Investigação defensiva: uma necessária mudança de paradigma
22 de fevereiro de 2025, 8h00
Por que o tema?
Um dos aspectos mais relevantes da estrutura processual penal diz respeito à necessidade de identificação prática e normativa do modelo acusatório [1], refletindo no equilíbrio entre as partes, para que seja efetivamente observada a garantia constitucional do contraditório. Sem essa premissa, o processo assume características autoritárias, afastando-se de um possível sistema processual penal democrático. Embora a doutrina pátria frequentemente mencione esses conceitos, sua aplicabilidade na prática jurisdicional ainda é limitada, demonstrando um interesse reduzido nessa realidade.
Com a previsão expressa de um processo com estrutura acusatória (artigo 3º-A, CPP) e a garantia do exercício pleno do direito de defesa, afasta-se a concepção passiva da defesa, conferindo-lhe a prerrogativa de desenvolver suas próprias investigações. Isso objetiva a efetiva paridade de armas entre acusação e defesa na produção de provas, consolidando um modelo processual que impõe ao juiz a observância de critérios uniformes de pertinência, relevância e valoração dos elementos probatórios apresentados tanto pela acusação quanto pela defesa
Um contraditório substancial
Ao se discutir a estrutura acusatória de um sistema processual, além do aspecto relacionado à gestão da prova, há um incremento nas responsabilidades atribuídas às partes.
Nesta linha, uma das principais distinções entre o processo com viés inquisitivo e acusatório diz respeito à atuação mais substancial das partes [2]. Por isso, na defesa intransigente de Vassalli, em busca de um processo democrático, trata-se de uma característica fortemente vinculada à lógica de um processo de partes [3]. Daí se extrai a importância do debate prático para garantir a intervenção mais ativa da defesa no momento de formação da prova (contraditório para a prova) em oposição à mera refutação de um conjunto probatório já constituído (contraditório sobre a prova).
O elemento central dessa estrutura reside no afastamento da concepção das partes como atores coadjuvantes da atividade probatória, conferindo-lhe uma função mais ativa, a partir e principalmente, da formação da carga (para a acusação) e do direito à prova (para a defesa) como consectário de uma visão mais funcional ligada à responsabilidade direta das partes em relação ao modelo inquisitório.
A importância do tema para o exercício da defesa plena
Dentro desse contexto, um dos pontos de maior realce na consolidação de um processo de partes figura simbolicamente na atuação da defesa investigativa [4]. A adoção de um papel ativo e dinâmico exige, necessariamente, um qualificado empenho da defesa técnica, que passa a assumir uma responsabilidade ampliada[5] (não mais como mero contribuinte das consequências da produção probatória), para assegurar as condições necessárias de planejamento e preparação da defesa efetiva.
A proposta de inserção da “investigação defensiva” para o campo prático impõe a superação da postura tradicionalmente passiva da defesa em relação à produção da prova, possibilitando a busca ativa de fontes de prova e obtenção de informações essenciais para o preparo de uma defesa que traga resultados efetivos.
A análise prática da investigação direta pela defesa reforça a necessidade de inseri-la em seu devido lugar no modelo acusatório, estabelecendo o desenvolvimento do processo pelo contraditório entre as partes em condições de paridade, com instrumentos reais de influência na tomada de decisão realizada por um juiz imparcial, com o resgate do efetivo núcleo do processo acusatório.
A investigação defensiva como mudança de paradigma
A consolidação de uma postura defensiva ativa é essencial na contemporaneidade.

Embora o exercício pleno da defesa deva seguir pela atividade vigilante, atenta e eficiente, a defesa no sistema inquisitório, imersa nesta estrutura autoritária, muitas vezes assume uma posição passiva diante da atuação da acusação e do juiz – fenômeno que a doutrina italiana denomina “difesa di disposizione“. Já em um modelo acusatório, a defesa assume uma postura ativa, chamada de “difesa di movimento” [6], em que há um papel na busca de melhores resultados defensivos e de contribuição efetiva na construção do conjunto probatório [7]. Consequentemente, esse novo paradigma confere maior influência na formação da decisão penal.
Cabe ressaltar que essa concepção não rompe com o princípio da presunção de inocência, nem altera o ônus da prova reservado à acusação. Ao contrário, a investigação defensiva concretiza um direito constitucional da defesa: a busca ativa de informações essenciais para formar o conteúdo da sua atuação efetiva -. No entanto, sua implementação enfrenta resistências decorrentes de uma cultura processual historicamente inquisitória.
Um exemplo a ser analisado: o CPP italiano
A Lei nº 397 de 7 de dezembro de 2000 (legge sulle indagine difensive) alterou [8] significativamente o Livro V do Código de Processo Penal Italiano que trata das Indagini Prelimirari e Udienza Preliminare, quando introduziu o artigo 327bis, que regulamenta a possibilidade da atividade da investigação defensiva durante as apurações preliminares e na referida audiência, objetivando a análise sobre a admissibilidade das informações que pautarão a pretensão acusatória.
Porém, a atividade investigativa do defensor não se restringe à fase preliminar. O artigo 327bis do CPP italiano permite que a defesa desenvolva investigações para buscar e individualizar elementos probatórios em todas as fases do procedimento, incluindo a execução penal e a instância revisional, em caso de condenação. Assim, há uma clara definição dos sujeitos, o objeto e a finalidade da investigação defensiva em toda a situação processual penal.
Além disso, o CPP italiano prevê a investigação defensiva preventiva, mesmo antes do registro formal da notícia de um crime, ditada pelas referências previstas no artigo 335, CPP italiano [9], seguindo a linha de proteção da dignidade da pessoa humana [10], prevenindo danos irreparáveis pelo fato de um cidadão figurar como sujeito passivo de uma ação penal [11].
Esta previsão normativa busca garantir, na prática, um dos pilares fundamentais do princípio do justo processo – como norma de atuação –, que é definido pela paridade entre a acusação e a defesa no trâmite processual, bem como pelo direito a um processo equilibrado [12], conforme previsto no artigo 6º, alínea c, 2 letra d da Convenção Europeia de Direitos do Homem.
Evidentemente, os limites da investigação defensiva permanecem restritos a atos lícitos, vedando qualquer ingerência sobre diligências que exijam reserva jurisdicional.
Para além das questões práticas, em que a defesa não deriva na dependência de outro ator processual (o juiz, por exemplo) para realização de atos de busca de informações relevantes [13], garanti-lhe, simbolicamente, o papel de verdadeiro protagonista na apuração dos fatos [14], superando a concepção de que seu único papel se restringe à resistência da pretensão acusatória deduzida em juízo [15].
O que se espera do tema na prática?
É fundamental compreender a necessidade de alteração da postura defensiva, tornando-a um agente formador de provas e de influência efetiva na decisão penal. Isso garante maior eficácia ao contraditório e ao devido processo legal por meio de uma atividade investigativa própria.
O artigo 14 do CPP brasileiro [16] não soluciona integralmente esse problema, pois mantém um viés preconceituoso em relação à atuação defensiva na investigação. Até porque, a característica autoritária permanece incólume quando a norma processual indica a necessidade de autorização pela autoridade policial para a realização de diligências.
Conclui-se, portanto, que a comparação com o modelo italiano demonstra que a distinção entre um sistema acusatório e um inquisitório não se restringe à atuação oficiosa do juiz. A questão central reside na valorização das partes e no equilíbrio processual. Portanto, para além da já atrasada alteração legislativa, denota-se necessário uma mudança cultural e prática, assegurando à defesa instrumentos reais para investigar e reunir elementos de informação, com o objetivo de se preparar adequadamente para o caso penal, elevando, inclusive, a qualidade do debate probatório em juízo.
[1] Para tanto, imprescindível leitura de PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório. A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. 4ª. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
[2] Foi o que ocorreu na Itália com a reforma processual penal em 1988 em que a perspectiva acusatória forte que se inspirou o Código de Processo Penal Italiano de 1988, gerou uma maior direção à implementação do princípio da contradição entre as partes e, principalmente, um reforço à defesa do arguido, tornando, nas críticas de Taruffo, a determinação da verdade sobre os fatos uma mera eventualidade, não mais sendo considerada como principal função do processo penal. cf. TARUFFO, Michele. Tres observaciones sobre “por qué un estándar de prueba subjetivo y ambíguo no es un estándar” de Larry Laudan. Trad. Jordi Ferrer Beltrán. In Doxa, n. 28, 2005, pp. 116/117.
[3] SPAGNHER, Giorgio. Giuliano Vassalli e l’evoluzione del Processo Penale. In Cassazione Penale, n. 12, dec. 2011, p. 4538.
[4] Na doutrina brasileira, ver SILVA, Franklyn Roger Alves. Investigação Criminal Direta pela Defesa. 5ª. ed. Salvador: JusPODIVM, 2025. DIAS, Gabriel Bulhões Nóbregas. Manual Prático de Investigação Defensiva. 2d. ed. Florianópolis, Emais, 2022.
[5] TRIGGIANI, Nicola. Le investigazioni della difesa tra mito e realtà. In Archivo della Nuova Procedura Penale. n. 1, gennaio/febbraio, 2011, p. 01.
[6] TRIGGIANI. Le investigazioni della difesa tra mito e realtà. p. 01.
[7] O direito de defesa se traduz na “participação da formação da prova”. TONINI, Paolo. Direito de defesa e prova científica: novas tendências do processo penal italiano. Trad. Alexandra Martins e Daniela Mróz. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 48. 2004, p. 195.
[8] Na realidade, não é uma real novidade no panorama legislativo italiano. O art. 38 do CPP anterior já autorizava ao “indagato” adquirir elementos de prova através da sua própria iniciativa. Cf. ANGELETTI, Riziero. La costruzione e la valutazione della prova penale. Torino: G. Giappichelli Editore, 2012, p. 184. Mas, há quem indique que este dispositivo era lacunoso e genérico, deixando de identificar a efetiva atuação da defesa na investigação. cf. TRIGGIANI. Le investigazioni della difesa tra mito e realtà. p. 02.
[9] Equivalente ao nosso indiciamento.
[10] Cf. Corte di Cassazione., sez IV, 14 ottobre 2005, n. 46270.
[11] TONINI,Paolo. Manuale di Procedura Penale. 12ª. ed. Milano: Giuffrè, 2011, p.588.
[12] PASTA, Alessandro. Dall’epistème alla critica : il diritto alla prova dell’acusato. In In Processo Penale e Constituzione. Milano: Giuffrè, 2010, p. 401.
[13] Pensemos na real possibilidade da defesa concretizar ato de apuração através de investigação privada e consultores técnicos com responsabilidades por sua atuação profissional.
[14] “non c’è dubbio che le dispozioni sull’indagine privata disegnino un difensore molto diverso da quello che calcava la scena del vecchio codice: un difensore più mobile, ativo; con maggiore poteri e maggiori onore”. CALMON, Alberto e outros. Fondamenti di Procedura Penale. 4ª. Milano: CEDAM, 2023, p. 494.
[15] A previsão normativa fez incluir um dado empírico: desde o ano da edição da legge sulle indagine difensive resulta cada vez mais freqüente a atuação investigativa pela defesa, principalmente pelos advogados mais jovens, conforme dados indicados por TRIGGIANI. Le investigazioni della difesa tra mito e realtà. p. 07.
[16] “O ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade”.
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