Desvendando os arcanos do Direito
24 de fevereiro de 2025, 13h20
A crônica acerca dos primeiros anos do curso jurídico de Olinda, bem assim de seu prosseguimento em Recife, destaca, dentre os mestres, Francisco de Paula Batista. Clóvis Beviláqua lhe dedica um largo tópico do Capítulo V do seu livro [1], enquanto Gláucio Veiga o faz em dois capítulos [2].

Recifense, Paula Batista formou-se ao final de 1833, com vinte e dois anos de idade, doutorando-se em abril de 1834, o que lhe permitiu, ainda neste ano, ser empossado como lente substituto, e, no seguinte, como lente catedrático. Permaneceu na docência por aproximadamente quarenta e seis anos até a sua jubilação em janeiro de 1881.
Suas contribuições doutrinárias consistiram em “Teoria e prática do processo civil” e “Compêndio de hermenêutica jurídica”, de 1855 e 1860, respectivamente, os quais, na síntese de Beviláqua, “são dois primores de síntese, onde se condensam, com firmeza e elegância, os conhecimentos jurídicos da época em que foram escritos e onde se encontram uma ciência exata e o tom de segurança dos doutrinadores conscientes do seu valor” [3].
Tomo como ponto de partida o segundo. Explico. É que relendo mais uma das inúmeras vezes “Hermenêutica e aplicação do Direito”, de Carlos Maximiliano, livro que me acompanha desde o segundo semestre dos tempos de universitário, por indicação do Professor Jales Costa, humanista inesquecível, pude ver, logo no prefácio de 1924, referência elogiosa do autor ao texto de Paula Batista [4], muito embora, logo após, contenha a crítica, um tanto quanto acerba, de que se encontrava em descompasso com a então realidade, devido à singularidade de se filiar à corrente tradicionalista, resistindo, assim, ao influxo avassalador de Savigny [5].
O primeiro aspecto ressaltado por Paula Batista[6] — e que talvez por isso lhe valeu a crítica de Maximiliano[7] — centra-se na própria definição de interpretação, havendo o primeiro considerado como “a exposição do verdadeiro sentido de uma lei obscura em sua redação, silenciosa ou duvidosa em relação aos fatos ocorrentes” [8]. Assim, aquela não teria cabimento sempre que a lei for clara, viva e precisa.
Isso porque, admitir-se o contrário, tal como Savigny, ao sustentar a necessidade de se interpretar toda e qualquer lei, no intuito de confrontá-las à vida real, “pode fascinar o intérprete, de modo a fazê-lo sair dos limites da interpretação para entrar no domínio da formação do Direito” [9]. Talvez o mestre do Recife já prenunciasse um ativismo desvairado nos tempos que correm.
Interpretações
Para Paula Batista divide-se a interpretação em autêntica e doutrinal [10], conforme emana da mesma autoridade que elabora a lei [11], ou advém daqueles que são incumbidos em aplicá-las. A diferença entre ambas está na circunstância de que a primeira é obrigatória, enquanto a segunda encontra o seu desenvolvimento no espírito do intérprete, haurindo a sua autoridade das razões que este esgrime. Por sua vez, o resultado da interpretação autêntica se denomina lei interpretativa, a qual se presume coeva da lei interpretada, “formando ambas, assim reunidas, um só e o mesmo corpo de disposições, sem todavia a lei interpretativa retrotrair, salvo os direitos adquiridos” [12].
Num toque de leveza, destaca o autor [13] três habilidades que devem necessariamente possuir o intérprete, para bom uso das regras legais. Inicialmente, é preciso probidade, para que haja sinceridade no empenho e esforço em procurar o sentido da lei, consoante os ditames da justiça e da razão, pois a improbidade tem por companheiras naturais a má-fé e a depravação. Em seguida, indispensável a ilustração, para que, dispondo de uma grande soma de conhecimentos, seja possível se alcançar todas as razões de duvidar e de decidir. À derradeira, impõe-se o critério de inteligência, a permitir que possa discernir o certo do provável, o aparente do real, o verdadeiro do falso, o essencial do acidental, dentre outros aspectos.
Reporta-se o autor [14] ao que denomina de elementos de interpretação, quais sejam o gramatical, o lógico e o científico. O primeiro, dizendo respeito à forma exterior da lei, enquanto os demais, à sua força íntima, seu espírito [15].
O gramatical, por dizer respeito à linguagem da lei, tem a sua influência na construção do texto, bem assim das diversas acepções das palavras, quais sejam a gramatical, usual, jurídica, geral ou particular, própria ou imprópria, ampliativa, taxativa ou exemplificativa, imperativa ou facultativa etc.
Por sua vez, o lógico tem a sua influência no raciocínio e na análise, mediante a qual decompõe-se o pensamento da lei, examinando-se a ordem e método seguido na distribuição das matérias e na sua redação por inteiro, de modo que se compreenda o antecedente pelo subsequente, explique-se as contradições, conciliando as disposições individuais da lei umas com as outras e com as de outras leis.
Já o científico, o mais vasto de todos, auxilia o lógico, fornecendo-lhe as premissas e dados, para o fim de se atingir o seu sentido normal e sem defeitos e para adotar, dentre os sentidos possíveis, aquele que exprime com a maior segurança possível a vontade do legislador. Engloba o direito natural, o direito público, a moral, a história das leis, a matéria sobre a qual versa a lei, e a ligação entre todas as leis.
No que diz respeito às regras de interpretação, é de se enfatizar a atenção do autor sobre a analogia, a qual deve incidir a casos novos e não previstos pela lei, fundando-se “não tanto na vontade do legislador deduzida de suas palavras, (mens legis) como na harmonia orgânica do direito positivo com o científico” [16].
Delineou o autor [17], à guisa de uma classificação, uma tríade, consistente na interpretação extensiva, restritiva e declarativa. Nesses termos, diz que “a extensiva como nos faz crer, que existem mais pensamentos, do que palavras; a restritiva menos pensamentos, do que palavras, e a declarativa nos esclarece simplesmente o texto enunciado por uma forma equívoca ou ambígua; mas todas elas têm por fim a aplicação racional da lei” [18].
Faz observações quanto a cada uma das modalidades. Para as leis ditas anormais, derrogatórias do direito comum, é de se acentuar que não são suscetíveis de extensão por analogia, porquanto: a) sendo leis excepcionais, fundam-se em considerações estranhas às razões do direito; b) o que se não contém em suas disposições formais, pertence ao direito comum; c) não se pode concluir do particular para o geral. A lição se encontra atualíssima, estando não somente consagrada legislativamente [19], mas também com repercussão no plano da doutrina constitucional [20].
A mesma consequência reservou às leis criminais e fiscais, de maneira que o intérprete não poderá ir além dos seus termos formais, não podendo os juízes usurpar a função legislativa, pois, “por identidade de motivos nas leis fiscais, nas quais, como nas criminais, domina o princípio científico: que o que a lei não ordena ou não proíbe se não pode exigir nem proibir” [21].
Idêntico ponto de vista diz o autor valer para a interpretação restritiva das leis criminais e fiscais, porquanto, uma vez caracterizado formalmente o crime, nada se pode aumentar nem diminuir. É que o fato ou configura crime segundo a sua individuação textual ou não é crime nenhum, raciocínio que vale para a exigência de impostos.
Quanto à declarativa, afirma que, por ser a mais natural, não comporta proibição, cabendo em todas as leis, sendo de notar que naquela, ao contrário da extensiva e restritiva, o pensamento não é conhecido e, portanto, a questão a decidir é a de designá-lo, já que o texto não poderá ficar sem aplicação, cabendo valer-se o intérprete de regras auxiliares.
Se não alcançou o autor o objetivo a que se propôs, qual seja o de seu livro servir de preleções às Faculdades de Direito do Império sobre tão importante matéria, o interessante é que não pretendeu restar imune a críticas, tal como afirmou no prólogo:
“Vai, pois, este livro ser lido, e criticado: critiquem-no sem comiseração, que não tenho o espírito enfermo de orgulho e vaidade. Devo, porém, dizer (e o digo conscienciosamente) que os poucos, que sabem o quanto custa estabelecer método e ordem nas doutrinas, e conhecem o poder mágico destas duas entidades, são os únicos, que podem ser meus críticos.” [22]
[1] BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. 3ª ed. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012, p. 455-460. A publicação original recua a 1927.
[2] História das Ideias da Faculdade de Direito do Recife. Recife: Editora Universitária da UFPE. Tratam dos Capítulo VII do vol. IV (p. 267-274) e do Capítulo III do vol. VII (p. 57-94), de 1984 e de 1993, respectivamente.
[3] BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. 3ª ed. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012, p. 455.
[4] Eis observação do autor: “Obra especial sobre Interpretação não se conhece, em português, nenhuma posterior à de Paula Batista, publicada há meio século. É um compêndio claro, conciso, digno do prestígio rapidamente granjeado na sua época” (SANTOS, Carlos Maximiliano Pereira dos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. X).
[5] Isso, contudo, não impediu que Carlos Maximiliano se reportasse no seu trabalho, por não menos que dezessete vezes, aos ensinamentos expostos por Paula Batista, algumas vezes os desenvolvendo.
[6] BAPTISTA, Francisco de Paula. Compêndio de hermenêutica jurídica. Recife: Tipografia Comercial de Geraldo Henrique de Mira & C., 1860, p. 5-6.
[7] SANTOS, Carlos Maximiliano Pereira dos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 35.
[8] BAPTISTA, Francisco de Paula. Compêndio de hermenêutica jurídica. Recife: Tipografia Comercial de Geraldo Henrique de Mira & C., 1860, p. 5.
[9] BAPTISTA, Francisco de Paula. Compêndio de hermenêutica jurídica. Recife: Tipografia Comercial de Geraldo Henrique de Mira & C., 1860, p. 6.
[10] BAPTISTA, Francisco de Paula. Compêndio de hermenêutica jurídica. Recife: Tipografia Comercial de Geraldo Henrique de Mira & C., 1860, p. 7.
[11] A esse respeito, a Constituição Imperial dispunha: “Art. 15. É da atribuição da Assembleia Geral (…) VIII. Fazer Leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las” (disponível em: www.planalto.gov.br).
[12] BAPTISTA, Francisco de Paula. Compêndio de hermenêutica jurídica. Recife: Tipografia Comercial de Geraldo Henrique de Mira & C., 1860, p. 7.
[13] BAPTISTA, Francisco de Paula. Compêndio de hermenêutica jurídica. Recife: Tipografia Comercial de Geraldo Henrique de Mira & C., 1860, p. 7-8.
[14] BAPTISTA, Francisco de Paula. Compêndio de hermenêutica jurídica. Recife: Tipografia Comercial de Geraldo Henrique de Mira & C., 1860, p. 8-19.
[15] Eis, inelutável, a transcrição seguinte: “Nas leis, como preceitos da razão eminentemente social, devemos achar três coisas; palavras, pensamentos, e exata conformidade destes pensamentos com a razão natural, justiça, ordem e bem geral, inseparáveis de todas as associações humanas. Os elementos de interpretação, por conseguinte, devem ser três: gramatical, lógico e científico” (BAPTISTA, Francisco de Paula. Compêndio de hermenêutica jurídica. Recife: Tipografia Comercial de Geraldo Henrique de Mira & C., 1860, p. 8).
[16] BAPTISTA, Francisco de Paula. Compêndio de hermenêutica jurídica. Recife: Tipografia Comercial de Geraldo Henrique de Mira & C., 1860, p. 26. A lição foi destacada por Clóvis Beviláqua (A função do intérprete, Revista Acadêmica, vol. 14, nº 1, p. 8, 1906), ao afirmar que tanto na analogia legal e a jurídica a inteligência do jurista procura revelar o direito latente, indo-se muito além da vontade do legislador.
[17] BAPTISTA, Francisco de Paula. Compêndio de hermenêutica jurídica. Recife: Tipografia Comercial de Geraldo Henrique de Mira & C., 1860, p. 33-38.
[18] BAPTISTA, Francisco de Paula. Compêndio de hermenêutica jurídica. Recife: Tipografia Comercial de Geraldo Henrique de Mira & C., 1860, p. 34.
[19] Ver o Código Civil português vigente: Artigo 11.º (Normas excepcionais) As normas excepcionais não comportam aplicação analógica, mas admitem interpretação extensiva (disponível em: www.diariodarepublica.pt).
[20] É a compreensão de Gouveia (GOUVEIA, Jorge Bacelar. O valor positivo do acto inconstitucional. Reimpressão – 2000. Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito, 1992, p. 21), para quem o artigo 11 do Código Civil, mesmo se encontrando numa codificação civil, há que ser generalizado a todos os ramos do direito português, incluindo o constitucional.
[21] BAPTISTA, Francisco de Paula. Compêndio de hermenêutica jurídica. Recife: Tipografia Comercial de Geraldo Henrique de Mira & C., 1860, p. 35.
[22] BAPTISTA, Francisco de Paula. Compêndio de hermenêutica jurídica. Recife: Tipografia Comercial de Geraldo Henrique de Mira & C., 1860.
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