Decisão do STF sobre reforma não é único fator para aumento dos processos trabalhistas
24 de fevereiro de 2025, 8h49
A Justiça do Trabalho registrou 2,1 milhões de novos processos protocolados na primeira instância em 2024, de acordo com o sistema estatístico do Tribunal Superior do Trabalho. Isso representa uma alta de 14,1% com relação a 2023, quando foram ajuizadas 1,85 milhão de ações. A decisão de 2021 do Supremo Tribunal Federal que livrou beneficiários da Justiça gratuita do pagamento de honorários periciais e advocatícios de sucumbência em processos trabalhistas ajuda a explicar o aumento ano a ano desde então. Porém, especialistas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico apontam diversos outros fatores que consolidam esse cenário.

Número de processos novos na Justiça do Trabalho subiu 14,1% em 2024
A reforma trabalhista de 2017 estabeleceu que todo trabalhador, se perdesse a ação, precisaria pagar as custas do processo, incluindo perícia, além dos honorários advocatícios da parte contrária. Isso fez o total de processos novos na Justiça do Trabalho despencar daquele ano (2,6 milhões) para 2018 (1,7 milhão).
Mas, em 2021, o STF decidiu que essa regra não vale para quem tem direito à Justiça gratuita. Os números, então, passaram a subir aos poucos. No último ano, passou de dois milhões pela primeira vez desde 2017.
Para José Roberto Dantas Oliva, advogado e juiz do Trabalho aposentado, a decisão “obviamente” repercutiu “no ajuizamento de ações que estavam represadas por medo de sucumbência”. Ou seja, o receio de ter de pagar custas e honorários afastou os trabalhadores da Justiça do Trabalho, mas isso deixou de ser uma preocupação para os beneficiários da Justiça gratuita em 2021.
Oliva destaca que, conforme os dados do TST, até outubro de 2024, os pedidos de adicional de insalubridade foram os mais comuns na Justiça do Trabalho. “Os ambientes haviam deixado de ser insalubres? Não, os trabalhadores não estavam buscando o adicional com medo de não comprovarem a insalubridade e, mesmo pobres, ter de responder pelos honorários”, explica.
O segundo tema mais demandado foi a falta de pagamento de verbas rescisórias. Em seguida, vêm a falta de pagamento da indenização de 40% do FGTS, a multa pelo descumprimento do prazo para o pagamento de verbas rescisórias e os pedidos de indenização por dano moral. “Isso demonstra que o que estamos assistindo no Brasil é ao descumprimento de obrigações trabalhistas em grande escala”, assinala o advogado.
Outro fator, segundo ele, é a “sinalização preocupante” do STF quanto à “liberdade absoluta de contratação, com precarização do trabalho humano” por meio de mecanismos como a pejotização, a meificação (trabalho por intermédio de MEI) e a uberização, entre outros.
Na visão de Oliva, tais formas de contratação não garantem direitos trabalhistas e previdenciários básicos. “Estamos diante de um retrocesso social sem precedentes que, inevitavelmente, repercute e repercutirá no crescimento do número de ações trabalhistas.”
Precarização dos contratos
Lívio Enescu, advogado trabalhista, entende que “a terceirização ilícita com fraude e engodo buscando uma pseudopejotização no mercado de trabalho também aumentou as reclamações trabalhistas”. Ele acredita que o crescimento das ações tem relação com o aumento da precarização e com interpretações equivocadas ou mesmo má-fé das empresas na utilização de novos modelos de contratação, como os de plataformas digitais.
O advogado, professor e procurador regional do Trabalho aposentado Raimundo Simão de Melo concorda que a precarização dos contratos e das condições de trabalho contribui para o aumento das ações trabalhistas.
“O próprio STF vem contribuindo para tanto, permitindo a ampliação da chamada pejotização nas relações de trabalho”, diz. “São muitos os casos em que a Justiça do Trabalho reconhece vínculo de emprego nessas situações e o STF anula as decisões, sem sequer apreciar as questões fáticas e os verdadeiros requisitos da relação de emprego. Então, o STF também é parte do aumento da litigiosidade na Justiça do Trabalho.”
Ele também cita o descumprimento de direitos básicos dos trabalhadores — a exemplo do pagamento de verbas rescisórias, horas extras e adicional de insalubridade — como a causa mais importante desse aumento: “Se empresas, em pleno século 21, não cumprem direitos elementares dos trabalhadores, parte desses, depois de rescindidos os contratos de trabalho, vai ao Judiciário buscar o que lhe pertence.”
Ainda segundo Melo, “a grande rotatividade no mercado de trabalho ajuda a aumentar as ações trabalhistas”, já que os trabalhadores, “como regra, somente reclamam seus direitos quando saem das empresas, com medo de retaliações dos ex-empregadores, inclusive sobre a busca de novo emprego”.
Relação mal resolvida
Essa tese também é defendida pelo advogado trabalhista e cientista político Antônio Carlos Souza de Carvalho. Ele lembra que o Brasil, em 2024, teve queda nos índices de desemprego e rotatividade recorde. “Isso significa que mais gente está trabalhando, mas também que mais gente está sendo demitida. Por si só, isso já pode explicar o aumento do número de ações trabalhistas”, pontua.
Carvalho fala em uma maior desregulamentação do mercado de trabalho ocasionada principalmente pela reforma trabalhista: “Grande parte das pessoas não está satisfeita com o seu trabalho (o número de pedidos de demissão também é recorde) e a relação de emprego acaba mal resolvida”.
De acordo com o advogado, “uma relação mal resolvida é a primeira razão subjetiva para um processo judicial. Se há dúvidas com relação a direitos não cumpridos e isso tem impacto financeiro, a probabilidade de uma reclamação trabalhista cresce de maneira muito rápida. A desejada flexibilização das relações de trabalho no Brasil tem como efeito colateral uma maior instabilidade no mercado.”
Já Melo menciona o enfraquecimento dos sindicatos desde a reforma trabalhista, que diminuiu suas fontes de custeio: “Sindicato enfraquecido não fiscaliza as condições de trabalho e o cumprimento dos direitos dos trabalhadores, o que aumenta as demandas na Justiça do Trabalho”.
Outra alteração da reforma reforça isso: a lei acabou com a obrigatoriedade da homologação das rescisões contratuais nos sindicatos, na qual “há supervisão sobre o cumprimento dos direitos dos trabalhadores”. A possibilidade de suspensão das homologações fazia com que as empresas respeitassem mais os direitos dos trabalhadores e evitava a judicialização.
Lívio Enescu lista outros fatores para o crescimento registrado no último ano, entre eles: a falta de pagamento de direitos trabalhistas; o aumento de trabalho em regime de horas extras sem o devido pagamento; a confusão ou o desconhecimento das empresas quanto à evolução das leis de segurança e saúde no ambiente de trabalho; e o descumprimento de acordos e convenções coletivas.
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