Segunda Leitura

Sentenças descumpridas levam à perda de credibilidade na Justiça

Autor

  • é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

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23 de fevereiro de 2025, 8h00

A análise que se fará diz respeito à crescente demora ou ao crescente número de descumprimento de sentenças judiciais, dando-se ao nome sentença as variadas espécies, de ordem judicial, da antecipação de tutela, até acórdão do STF. No Brasil atual, curiosamente, a análise do mérito (o processo de conhecimento) é mais rápida do que a da execução do julgado (cumprimento de sentença). Este fato é bem esclarecido no site “Justiça em números”, do CNJ:

“A fase de conhecimento, na qual o juiz tem de vencer a postulação das partes e a dilação probatória para chegar à sentença, é mais célere que a fase de execução que, em regra, não envolve cognição, mas somente concretização do direito reconhecido na sentença ou no título extrajudicial” [1].

Qual a causa dessa realidade, quanto ela colabora para o desgaste que causa à imagem do Poder Judiciário, à descrença popular nas instituições do Estado e como combatê-la é o que se verá a seguir.

Estudo de caso

Na 28ª Vara Cível da comarca de São Paulo, foi proposta em 12 de março de 2019, pelo condomínio de um prédio de 3 andares, uma ação de obrigação de fazer com tutela antecipada de urgência contra uma condômina, a quem se atribuiu o fato de manter cerca de 30 gatos e 2 cachorros, que defecavam em um fosso, causando péssimo odor, náuseas e vômitos em alguns moradores, fato que estaria tornando péssimas as condições de vida no local, inclusive desvalorizando os demais apartamentos, afastando interessados na compra ou locação de algumas unidades. O processo recebeu o número 1002266-46.2019.8.26.0011 e não está sob a proteção de segredo de Justiça.

Julgada procedente a ação, com ordem judicial de dar-se destino aos animais, até o presente momento, quase seis anos passados, a situação persiste. Razões várias impedem que se execute a ordem judicial de dar-se destino aos gatos. Após diligências infrutíferas através de Oficial de Justiça, determinada a ação da Divisão de Vigilância de Zoonoses da Prefeitura Municipal para a remoção dos animais. Em ofício de 18 de novembro de 2024, a divisão deu informações sobre a legislação e as várias espécies de apreensões, as quais podem ser sintetizadas na afirmação de que o recebimento dos animais “depende da disponibilidade de vagas nos canis e gatis de vigilância existentes na DVZ, que atualmente encontram-se com a capacidade máxima de ocupação”.

Em decisão de 28 de janeiro de 2025 a juíza de Direito manteve a ordem de remoção dos gatos, ressaltando que o descumprimento “implicará multa ao responsável (Secretário Municipal de Saúde) de até 20% do valor da causa, por ato atentatório à dignidade da justiça (artigo 77, IV do CPC).

Registre-se que pessoas sensíveis à causa animal e ONGs destinadas à sua proteção também estão impossibilitadas de receber animais abandonados ou em situações assemelhadas, porque se encontram no seu limite de possibilidades

A retirada dos animais não ocorreu.

A Lei 14.228/2021 e correlatos

No passado, a Prefeitura de municípios de porte médio a grande recolhia cachorros e gatos sem dono e, após um período em que se aguardavam eventuais proprietários procurá-los, eram sacrificados. A Constituição de 1988 deu início à mudança de enfrentamento no artigo 225, VII, ao proibir a crueldade contra animais. Além disto, os costumes mudaram, os seres humanos se conscientizaram da necessidade dos não humanos, companheiros de nossa passagem pelo planeta, serem tratados com dignidade.

Spacca

Abandonou-se o antropocentrismo absoluto, fundado na Bíblia Sagrada [2], para, em novo estágio, mantê-lo de forma mitigada. E disto surgiram decisões judiciais protegendo os animais, como a do STF ao proibir a “Farra do boi” [3], em Governador Celso Ramos (SC), e leis municipais e estaduais proibindo a morte por métodos cruéis de animais abandonados [4]  e prevendo centros de bem-estar para animais domésticos, bem como agravando a pena dos que praticam maus tratos contra cães e gatos, fixando-a em 2 a 5 anos de reclusão (artigo 32, § 1º-A) [5].

Em 20 de outubro de 2021 foi editada a Lei Federal 14.228 [6], proibindo no seu artigo 2º e § 1º “a eliminação da vida de cães e de gatos pelos órgãos de controle de zoonoses, canis públicos e estabelecimentos oficiais congêneres”, abrindo exceção para a “eutanásia nos casos de males, doenças graves ou enfermidades infectocontagiosas incuráveis que coloquem em risco a saúde humana e a de outros animais”, disto sendo feita prova por laudo do responsável técnico, precedido, quando for o caso, por exame laboratorial.

Em setembro de 2020 o STF proibiu “o abate de animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos, apreendidos em situação de maus-tratos. A decisão, tomada por unanimidade de votos, foi proferida em sessão virtual encerrada em 17/9, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 640, ajuizada pelo Partido Republicano da Ordem Nacional (PROS)” [7].

A eutanásia de animais gera fortes e apaixonados debates, sendo que oportuna pesquisa acadêmica de Silva, Marques e Ferreira permite conhecer como o tema é tratado em diversos países [8].

Resposta às perguntas iniciais

– Causa da atual realidade: não é possível apontar causa única, mas sim a complexidade de uma situação nova, a qual o poder público e a sociedade não estavam preparados para enfrentar. Novos tempos, com a sociedade mais organizada na defesa de seus direitos e nos das minorias, levou ao aumento de ações envolvendo situações complexas cujas respostas raramente são simples. Tais ações, frequentemente, levam à adoção de teses empolgantes, mas nem sempre passíveis de execução imediata no Brasil.

– Desgaste do Judiciário: o descumprimento de ordem judicial, que o tempo se encarregou de tornar comum, não ocorre apenas na ação que serviu de exemplo nesta coluna. São centenas de ordens judiciais de reintegração de posse descumpridas, de restituição do meio ambiente ao seu estado natural que se revelam inexequíveis, inventários conflituosos que se arrastam por décadas, precatórios municipais e estaduais não quitados e outros exemplos que vão minando a crença e o respeito à Justiça. Os reflexos são sentidos não só em situações de maior gravidade, como também em atos processuais, como nas audiências on line depoimentos de testemunhas em trajes incondizentes ou discussões vulgares entre as partes, seus procuradores e juízes.

– Descrenças nas instituições do Estado: o desgaste na imagem do Judiciário vai além deste Poder de Estado para alcançar as instituições públicas. Quando as pessoas não acreditam no Poder Público procuram soluções pelas formas que tiverem acesso. Corrupção, ameaças, apoio em uma facção criminosa são algumas. E deixar de colaborar com tudo o seu alcance, por exemplo sonegando impostos, será parte de suas rotinas. Claro que tudo isto leva à deterioração do Estado e acaba sendo um ataque à própria democracia.

– Como combater o descumprimento de decisões judiciais: certamente este é o mais difícil e importante questionamento. A resposta começa pela forma de conduzir-se do Poder Judiciário. Respeito, nas questões institucionais, se conquista dia a dia, com ações de transparência, urbanidade, relacionamento com a sociedade, distanciamento da política partidária e práticas semelhantes. Individualmente se conquista com a forma de conduzir-se de cada um, de ministro do STF a juiz substituto. O legislador tem papel relevante. Leis claras e conformes com a realidade brasileira. Não adianta prometer o paraíso em nosso território porque, simplesmente, a lei não será cumprida. As ordens judiciais também necessitam de uma boa dose de realismo. Ordenar a demolição de dezenas de habitações de loteamento em área de proteção ambiental é lançar para o cumprimento de sentença mais um desmoralizador descumprimento. Estas três formas de combate são a base e não excluem outras tantas.

Conclusão

Já passou da hora do cumprimento de decisões e sentenças previstos no CPC mereçam alteração legislativa que o torne mais próximo da realidade e o descumprimento seja objeto de estudos para minimizá-lo, valendo-se de cursos em escolas da magistratura, com maior atenção à realidade brasileira do que às quimeras acadêmicas.

 


[1] CNJ. Justiça em números 2024. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2024/05/justica-em-numeros-2024.pdf , p. 283. Acesso em 21 fev. 2025.

[2] Bíblia Sagrada on line. Genesis 1:26-28: “Então Deus os abençoou e lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos; enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra”. Disponível em: Acesso em 22 fev. 2025.https://www.bibliaon.com/versiculo/genesis_1_26-28/.

[3] STF, 2ª. Turma, Recurso Extraordinário (RE) 153.531, em 3 jul. 1997. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=211500 .  Acesso em 22 fev. 2025.

https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=211500.

[4] ESTADO DE SÃO PAULO. Lei 11.977, de 25 ago. 2005, art. 12-B. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2005/lei-11977-25.08.2005.html. Acesso em 22 fev. 2025.

[5]   BRASIL. Lei 9.605, de 12 fev. 1998 com alteração da Lei 14.064, de 2020.  Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm. Acesso em 22 fev. 2025.

[6] BRASIL. Lei 14.228, de 20 de outubro de 2021. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14228.htm. Acesso em 22 fev. 2025.

[7] STF.  Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-proibe-abate-de-animais-apreendidos-em-situacao-de-maus-tratos/#:~:text=O%20entendimento%20%C3%A9%20de%20que,de%20maus%2Dtratos%20aos%20animais.&text=O%20Supremo%20Tribunal%20Federal%20(STF,em%20situa%C3%A7%C3%A3o%20de%20maus%2Dtratos. Acesso em 22 fev. 2025.

[8] SILVA, Ewerton Bellinati, MARQUESA Giselle e FERREIRA, Eduardo de Castro. Eutanásia Animal e o Direito à Vida: uma Análise Comparativa Internacional Quanto à Leishmaniose Visceral Canina-LVC. Ensaios e Ciências, v.28, n.4, 2024, p.472-479. Disponível em: https://ensaioseciencia.pgsscogna.com.br/ensaioeciencia/article/view/13601/7261. Acesso em 22 fev. 2025.

 

Autores

  • é presidente da ALJP (Academia de Letras Jurídicas do Paraná); professor de Direito Ambiental e Sustentabilidade; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador federal aposentado, ex-presidente do TRF-4. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) e do Ibrajus ( Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário).

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