoins podem ser sacadas para carteiras de autocustódia (self-custody wallets), permitindo que os fundos se movam para fora do radar de autoridades estatais.
A regulação de combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo exige que intermediários financeiros (como bancos e exchanges) verifiquem as identidades dos clientes e relatem transações suspeitas. Com carteiras de autocustódia (como MetaMask, Trust Wallet, Ledger Nano ou Trezor), não há intermediário — portanto, os reguladores não podem aplicar as regras de Conheça Seu Cliente (KYC) ou monitorar as transações diretamente.
Muitos argumentam que a autocustódia é essencial para a privacidade financeira, impedindo que governos ou corporações tenham controle excessivo sobre as finanças pessoais. Os reguladores, por sua vez, sustentam que saques irrestritos poderiam facilitar atividades ilícitas.
Os dois principais atores: Tether e Circle
Tether e Circle oferecem stablecoins indexadas ao dólar americano, mas diferem significativamente em suas estratégias operacionais, níveis de transparência, modelos de receita e abordagens de conformidade regulatória.
Fundada em 2014, a Tether opera com foco no fornecimento de liquidez no mercado de criptomoedas. A USDT mantém sua paridade com o dólar americano mantendo reservas que incluem dinheiro, equivalentes de caixa e outros ativos. No entanto, a Tether tem enfrentado críticas sobre a transparência e a composição de suas reservas, com pedidos de auditorias mais abrangentes para verificar o respaldo total.
As operações da Tether em jurisdições com supervisão menos rigorosa levantaram questões sobre seus controles internos e o potencial para transações pseudônimas, o que pode dificultar os esforços para rastrear atividades ilícitas.
Em janeiro de 2025, a Tether anunciou planos de transferir sua sede para El Salvador, com o objetivo de capitalizar a postura favorável do país em relação às moedas digitais. A Tether gera receita por meio de vários canais, incluindo empréstimo de reservas, investimento em ativos que rendem juros e cobrança de taxas pela emissão e resgate de USDT.
Lançada em 2018, a Circle enfatiza a transparência e a conformidade regulatória. A USDC mantém sua paridade com o dólar mantendo reservas principalmente em dinheiro e títulos do Tesouro dos EUA de curta duração, com atestados regulares de empresas de contabilidade terceirizadas para verificar a adequação das reservas. A USDC também é amplamente aceita, mas é particularmente favorecida por usuários e instituições que priorizam a conformidade regulatória e a transparência.
A Circle se tornou a primeira grande emissora global de stablecoin a cumprir o Regulamento de Mercados em Criptoativos (MiCA) da União Europeia e atendeu às novas regras de listagem do Canadá em 2024.
Em 2024, a Tether anunciou lucros líquidos superiores a US$ 13 bilhões, com US$ 7 bilhões derivados de títulos do Tesouro dos EUA e acordos de recompra, e US$ 5 bilhões da valorização não realizada de participações em ouro e Bitcoin. Em 2023, a Tether relatou um lucro líquido de US$ 6,2 bilhões.

O valor total de mercado da USDT é de US$ 140 bilhões no início de 2025, em contraste com US$ 56 bilhões de valor de mercado da USDC.
No primeiro semestre de 2023, a Circle reportou receitas de US$ 779 milhões, superando a receita total de US$ 772 milhões para o ano inteiro de 2022. A empresa gerou US$ 219 milhões em lucro ajustado antes de juros, impostos, depreciação e amortização (EBITDA) durante o primeiro semestre de 2023, excedendo os US$ 150 milhões registrados para todo o ano de 2022.
Stablecoins vs. moedas digitais de bancos centrais
Enquanto as stablecoins são emitidas por entidades privadas e indexadas a moedas fiduciárias, as Moedas Digitais de Bancos Centrais (CBDCs) são formas digitais da moeda fiduciária de um país emitidas diretamente por seu banco central.
Os projetos de CBDC se propõem a oferecer uma alternativa digital ao dinheiro físico, aumentando a eficiência dos sistemas de pagamentos e a inclusão financeira. Em contraste, as stablecoins operam em redes descentralizadas e podem ser usadas globalmente, muitas vezes fora das estruturas regulatórias tradicionais.
As CBDCs são respaldadas pela total confiança e crédito do governo emissor. De certa forma, elas são o oposto da ideia que originou o Bitcoin, mas, como este, são armazenadas em um livro-razão descentralizado (controlado por um governo) para facilitar a automação dos fluxos de pagamento, melhorar a eficiência das infraestruturas do mercado financeiro e aprimorar a conformidade para pagamentos e remessas internacionais.
O governo dos EUA proibiu recentemente a criação de uma CBDC de dólar, refletindo preocupações sobre a estabilidade financeira, a privacidade individual e o potencial deslocamento do sistema bancário tradicional.
Os críticos argumentam que uma CBDC poderia conceder ao governo federal acesso sem precedentes às transações financeiras dos indivíduos, potencialmente levando ao aumento da vigilância e à erosão dos direitos de privacidade. Nesse contexto, o país corre o risco de ceder a liderança no espaço da moeda digital a outras nações, como China e membros da União Europeia, que estão avançando em suas próprias iniciativas de CBDC.
Desenvolvimentos regulatórios
Os EUA têm dois projetos de lei sobre stablecoins em andamento – um na Câmara chamado “STABLE Act” e outro no Senado chamado “Genius Act”. Essas iniciativas buscam estipular diretrizes para os emissores de stablecoin no tocante a requisitos de autorização, gestão de risco operacional e suficiência de reservas.
O Stable Act é mais rigoroso em relação aos requisitos de ativos que podem servir de reserva. O projeto de lei do Senado permite um rol mais abrangente, incluindo money market funds e repurchase agreements. Requisitos mais rigorosos são potencialmente mais benéficos para a Circle, ao mesmo tempo em que causariam alguns problemas para a Tether, com reservas reportadas com menor conformidade sob o Stable Act.
Com esses desenvolvimentos regulatórios em mente, o mercado está observando atentamente os protocolos DEX (que pagam juros sobre depósitos de stablecoin por meio de empréstimos ou staking) ou projetos recém-anunciados que oferecem rendimento “nativo” sobre participações em stablecoin, como o Ethena.
Uma questão fundamental é a qualificação desses produtos como valores mobiliários, particularmente à luz do escrutínio regulatório que levou a ações de execução contra BlockFi e Celsius, que ofereciam contas cripto com juros sem o registro adequado, e foram punidas pela SEC e, depois disso, quebraram.
O futuro das stablecoins dependerá em grande parte da evolução da regulação e da convergência entre o mercado tradicional e o mercado cripto. Em um próximo texto, explorarei como o Brasil está moldando seu arcabouço regulatório para stablecoins.
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