Executive Order 14.215: abolição das agências reguladoras independentes nos EUA?
25 de fevereiro de 2025, 7h01
Em 18 de fevereiro deste ano, o presidente Donald Trump editou a Executive Order (EO) 14.215 (Ensuring Accountability for All Agencies) [1], a qual, por alterar aspectos importantes da relação entre o Poder Executivo e as agências administrativas, provavelmente demandará um pronunciamento da Suprema Corte dos Estados Unidos, cabendo observar as suas repercussões.

Sobre o tema, rememore-se que a relação entre o Poder Executivo e as agências reguladoras independentes tem sido uma questão central no direito administrativo dos EUA desde a criação dessas entidades. Tais órgãos administrativos foram desenvolvidos para atuar com autonomia e alcançar decisões baseadas em critérios técnicos e especializados. No entanto, a sua independência tem sido objeto de debates ao longo dos anos, já que ela se opõe ao controle e supervisão exercidos pelo Presidente da República sobre a administração pública federal. Trata-se de um tópico com evidentes implicações constitucionais, levando a Suprema Corte a estabelecer importante precedente ao julgar o litígio Humphrey’s Executor v. United States [2].
Independência administrativa em Humphrey’s Executor v. United States
Em 1933, o presidente Franklin D. Roosevelt pediu a renúncia de William Humphrey, comissário da Federal Trade Commission (FTC), em razão de sua oposição contínua às orientações governamentais, especialmente no campo da defesa da concorrência. Diante da recusa do comissário em deixar o cargo, Roosevelt o exonerou, justificando o ato com base nas divergências de Humphrey em relação às diretrizes presidenciais [3]. Para tanto, Roosevelt apoiou-se em jurisprudência da Suprema Corte[4] que estabeleceu ser prerrogativa exclusiva do Poder Executivo remover os principais servidores federais investidos de poder estatal [5].
Com a morte de Humphrey no ano seguinte, seu espólio requereu em juízo a anulação da demissão e o pagamento dos salários correspondentes. O litígio rapidamente chegou à Suprema Corte, que, em 1935, decidiu em favor do autor, apontando que o poder de criar órgãos administrativos com funções análogas às legislativas (rulemaking) e judiciais (adjudication) autorizava o Congresso a reduzir o controle do Poder Executivo sobre essas agências. No caso da FTC, esse limite decorria de constar na lei de sua criação que o presidente só poderia demitir seus comissários quando comprovada ineficiência, negligência ou má conduta no exercício do cargo.
O precedente Humphrey’s Executor v. United States tornou-se um relevante fundamento da constitucionalidade dos órgãos reguladores independentes nos EUA, estabelecendo um equilíbrio no sentido de que, respeitadas as áreas de atuação constitucionalmente reservadas ao presidente da República, cabe ao Congresso decidir quais agências serão ou não submetidas ao controle e supervisão do Poder Executivo.
Até recentemente, esse entendimento constitucional prevaleceu, mesmo diante da progressiva ampliação dos poderes de supervisão do Presidente da República sobre os órgãos administrativos, particularmente ao se utilizar de mecanismos de comando orçamentário e regulatório. Esse controle é notadamente efetivado por dois órgãos diretamente ligados à presidência da república: o Office of Management and Budget (OMB); e, nele localizado, o Office of Information and Regulatory Affairs (OIRA).
O OMB foi instituído em 1921 (como Bureau of Budget) com a tarefa de auxiliar o Presidente da República na preparação e controle da parcela do orçamento federal sob coordenação presidencial, a qual foi significativamente ampliada durante a gestão do presidente Richard Nixon. Após, em 1980, foi criado o OIRA dentro do OMB, com a missão de realizar análises de impacto regulatório quanto aos aspectos econômicos dos projetos normativos considerados de maior relevância [6]. Entretanto, a noção econômica de custo-benefício foi paulatinamente ampliada para exigir justificativas mais abrangentes e a maximização possível de outros benefícios, como equidade, dignidade humana e impactos distributivos [7].
As ações do OIRA refletem-se diretamente no poder regulamentar da administração pública, na medida em que as normas consideradas de maior impacto regulatório devem ser conhecidas e obter a prévia aprovação desse órgão. No entanto, agências reguladoras independentes, como a Securities Exchange Commission (SEC) e o Federal Reserve Board (FED), que atendem aos parâmetros estabelecidos pelo referido precedente da Suprema Corte, mantiveram-se isentas desse dever, preservando sua independência em relação ao Poder Executivo.
Potencial apreciação da constitucionalidade da EO 14.215 pela Suprema Corte
No Direito dos EUA, as Executive Orders incorporam normas editadas pelo Presidente da República com base no seu poder-dever de garantir que a Constituição e as leis sejam fielmente executadas, pelo que o disposto nas EO’s deve ser obrigatoriamente obedecido. Com a promulgação da EO 14.215, a dinâmica de independência administrativa das agências reguladoras foi alterada, pois essa norma expressamente estabeleceu que todos os órgãos administrativos, exceto o FED e o Federal Open Market Committee (FOMC), na extensão de suas atribuições para conduzir a política monetária [8], deverão se submeter às diretrizes do OMB e do OIRA. Conforme disposto nessa Ordem:
“Portanto, para melhorar a administração do ramo executivo do governo e aumentar a responsabilidade dos funcionários com atribuição regulatória perante o povo americano, deve ser a política do Poder Executivo garantir a supervisão e o controle presidencial de todo o ramo executivo. Além disso, todas as agências e departamentos executivos, incluindo as assim chamadas agências independentes, deverão submeter à revisão do Escritório de Informação e Assuntos Regulatórios (OIRA), pertencente ao Gabinete Executivo do Presidente, todas as propostas finalizadas de ações regulatórias significativas, antes de publicá-las no Registro Federal” [9].
Embora a EO 14.215 pareça, à primeira vista, divergir dos precedentes constitucionais estabelecidos, é importante destacar a tendência da atual Suprema Corte em fortalecer o Presidente da República e reduzir as atribuições da administração pública federal em face dos demais Poderes.
Nos últimos anos, a Suprema Corte reduziu o poder de o Congresso estabelecer órgãos independentes que não adotem a estrutura de direção colegiada (multimember commissions) [10] e afastou a possibilidade de administrative law judges serem selecionados por concurso, determinando que a sua nomeação ocorra por escolha do Poder Executivo [11]. Além disso, relativamente às atribuições da administração pública, a Suprema Corte limitou o poder de o Congresso delegar competências a órgãos administrativos [12]; determinou que as penalidades decididas pela administração pública devem ser aplicadas com a necessária interveniência do Judiciário, nos casos em que a Constituição prevê o direito do réu a ser julgado por júri popular [13]; e reverteu o precedente Chevron [14].
Embora seja muito difícil prever a mudança ou a manutenção de entendimentos de Tribunais, ao se considerar o contexto dessas significativas mudanças, não é certo que a Suprema Corte manterá a jurisprudência vigente sobre a independência das agências reguladoras sob a alegação de se tratar de entendimento estabilizado por várias décadas (stare decisis).
Como observado, a EO 14.215 altera significativamente a relação entre o Poder Executivo e as agências reguladoras independentes nos Estados Unidos. Por conseguinte, sua promulgação também se consubstancia num chamado para que a atual composição da Suprema Corte reavalie o decidido em Humphrey’s Executor v. United States, despertando interesse em acompanhar como ela responderá a esse convite.
*Este artigo é obra de cunho acadêmico e não reflete necessariamente a posição das instituições nas quais o autor trabalha.
[1] Cf. a EO 14.215 no link https://www.govinfo.gov/content/pkg/FR-2025-02-24/pdf/2025-03063.pdf
[2] Humphrey’s Executor v. United States, 295 U.S. 602 (1935).
[3] Como manifestado pelo próprio Presidente Roosevelt ao comissário Humphrey: “I do not feel that your mind and my mind go along together on either the policies or the administering of the Federal Trade Commission.”
[4] Myers v. United States, 272 U.S. 52 (1926).
[5] Cf. The Appointments Clause of the U.S. Constitution.
[6] Cf. a EO 12.291/1981.
[7] Cf. as EO’s 12.291/1981 e 12.866/1993.
[8] A norma não esclarece os motivos de tal exceção entre as diferentes atividades administrativas regulatórias.
[9] No original: “Therefore, in order to improve the administration of the executive branch and to increase regulatory officials’ accountability to the American people, it shall be the policy of the executive branch to ensure Presidential supervision and control of the entire executive branch. Moreover, all executive departments and agencies, including so-called independent agencies, shall submit for review all proposed and final significant regulatory actions to the Office of Information and Regulatory Affairs (OIRA) within the Executive Office of the President before publication in the Federal Register.”
[10] Cf. Seila Law LLC v. Consumer Financial Protection Bureau, 591 U.S. 197 (2020).
[11] Cf. Lucia v. Securities and Exchange Commission, 585 U.S. 237 (2018).
[12] Cf. West Virginia v. Environmental Protection Agency, 597 U.S. 697 (2022).
[13] Cf. SEC v. Jarkesy, 603 U.S. 120 (2024).
[14] Cf. Loper Bright Enterprises v. Raimondo, 603 U.S. 369 (2024).
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