Processo Tributário

Pesquisa empírica: precedentes do STF no contexto pós-reforma tributária

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  • é pós-doutora pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo advogada professora dos Cursos de Especialização e Extensão em "Processo Tributário Analítico" do Ibet e pesquisadora do grupo de estudos de "Processo Tributário Analítico" do Ibet.

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23 de fevereiro de 2025, 8h00

Logo após a aprovação, pela Câmara dos Deputados, da PEC 45/2019, hoje Emenda Constitucional (EC) nº 132/2023, refletimos, por meio de artigo publicado nesta coluna [1], como ficariam os precedentes exarados pelo Supremo Tribunal Federal diante do contexto da reforma tributária.

Esse questionamento sobre “como ficariam os precedentes no ambiente da reforma tributária” deve ser compreendido como uma pergunta formulada sobre a possibilidade de os conceitos definidos pelo STF, especialmente contidos nas suas ratio decidendi, servirem de parâmetro exegético tanto da EC nº 132/2023 como das legislações que vierem a regulamentá-la, tal como se deu parcialmente com a edição da Lei Complementar (LC) nº 214/2025.

Não se está aqui afirmando que os precedentes já exarados pela Suprema Corte sejam aplicados diretamente a eventuais conflitos que possam surgir entre Fisco e contribuintes em relação ao Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e à Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS), com observância dos artigos 1.037, II e 1.040 e incisos, do Código de Processo Civil/2015 (CPC), mediante o procedimento do sobrestamento dos processos e replicação da norma formada no precedente porque, para tanto, é preciso avaliar detalhadamente o fato do caso paradigma e o do pendente.

Para este específico procedimento, relações analógicas deverão ser estabelecidas porque, à primeira vista, os fatos descritos nos casos julgados no regime dos precedentes e aqueles que se formatem na vigência do IBS e da CBS não são iguais. Muito embora instigante, esse específico ponto não será desenvolvido neste artigo.

Nosso objetivo aqui é outro. Pensamos ser o momento de avaliar se os precedentes já exarados pelo STF devem ser levados em consideração para a interpretação das regras postas a partir da reforma tributária iniciada com a EC nº 132/2023 e, assim, antecipar soluções sobre dúvidas que certamente aparecerão.

Referindo-nos ao artigo já publicado nesta coluna, afirmamos que não deveria haver ruptura dos conceitos trazidos pelos precedentes da corte, com aniquilação do passado, ainda que estivéssemos diante de nova realidade jurídica, hoje posta pela EC nº 132/2023 e pela LC nº 214/2025, as quais trazem o novo modelo de tributação do consumo.

Sustentamos que os dois “mundos”, isto é, os conceitos definidos em relação a materialidades diferentes das previstas para o IBS e para a CBS, a exemplo do que se considera “prestação de serviço”, no que toca ao ISS, ou “operação de circulação de mercadoria”, em relação ao ICMS, deveriam ao menos servir de parâmetro, em um continuum, para a interpretação dos novos dispositivos da EC nº 132/2023 e da LC nº 214/2025.

Isto porque a compreensão do novo supõe conhecimento da ordem anterior, portanto, dos parâmetros fixados pelo STF para interpretá-la; afinal, IBS e CBS decorrem de tributos previamente existentes, o primeiro do ICMS e do ISS, a segunda do PIS/Cofins.

Muitas vezes, altera-se o nome dos tributos, mas não o substrato material-econômico que lhes serve de base ou, até mesmo, não é excessivo afirmar que, no contexto ora apresentado, a nova legislação partiu de discussões tributárias definidas pelo STF para fixar novos comandos alinhados (ou mesmo contrapostos) ao entendimento da corte.

Por tais razões, não se pode romper com o passado, deve-se entender se a matéria já tratada pode (deve) ser aproveitada para evitar novos litígios os quais, no mais das vezes, tendem a se repetir, caso não tenhamos uma visão clara sobre a relação entre passado, presente e futuro.

Mas, retomando a pergunta: os precedentes já exarados pelo STF podem ser aproveitados no novo contexto da reforma?

Para respondê-la, decidimos efetuar pesquisa empírica sobre as decisões prolatadas pela Corte em matéria tributária. Em primeiro lugar, fizemos um corte no objeto investigado, isto é, selecionamos apenas os recursos extraordinários julgados sob o regime da repercussão geral, não abrangendo as ações diretas de controle de constitucionalidade ou outros ritos processuais em trâmite no STF em matéria tributária.

De posse da lista de Temas tributários, lemos e resumimos cada um dos acórdãos em ordem crescente da numeração do Tema fixado, isto é, iniciando pelo Tema 1 e seguindo a respectiva ordem cronológica até o Tema 201.

Importante esclarecer que não nos limitamos aos tributos alvo da reforma tributária sobre o consumo, o que significa que nossa análise extrapolou as decisões que diziam respeito ao ISS, ICMS, PIS e Cofins (inclusive IPI), abrangendo o IPTU, as contribuições do artigo 149 da Constituição, temas relacionados à prescrição e decadência etc.

A referida opção decorreu de nosso objetivo de investigar como o STF enfrentou os princípios constitucionais nessas decisões, que também podem servir de norte para construção das novas normas jurídicas veiculadas nos textos da EC nº 132/2023 e da LC nº 214/2025.

Partimos do Tema 1 de repercussão geral e, até o presente momento, foram objeto de nossa investigação 40 Temas tributários sequenciais. Vê-se que ainda não concluímos a totalidade da pesquisa empírica, trabalho que requer tempo, mas com base nos 40 Temas examinados, foi possível estabelecer critérios classificatórios (em relação aos quais, provavelmente, serão categorizados os demais Temas pendentes de avaliação, exceto as infrações e sanções que merecerão critério específico).

Elegemos os seguintes critérios para classificar os 40 Temas tributários estudados:

Critério da limitação da competência tributária (imunidade): trata-se de discussões sobre imunidade que têm relação com os limites do poder de tributar — Temas 8, 52 e 207.
Critério da inconstitucionalidade da regra-matriz de incidência tributária: neste caso, o contribuinte alega que algum critério da norma jurídica instituidora do tributo fere a Constituição — Temas 1, 20, 21, 34, 44, 53, 64, 69, 75, 80, 84, 87, 94, 95, 102, 104, 110, 117, 125, 155, 171, 176 e 185.
Critério da manutenção de benefícios fiscais: diz respeito às discussões sobre o veículo adequado para suprimir benefícios concedidos ao contribuinte — Temas 63, 71 e 177.
Critério da cobrança do crédito tributário, subdivido em: (1) questões relativas à sanção política — Tema 31; (2) questões sobre a observância dos princípios da anterioridade (anual ou nonagesimal) dos impostos e das contribuições para que se possa exigi-los — Temas 51, 91, 107 e 168; (3) questões referentes à não cumulatividade – Temas 49 e 179; (4) à praticabilidade da exigência tributária — Tema 201 e (5) matérias relativas à prescrição e decadência — Temas 2, 3 e 4.

O que tal classificação indica? Uma das conclusões possíveis é a de que os Temas que atendem o critério da inconstitucionalidade da regra-matriz de incidência tributária não seriam aproveitáveis na reforma sobre o consumo, haja vista que estamos diante de uma materialidade ampla o que, ao menos quando a discussão diz respeito ao confronto da lei com o aspecto material trazido pela Constituição Federal, este confronto estaria a priori descartado.

Explica-se: aferir se o legislador extrapolou o critério material constitucionalmente definido, p. ex., prescrevendo a incidência sobre determinada atividade que não configura prestação de serviço ou sobre operação que não traduz circulação de mercadoria parece não ter mais importância diante da materialidade ampla do IBS e da CBS.

Muitas vezes, o efeito prático deste tipo de discussão, a respeito da incidência do ICMS ou do ISS, teve como pano de fundo o conflito de competência entre estados e municípios para tributar determinada operação/atividade.

Como a base de incidência dos novos tributos é ampla e, no que toca ao IBS, compartilhada entre estados, Distrito Federal e municípios, os conflitos em relação a quem cabe tributar determinada operação/atividade estariam, em tese, afastados.

Há outro aspecto, inclusive mais abrangente, relativo ao modo de se interpretar os novos dispositivos postos pela EC nº 132/2023 e pela LC nº 214/2025. Tem-se debatido que o conceitualismo – método que conduz o intérprete a cotejar a definição conceitual/semântica da lei com a fixada pela Constituição – não caberia mais nos dias de hoje, tendência doutrinária essa que vinha aparecendo já diante do Texto Constitucional anterior à modificação promovida pela Emenda e que vem sendo acentuada no ambiente pós-reforma.

Nessa medida, o modelo de raciocinar tipológico mais se afinaria à nova realidade, o que significa que disputas nominalistas, no sentido da extrapolação do conceito legal vs. o constitucional, tendem a diminuir.

Por tais motivos, os precedentes subsumíveis ao critério da “inconstitucionalidade da regra-matriz de incidência tributária” perderiam sua força interpretativa em face de julgamentos acomodados em outros critérios, como é o caso da “cobrança do crédito tributário”. Tornam-se códigos fracos da comunicação jurisdicional.

De outro lado, questões relacionadas às sanções políticas, à obediência ao princípio da anterioridade para a exigência dos tributos e, ainda, sobre como se dá a relação crédito/débito em regimes não cumulativos, poderiam servir como vetores interpretativos para o novo contexto. Códigos fortes da linguagem judicial.

Adverte-se, porém, que mesmo em face dos critérios classificatórios eleitos, não há resposta absoluta sobre quais precedentes, de fato, serão invocáveis para interpretação da reforma tributária sobre o consumo. Cortes metodológicos são importantes para segmentar o dado de realidade e organizá-los com intuito de melhor entendimento do objeto (no caso, os precedentes já postos perante a mudança de contexto). Mas, não exaurem o trabalho interpretativo.

Pensamos que há mais um ingrediente foi levado em conta em nossa empreitada de pesquisa: os precedentes enquadrados no critério considerado menos “aproveitável” podem trazer, nas suas ratio decidendi, interpretações relevantes acerca de princípios constitucionais que não perderam sua força diante da EC nº 132/2023 como, por exemplo, o princípio da segurança jurídica.

Dos precedentes que enfrentamos, até aqui, concluímos que a pesquisa empírica nos mostrou que o intérprete do direito tributário deverá conhecer em profundidade o sistema de precedentes (tributário) brasileiro para (pre)dizer, com mais segurança, quais conflitos valerão a pena ser enfrentados ou descartados.

 


[1] https://www.conjur.com.br/2023-ago-20/processo-tributario-precedentes-stf-ficam-ambiente-reforma/

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  • é pós-doutora pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, advogada, professora dos Cursos de Especialização e Extensão Processo Tributário Analítico do Ibet, pesquisadora do grupo de estudos Processo Tributário Analítico do Ibet.

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