Admissibilidade de recurso especial em matéria de ágio: a importância dos 'apelidos'
26 de fevereiro de 2025, 8h00
Em nosso último artigo, aqui, tratamos de aspectos introdutórios da admissibilidade de recurso especial, bem como do seu exame com relação à matéria de ordem pública. Naquela oportunidade, constatamos que houve uma evolução na compreensão do próprio papel desempenhado pela Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), que atualmente figura, de fato, como uma instância especial responsável pela pacificação de conflitos interpretativos — e não uma “terceira instância” recursal.
Dando continuidade ao tema, apresentaremos complexidades adicionais relacionadas ao exame de admissibilidade e, em especial, à demonstração da divergência interpretativa. E, para tanto, abordaremos a admissibilidade de recurso especial em matéria de ágio — um tema tão controverso quanto recorrente nas sessões da 1ª Turma da CSRF.
Como se verá a seguir, nos casos que envolvem amortização fiscal do ágio, o exame de admissibilidade do recurso especial é ainda mais trabalhoso, tendo em vista principalmente as distintas operações societárias capazes de gerar seu reconhecimento na investidora. E, nesse contexto, a atribuição de “apelidos” aos ágios pode facilitar a escolha do paradigma adequado e a admissibilidade do recurso especial.
Aspectos adicionais relativos aos pressupostos de admissibilidade do recurso especial
Como visto, são basicamente três os pressupostos de admissibilidade do recurso especial: (1) tempestividade; (2) prequestionamento; e (3) divergência interpretativa.
A tempestividade não enseja maiores divergências, não havendo nada a ser adicionado em relação ao já tratado anteriormente.
No que se refere ao prequestionamento, com visto, o recorrente deve demonstrar que as matérias recorridas foram enfrentadas no acórdão, no despacho que rejeitou embargos ou no acórdão de embargos. E matéria recorrida é diferente de tese ou infração, de forma que uma mesma infração pode se desdobrar em diversas matérias, que, por sua vez, podem comportar várias teses.
Aqui, vale trazer um exemplo para melhor ilustrar a diferença: a infração “adições não computadas na apuração do lucro real – despesa indedutível” pode levar o contribuinte a questionar, por meio de recurso especial, a matéria “ágio interno”, que, por sua vez, pode ser fundamentada em diversas teses, como (1) validade do ágio gerado entre partes relacionadas; (2) inexistência de vedação legal à amortização do ágio interno até o advento da Lei nº 12.973/2014; (3) efeito indutor do artigo 36 da Lei nº 10.637/2002; e (4) economia tributária como propósito negocial válido. Cada matéria precisa ser prequestionada para que seja cabível a interposição do recurso especial.
Por fim, com relação à divergência interpretativa – o mais controverso dos pressupostos de admissibilidade –, reiteramos que deve haver similitude fática e jurídica entre o acórdão recorrido e o paradigma. E, na verificação da similitude, as circunstâncias relevantes para a decisão contida no recorrido devem estar presentes no paradigma – o que, como se verá a seguir, é causa de não conhecimento de muitos recursos em matéria também de ágio.

Maria Carolina Maldonado
Ademais, a demonstração da divergência interpretativa deve se dar por meio da indicação de até duas decisões [1] por matéria [2]. E, aqui, mais uma vez, é importante compreender a diferença entre tese e matéria, já que a apresentação de mais de dois paradigmas para a mesma matéria tem por consequência o descarte dos acórdãos excedentes [3].
Uma mesma matéria pode ser julgada com base em mais de um fundamento autônomo, de forma que qualquer um deles seja suficiente para justificar a decisão do colegiado. Nessa hipótese, para que o recurso especial seja admitido com relação a tal matéria, é preciso que se evidencie a divergência interpretativa com relação a todos os fundamentos. Isso porque, do contrário, a reforma do recorrido com relação a um fundamento não seria suficiente para alterar o resultado do julgamento [4].
É preciso, ainda, distinguir o que foi considerado um fundamento autônomo no enfrentamento da matéria, daquilo que foi um mero reforço argumentativo. Enquanto o primeiro deve ser alvo de demonstração da divergência para que o recurso especial seja admitido, o segundo não tem o condão de impedir o seu seguimento.
Nos recursos especiais envolvendo matérias relacionadas a operações societárias complexas – como aquelas que geram amortização fiscal do ágio, por exemplo –, é comum que o exame de admissibilidade seja trabalhoso e controverso. Isso porque, em tais casos, as razões de decidir, tanto do recorrido, como do paradigma, muitas vezes, se fundam não apenas em aspectos jurídicos, mas nas minúcias do caso concreto. E, então, por vezes, todos os aspectos teóricos aqui expostos precisam ser enfrentados quando da admissibilidade do recurso
O ágio e seus ‘apelidos’
Inicialmente, na aquisição de investimento avaliado pelo valor de patrimônio líquido, considerava-se ágio a diferença entre o custo de aquisição do investimento e o valor do patrimônio líquido da investida. À época, somente o ágio fundamentado na expectativa de rentabilidade futura da investida era passível de amortização fiscal e, ainda assim, somente se houvesse confusão patrimonial entre investidora e investida, por meio de incorporação, fusão ou cisão [5].
Com o advento da Lei nº 12.973/14, passou a ser denominado de ágio a diferença entre o custo de aquisição do investimento e o somatório do valor do patrimônio líquido adquirido e da mais valia dos ativos [6]. Tal grandeza continuou sendo passível de amortização fiscal na hipótese de confusão patrimonial entre investidora e investida [7].
Apesar de o conceito de ágio ser apenas um, diversas podem ser as operações societárias que resultam na sua amortização fiscal. Em razão disso, comumente, para fins didáticos, são atribuídos “apelidos” aos ágios de acordo com as características das operações societárias que culminaram com o seu registro, como, por exemplo, “ágio interno”, “transferência de ágio”, “internalização de ágio”, “ágio empresa-veículo” ou “ágio compra-alavancada”.
A importância dos ‘apelidos’ no exame de admissibilidade
Para ilustrar a importância prática dos “apelidos” no exame de admissibilidade de recurso especial em matéria de ágio, importa invocar, inicialmente, o Acórdão nº 9101-006.848, julgado, por unanimidade, em 07.03.24. Na oportunidade, a 1ª Turma da CSRF conheceu parcialmente do recurso especial do contribuinte com relação à matéria “indevida qualificação do ágio como ‘ágio interno’” e, no mérito, deu provimento parcial ao recurso para reformar a premissa do recorrido quanto à classificação do ágio como “interno”. Isso porque, em síntese, entenderam os julgadores que o caso concreto, na realidade, versava também sobre “ágio antes surgido na operação realizada entre terceiros e posteriormente transferido”, isto é, “transferência de ágio”.
O “ágio interno” nada mais é do que o ágio originado em operações realizadas entre partes dependentes. Embora pareça simples [8], pode-se denominar de “ágio interno” tanto aquele decorrente de uma reavaliação de ativos – por vezes, chamado de “ágio de si mesmo” –, como de uma operação societária original, realizada entre partes não relacionadas, posteriormente, refletida em uma transação dentro de um grupo econômico. Já a “transferência do ágio” decorre da operação por meio da qual se transfere, para outra empresa do grupo, que pode ser uma holding constituída para tal fim, a participação societária com ágio adquirida de terceiro independente.
Os “apelidos” se tornam especialmente relevantes na verificação da divergência interpretativa, de forma que, em regra, o recurso especial deve indicar paradigmas que analisem ágios classificados sob o mesmo “apelido”. No entanto, é comum, por exemplo, que sejam apresentados paradigmas de “transferência de ágio” para reformar acórdão que versa sobre “ágio empresa-veículo”. Isso porque, em ambos, o contribuinte se utiliza de uma empresa – em regra, constituída para tanto e, por isso, indistintamente denominada pela fiscalização de “veículo” – para possibilitar a amortização fiscal do ágio. A diferença se dá, principalmente, com relação ao papel que a dita “empresa-veículo” desempenha no conjunto de operações societárias que resulta na amortização fiscal do ágio.
Como visto, em uma operação de “transferência de ágio”, após a aquisição da participação societária com ágio, a adquirente “transfere” a referida participação para outra empresa, denominada de “veículo”, que, ao sofrer uma incorporação, fusão ou cisão, passa a amortizar o ágio que lhe foi transferido. Por sua vez, em uma operação de “ágio empresa-veículo”, o próprio “veículo” adquire a participação societária com ágio de um terceiro independente, isto é, a investidora transfere, a título de capital ou dívida, para a “veículo” os recursos necessários para a aquisição da participação e, adquirido o investimento, ocorre a confusão patrimonial entre a “veículo” e a adquirida, dando ensejo à amortização fiscal do ágio. Portanto, fica evidente a ausência de similitude fática entre operações de “transferência de ágio” e “ágio empresa-veículo”, como ocorreu, por exemplo, no Acórdão nº 9101-005.790, julgado em 8/10/2021, e no Acórdão nº 9101-006.869, julgado em 8/3/2024.
No entanto, a depender das peculiaridades contidas no recorrido ou no paradigma, é possível que não haja similitude fática mesmo em se tratando de julgados sobre ágios com o mesmo “apelido”. É o que ocorre, por exemplo, nos casos que versam sobre “ágio empresa-veículo” e o paradigma invocado é o Acórdão nº 9101-002.213, julgado em 3/2/2016 [9]. No caso, a “empresa veículo” foi utilizada para buscar a amortização fiscal do ágio no Brasil, quando os recursos necessários à aquisição da participação societária advêm do exterior e são utilizados para pagamento a outra pessoa jurídica também no exterior. Essa circunstância, que foi indispensável para a conclusão dos julgadores naquele caso, em regra, não se verifica nas hipóteses em que uma empresa, no Brasil ou no exterior, constitui uma empresa no país e transfere, a título de capital ou de dívida, os recursos necessários à aquisição da participação societária.
As próprias características do “veículo”, quando importarem aos julgadores do recorrido ou do paradigma, podem levar à dessemelhança entre dois casos que versam igualmente sobre “ágio empresa-veículo”. É o que ocorre, por exemplo, com a invocação do Acórdão nº 9101-002.962, julgado em 4/2/2017, como paradigma. No caso, a artificialidade na constituição do “veículo” foi essencial para que se concluísse pela ausência de confusão patrimonial entre investidora e investida. Com isso, tal paradigma é frequentemente rejeitado quando a veículo possui substância ou o acórdão é omisso nesse ponto [10].
A ausência de similitude em ágios com o mesmo “apelido” também se verifica nos recursos que tratam sobre “transferência de ágio” e o paradigma invocado é o Acórdão nº 9101-003.609, julgado em 05.06.2018. Isso porque, naquele caso, se admitiu a transferência do ágio para a dita “empresa-veículo” em razão de imposições regulatórias da CVM e Aneel, que justificaram a realização da operação como procedida pelo contribuinte [11][12].
Por fim, mesmo nos processos envolvendo ágio decorrente de arranjos societários complexos, o conhecimento do recurso especial pode ser simples quando os acórdãos recorrido e paradigma versam sobre a mesma operação, praticada pelo mesmo contribuinte, divergindo, apenas, no que se refere ao período autuado – o que é muito comum, já que o mesmo ágio pode ser amortizado para fins fiscais por um longo período. Contudo, há casos nos quais as diferentes defesas apresentadas acabam por provocar os colegiados do Carf a se manifestar sobre aspectos jurídicos distintos, inexistindo em um deles decisão que pudesse caracterizar divergência em relação a fundamento determinante ao outro julgado. Isto é, são tantas as variáveis que podem impactar o exame de admissibilidade de um recurso especial que, mesmo diante de autuações quase idênticas, envolvendo o mesmo contribuinte, pode não haver a exigida divergência interpretativa. Nesse sentido é, por exemplo, o Acórdão nº 9101-006.357, julgado em 8/11/2022.
Conclusão
O exame de admissibilidade é uma importante etapa na análise dos recursos especiais – que pode ser particularmente complexa em matéria de ágio. A classificação dos ágios de acordo com “apelidos”, que refletem as características das operações societárias que culminaram com o seu registro, pode auxiliar tanto na eleição dos paradigmas, como na verificação da divergência interpretativa.
No entanto, ainda que recorrido e o paradigma versem sobre ágio classificado sob o mesmo “apelido” ou até sobre o mesmo ágio, decorrente de uma única operação societária, é possível que não haja similitude fática entre os casos. Tais situações confirmam a importância da escolha cuidadosa do paradigma no momento da interposição do recurso especial.
[1] É importante ressaltar que não servem como paradigma as resoluções ou despachos incidentais sem caráter decisório. Além disso, o Ricarf lista no §12 do art. 118 as diversas situações nas quais os acórdãos não servem de paradigma, como, por exemplo, quando tenham sido reformados ou objeto de desistência ou renúncia do interessado, na matéria que aproveitaria ao recorrente, na data da interposição do recurso.
[2] Art. 118, §6º do Ricarf.
[3] Art. 118, §7º do Ricarf.
[4] No mesmo sentido é a Súmula 126 do STJ: “É inadmissível recurso especial, quando o acórdão recorrido assenta em fundamentos constitucional e infraconstitucional, qualquer deles suficiente, por si só, para mantê-lo, e a parte vencida não manifesta recurso extraordinário”.
[5] Artigos 7º e 8º da Lei nº 9.532/97.
[6] Art. 20 do Decreto-lei nº 1.598/77 com a redação dada pela Lei nº 12.973/14.
[7] Art. 22 da Lei nº 12.973/14.
[8] A complexidade do tema é tamanha que doutrina e jurisprudência subdividem o “ágio interno” em “ágio interno com causa ou real” do “ágio interno sem causa ou artificial. Nesse sentido: TAKATA, Marcos Shigueo. Ágio interno sem causa ou “artificial” e ágio interno com causa ou real – distinções necessárias. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; e LOPES, Alexsandro Broedel (coord.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2012. v. 3, p. 194-214.
[9] Nesse sentido são, por exemplo, o Acórdão nº 9101-006.902, julgado em 04.04.2024; e o Acórdão nº 9101-006.251, julgado em 10.08.22.
[10] Nesse sentido são, dentre outros, o Acórdão nº 9101-007.009, julgado em 05.06.2024; o Acórdão nº 9101-006.944, julgado em 07.05.2024; e o Acórdão nº 9101-006.533, julgado em 05.04.2023.
[11] Com relação ao Acórdão nº 9101-003.609, importa fazer uma ressalva: a decisão se deu por maioria, mas o Conselheiro Fernando Brasil de Oliveira Pinto esclareceu, em sua declaração de voto, que o fato de haver evidências de que a estrutura adotada não gerou vantagem tributária foi determinante para suas conclusões.
[12] Um exemplo de caso em que isso ocorreu é o Acórdão nº 9101-006.291, julgado em 14.09.2022.
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