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Fiscalização e contencioso do IBS e CBS: fragmentação e insegurança jurídica

Autor

  • é sócio fundador do escritório Brigagão Duque Estrada – Advogados presidente nacional do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa) presidente honorário da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) vice-presidente do Fórum Permanente de Direito Tributário da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro former member of the Executive Committee of The International Fiscal Association (IFA) membro do Conselho de Altos Estudos de Finanças e Tributação (Caeft) da Associação Comercial de São Paulo membro do Conselho de Administração da Câmara Britânica (Britcham) diretor da Federação das Câmaras de Comércio do Exterior (FCCE) e professor na pós-graduação de Direito Tributário da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

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26 de fevereiro de 2025, 17h14

O contexto da reforma tributária

Na origem dos debates, a reforma tributária foi concebida com premissas que trouxeram à sociedade brasileira a esperança de que o caos que  há décadas a assolava finalmente daria lugar a um sistema mais eficiente e racional.

Entre os compromissos assumidos estavam: (a) simplicidade, com a redução do número de tributos por meio da criação de dois IVAs em substituição a cinco outras exações (IPI, ICMS, ISS, PIS e Cofins); (b) adoção de não cumulatividade ampla e irrestrita, garantindo que o novo imposto incidisse apenas sobre o valor efetivamente agregado em cada operação; (c) regulamentação das relações tributárias por meio de uma legislação única, simples e objetiva; (d) tributação no destino, para impedir a guerra fiscal e tornar o sistema brasileiro compatível com os de aproximadamente 175 países que adotam o IVA; (e) desoneração das exportações; (f) neutralidade, que evitasse aumento de carga e que benesses de natureza tributária causassem distorções na alocação de recursos pelos contribuintes; (g) cashback, consistente na devolução do IBS e da CBS incidentes no consumo de famílias de baixa renda; (h) racionalização das regras de cumprimento de obrigações acessórias; (i) melhoria no relacionamento entre contribuintes e a administração pública; e (j) redução de conflitos e racionalização do contencioso administrativo e judicial.

As promessas parcialmente cumpridas

Entre as promessas feitas, duas parecem se encaminhar, ainda que parcialmente, na direção dos fins almejados: a racionalização das obrigações acessórias e a tributação no destino. Para que sejam efetivamente atingidos, contudo, há que se ter cautela.

De fato, no que diz respeito à primeira delas, muita atenção haverá de ser dada à forma como o cumprimento das obrigações acessórias será efetivamente definido na regulamentação que está por vir. Dela dependerá o aprimoramento dessas regras.

No que diz respeito à  tributação no destino, será exigida ainda mais atenção, tendo em vista que, na forma em que foi normatizada pela EC 132/23, ela poderá gerar anomalias muito  semelhantes às que levaram o STF a declarar inconstitucionais certas regras que objetivavam o mesmo fim em relação ao ISS (vide ADI 5.835).

Os compromissos não alcançados

Quanto aos demais compromissos da reforma, eles restaram severamente comprometidos. Senão, vejamos:

(a) Simplicidade: a reforma não reduziu o número de tributos, apenas os reconfigurou. No lugar de cinco tributos (IPI, ICMS, ISS, PIS e Cofins), foram criados outros cinco (IBS, CBS, IS, o sobrevivente IPI e a Contribuição sobre Produtos Primários e Semielaborados, incluída na PEC 45 quando já iniciada a votação do seu texto na Câmara dos Deputados);

(b) Não cumulatividade: ela foi drasticamente comprometida pela forma como regulada. O crédito do contribuinte foi condicionado ao pagamento do imposto pelo elo anterior da cadeia – algo inexistente em qualquer outro país; instituiu-se o “split payment”, presente em apenas 13 dos 175 países que adotam o IVA, com dois dos seis países europeus que o implementaram já tendo desistido da ideia, seguindo recomendação da própria União Europeia; e, por fim, deu-se tratamento inadequado aos bens de uso e consumo pessoal, que além de não gerarem créditos, passaram a se sujeitar à tributação quando transmitidos a partes relacionadas, em flagrante ofensa ao princípio da não cumulatividade.

(c) Legislação única e objetiva: o volume de dispositivos normativos é  excessivo. Apenas a LC 214/25 já conta com mais de 500 artigos, muitos deles com dezenas de parágrafos e alíneas, redigidos de forma confusa e, por vezes, contrários à Constituição. Na elaboração dos anteprojetos dos quais resultaram essa LC, as fazendas federal, estadual e municipal (únicas convidadas para a sua elaboração) trouxeram para o bojo dessa legislação muito do que há na regulamentação dos burocráticos IPI e ICMS.

(d) Desoneração das exportações: A interpretação inadequada da norma constitucional criadora do IS (art. 153, parágrafo 6º, inciso VII, da EC 132/23) fundamentou, equivocadamente, a tributação de minérios exportados pela LC 214/25.

(e) Neutralidade: O setor de serviços sofreu aumento avassalador de carga tributária, com elevações de centenas de pontos percentuais. Além disso, a criação de inúmeros regimes especiais gerou distorções e privilégios setoriais que afetarão as decisões relativas à alocação de recursos e investimentos.

(f) Cash back: o percentual de devolução dos tributos ficou muito aquém do mínimo necessário a que houvesse efetiva desoneração das famílias de baixa renda.

Quanto aos dois últimos compromissos entre aqueles listados (melhor relacionamento com a administração pública – leia-se fiscalização – e racionalização do contencioso), eles  se encaminham para a criação de um caos bastante superior ao que já vivemos. Explico.

Dois tributos gêmeos

A ideia originalmente proposta pelos autores da PEC 45/19 (da qual  resultou a EC 132/23) era o de que os tributos incidentes sobre o consumo no velho regime fossem todos substituídos por apenas um, o IBS.

Com o desenvolvimento dos debates e em decorrência da pressão impingida pelos estados e municípios para que, em respeito ao princípio federativo, fossem mantidas competências autônomas de tributação, os autores e os parlamentares responsáveis por relatar os projetos relativos à Reforma Tributária passaram a propor a instituição de um IVA dual, nos moldes da tributação adotada pelo Canadá e pela Índia, com a criação da CBS (federal) e do IBS (estadual e municipal).

Spacca

Assim foi feito, mas com a determinação de que, em nome da perseguida simplicidade, ambos os tributos seriam gêmeos e que, consequentemente, compartilhariam de regras absolutamente comuns sobre fato gerador, base de cálculo, sujeição passiva, regimes específicos, não cumulatividade etc.

Essa uniformização acabou vingando no novo ordenamento jurídico instituído e representou indiscutível avanço em direção à redução da complexidade e insegurança jurídica que sempre marcaram a tributação do consumo.

A necessidade de interpretação única

Note-se, contudo, que, para que esse objetivo de efetiva simplificação e segurança jurídica seja realmente alcançado, não basta que o ordenamento que regula ambos os tributos seja único. É essencial, e até mais relevante, que a sua interpretação pela(s) administração(ões) tributária(s) e o julgamento das contendas dele resultantes sejam realizados pelo menor número possível de órgãos – idealmente, por um só.

Se forem diversos aqueles que interpretarão esse ordenamento, poderemos estar ingressando num cenário em que, tendo em vista que a tributação ocorre no destino, o contribuinte estará submetido, num primeiro momento, ao entendimento da União, de dezenas de estados e milhares de municípios.

E é justamente isso que promovem as regras de fiscalização e contencioso propostas pelo PLP 108/23, em trâmite no Congresso Nacional.

A fiscalização fragmentada

De fato, as novas regras permitem que a fiscalização, cobrança e inscrição em dívida ativa sejam realizadas por cada unidade da Federação (UF) competente, expondo o contribuinte ao risco de múltiplas autuações de fiscais vinculados a todas as UFs onde as mercadorias ou serviços tenham sido destinados.

Embora a EC 132/23 tenha permitido a integração dessas funções entre administrações tributárias, o Congresso, ao votar o projeto do qual resultou a LC 214/25 (PLP 68/24), limitou (1) a delegação mutua das atividades de fiscalização e de julgamento do contencioso a casos de pequeno valor, e (2) estabeleceu regras de coordenação de fiscalizações concomitantes somente no caso em a fiscalização de mais de dois entes federados recaia sobre o mesmo fato gerador, mesmo período e mesmo sujeito passivo.

No caso em que os elementos acima elencados não sejam coincidentes (por exemplo, fiscalização de períodos distintos, ainda que no mesmo exercício), o contribuinte estará recebendo no seu estabelecimento representantes das três esferas da Federação.

Os contenciosos administrativo e judicial fragmentados

O contencioso administrativo reflete a fragmentação proposta para a fiscalização.

A CBS seguirá o modelo federal, com julgamentos no Carf, enquanto o IBS será julgado por câmaras (de primeira e segunda instâncias) espalhadas pelas 27 UFs. Os entendimentos gerados por decisões somente serão alinhados por uma instância de uniformização, que somente os examinará após o longo trâmite dos respectivos processos administrativos pelas instâncias inferiores, acima referidas.

Para conciliar divergências entre o Carf (CBS) e os órgãos do contencioso administrativo relativos ao IBS, criou-se o Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias, formado por representantes das fazendas federal, estadual e municipal, sendo que suas decisões serão vinculantes para toda a administração tributária. Somente a partir dessas decisões, o contribuinte terá noção de qual é o entendimento final das administrações tributárias relativo às questões que constituam o seu objeto.

Há, ainda, um sério agravante: esse Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias, pasmem, não será paritário. O contribuinte não terá representação na instância que decidirá, com efeito vinculante, as regras que regerão suas relações com o fisco, ressurgindo daí um modelo já há muito extinto no plano federal: o recurso hierárquico.

Mas as intempéries não terminam por aqui. O contencioso judicial enfrentará desafios ainda maiores, tendo em vista que, mantidas as regras como hoje vigem, a CBS será julgada pela Justiça Federal e o IBS, por todos os Tribunais de Justiça dos estados onde localizados os destinatários das operações realizadas.

Portanto, a depender da atividade exercida – por exemplo, contribuintes cuja comercialização de mercadorias e/ou serviços seja feita com consumidores que estejam localizados em vários estados e municípios –, nas ações preventivas por eles ajuizadas, terá de haver litisconsórcios passivos necessários abrangentes de todos os estados e municípios para os quais tenham sido direcionadas as operações realizadas.

E o autor da ação ainda poderá escolher o foro em que a discussão judicial se dará, entre todos aqueles que corresponderem aos domicílios dos litisconsortes.  Isso possibilitará que as respectivas jurisprudências influenciem essa escolha, e que estados e municípios sejam processados em foros deles distantes.

Conclusão

A falta de uma abordagem integrada na administração e nos julgamentos administrativos e judiciais desses tributos poderá criar um sistema ainda mais complexo, oneroso e caótico que o anterior.

De fato, apesar de serem alegadamente gêmeos esses tributos e instituídos por uma única legislação, serão múltiplas as interpretações de uma só regra, com vieses os mais variados, culminando ainda, em nível administrativo, com uma harmonização vinculante, ocorrida muito tempo após ao início da discussão do tema, e, ainda, feita por um órgão do qual os contribuintes não participam.

Que legitimidade terá essa decisão?

Em suma, se o que se quer é atingir os objetivos de simplicidade e eficiência propostos desde o início das discussões da reforma tributária, é essencial revisar as regras de competência referidas neste despretensioso artigo, bem como promover maior integração entre os entes federativos.

Sem essas mudanças, o novo modelo tributário corre o risco de repetir os erros do passado, frustrando as expectativas de modernização e justiça tributária.

Autores

  • é presidente nacional do Cesa (Centro de Estudos das Sociedades de Advogados); presidente honorário da ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro); vice-presidente do Fórum Permanente de Direito Tributário da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro; ex-membro do Executive Committee of The International Fiscal Association (IFA – 2017/18); membro do conselho de administração da Câmara Britânica (Britcham); diretor da Federação das Câmaras de Comércio do Exterior (FCCE); membro do Caeft (Conselho de Altos Estudos de Finanças e Tributação), da Associação Comercial de São Paulo; professor da Faculdade de Direito da Universidade Cândido Mendes (1993/2004); professor na pós-graduação de Direito Tributário da Fundação Getulio Vargas – FGV; sócio fundador do escritório Brigagão, Duque Estrada — Advogados.

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